"A acompanhante, imagine, dopava o casal de idosos e saía pra namorar, deixando os dois em casa sozinhos. Numa dessas, exagerou na dose... e a senhora morreu durante a noite", é o que me conta C., a simpática, doce criatura responsável por mamãe nos últimos três anos. Acabei de demiti-la, com a desculpa bastante real da contenção de despesas, mas cá entre nós, nunca engoli esta mulher.
Venho trabalhando no assunto há quase seis meses, procurando uma alternativa viável ao esquema dela e tentando convencer a família da urgência em substituí-la. Me entendam bem: mamãe é assistida 24 horas por dia por duas cuidadoras zelosas, nas quais depositamos toda a confiança do mundo (espero que merecida). A ex-funcionária em questão exercia a função de "coordenadora da equipe" — ? e mais: ???? —, e o processo de demissão em si levou 2 semanas, durante as quais fui forçada a escutar de C. os mais escabrosos casos de maus-tratos a idosos, tudo numa tentativa patética de me provar, por a+b, a absoluta necessidade da presença dela para a segurança e bem-estar de mamãe. Até apelar para a possibilidade de apoio financeiro da comunidade judaica esta mulher apelou, ao me contar a história de um casal que acabou se suicidando por falta de recursos, fala sério. Eu disse a ela:
— Não, C., graças a Deus, não. Não é o nosso caso.
Agora vocês sabem o que passei nos últimos dias: vi desenrolar-se à minha frente, ao vivo, um script legítimo de um desses filmes B de terror, transformando o tranqüilo Alto-Leblon numa massacrante Silent Hill. Enquanto especulávamos várias casas de saúde para mamãe, escutei a horripilante criatura listar as desvantagens de cada uma, tudo, é claro, com o objetivo francamente manipulador de desestimular qualquer mudança:
— Você precisa estar atenta, Noga, pensar bem. No Rio Comprido tem tiroteio todo dia, imagine você, no meio da noite, atendendo a uma emergência de sua mãe em meio às balas perdidas. E os enfermeiros, atendimento médico e ambulatório 24 horas por dia? Tudo mentira. A não ser que você contrate acompanhantes particulares da sua confiança, sua mãe será maltratada, passará fome, tomará os remédios errados.
Não é que C. não tenha sido importante. Foi. Recomendada pelo psiquiatra de mamãe para organizar a rotina, pôr fim ao caos que imperava na casa enquanto morei nos Estados Unidos, montar uma equipe de confiança... tudo isso ela fez, e com sucesso. Se fosse, além de competente, honesta... teria ficado lá durante os seis meses necessários e seguido em frente...
— Escute, C. — aleguei, amenizando o golpe — o doutor disse que há tanta gente precisando de você. Antes do fim do aviso prévio você já terá outra paciente, não vai perder nada.
— Outro paciente? Não, não quero. Tenho sérios problemas de família e vou me dedicar a eles, não quero outro paciente tão cedo.
Ah, bom. Era este então o plano perfeito dela: receber um bom salário pra não fazer nada, explorando a nossa boa-fé e insegurança de filhos... e foi por isso que ficou tão revoltada. Há quase um ano, sem que a gente soubesse, C. vinha contratando uma das moças da equipe para substituí-la. E claro, pela metade do preço. Enfim. Já foi. Posso respirar de novo.
A noite passada foi de suspense absoluto, eu aqui em casa e mamãe na casa dela, entregue à megera recém-demitida. Tudo correu bem. Impressionante é descobrir a quantidade de pessoas que baseiam seu bem-estar e rotina profissional na exploração da desgraça alheia. O que ela me conta das casas de saúde para idosos, pelo que pude ver, não é tão absurdo quanto parece. O cliente, geralmente filho do paciente, já fragilizado pela triste situação do pai ou mãe e ainda por cima se culpando por tudo — é, gente. numa situação como essa a gente ainda por cima se culpa por tudo — é o pato perfeito para ser depenado. Maldade pura.
"Este é o mal que existe em tudo o que se faz debaixo do Sol: o mesmo destino cabe a todos. O coração dos homens está cheio de maldade; enquanto vivem, seu coração está cheio de tolice, e seu fim é junto aos mortos". Está na Bíblia, gente. Está na Bíblia. Já estou quase acreditando.
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Um comentário:
muito bom o texto. e triste. me fez pensar o duro que é ter de vestir a capa de super heroi sempre, não há escapatória para a fragilidade ou achar que ninguém é confiável o bastante. ou pior: que há uma certa alegria na desgraça alheia
Postar um comentário