segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Vergonha de quê?

"Jim, how beautiful you are!"
de Nora Barnacle a James Joyce, morto, pelo visor do esquife


Que por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher, todo mundo sabe. Mas por trás de uma grande mulher, existe o quê? Um homem pequeno? Um ego masculino domado? Amansado, sim, mas a pão-de-ló, cama, cozinha e roupa lavada, café da manhã na cama. Pequeno? Talvez. Mas, certamente, raro. Nem sempre paciente.
"Bem, Jim está escrevendo seu livro. Vou pra cama e este homem se senta no quarto ao lado e continua rindo do que ele mesmo escreve. Então eu bato na porta e digo, Jim, olha, pára de escrever ou então pára de rir." É meia-noite, num certo apê em Zurique. Mas pelo que sei, poderia ser aqui, ao meio-dia, nesta sala apertada do Alto Leblon, e esta fala na boca do Alan, é, gente. Sim: é duro ser Noga e Nora ao mesmo tempo.
Mas quando leio Ulisses, me esqueço de tudo. Meu riso deliciado evoca o eterno riso deliciado daquele homem de outrora por trás do texto: um eco póstumo; e-terno. No que se refere à escrita, me identifico com J.J. em quase tudo. Escrevo tão bem quanto ele, mas se ele nunca tivesse escrito, eu mesma jamais escreveria. Sou arrogante como ele, detestada, ousada e iludida quanto à própria importância como ele era, bem: neste último aí digamos que eu esteja sozinha agora, porque Joyce, todo mundo sabe, transcendeu faz tempo a própria miséria em que acreditou a vida inteira ter vivido. Me entrego. Me arrebento. Escrevo cartas e artigos (meio desesperada, às vezes: desesperançada) explicando o que escrevo. Imponho ao leitor e aos críticos a jactância da minha literatura, e se recebo de volta não mais que um ostracismo descrente, não me calo em tréplica. Jamais me calo, esta é que é a verdade. Só quando canso de mim. Todo escritor faz isso, não é? E se não faz, de duas uma: ou porque não pode, ou porque não se arrisca. E se não pode e nem se arrisca não se reconhece escritor. É isso.
Em tudo o mais, reconheço, difiro dele. Não bebo demais. Não traio. Não sacrifico a família ao meu autocentrado delírio, bem. Isso quem sabe é por não ter família. J.J. teve patronos, ou melhor, patronas: três mulheres que, por trás da insistência dele, preservaram para o futuro a impetuosidade tão (im)própria da boa literatura. Uma delas, dizem, custou a Joyce dez anos da vida dela e quase um milhão de dólares, ops, não seria o contrário? Quem doou o quê, e a quem? Bem. Hoje em dia, vocês sabem, ninguém doa nada, doa a quem doer. Ô miséria.
Aos meus herdeiros, não deixo nenhum legado em dinheiro, nem em propriedades, nem mesmo num mero gesto de boa-vontade com o mundo. Não. Deixo apenas a minha jamais plenamente reconhecida genialidade: livros publicados, outros inéditos, todos não-lidos, poucos compreendidos, escritos esparsos acumulados. E está de bom tamanho, me acreditem.
E quanto a este texto? Acharam difícil de encarar? Acreditar que alguém pudesse ter a si próprio em tão alta conta? Pois é. Aprendi com Joyce, faz pouco tempo. E a ninguém interessa se esta onda indomável de sou-mais-eu reflete, simplesmente, um interior em conflito — uma incurável e contagiosa mania de ser humilde —, que nega teimoso tudo isso. Vale mesmo o que está escrito. Vou ter vergonha de quê? De quem? Pra quê?

Leia online: Crônicas irônicas de Ulysses

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Nunc et in hora

Não sei não. Faz tempo que tenho sentido o maior medo de prazos e falsas esperanças do tipo "agora vai". Já vi muita gente boa sucumbir por causa disso. Mas lendo a revista do Globo neste domingo, fica difícil evitar um vigoroso "agora vai" rugindo de dentro do velho peito, gerado na mágica década de 1950 e já paralá de caído. Quando o mundo já esperava que a gente de vez desistisse, ou se aposentasse, desse vez a quem de direito, não sei não: olha nóis ai ôtra veiz. Ficou difícil.
Me lembro de um comentário esnobe de S.Z., meu então assessor de imprensa, impressionado com minha decisão pospólen de trabalhar em casa, atitude vanguardeira que na época significava: desempregada. fodida. desamparada. Pois na Revista de hoje reportagem nobre retrata projetos de escritório doméstico para quem... decide trabalhar em casa, ô mulher posmoderna, sô. Inda que tardia.
Inda que tardio também o renascimento de gente que fez história enquanto eu tentava fazer uma história, muitas vezes, dando uma mão a eles, ou pegando carona pela mão deles, como na expo de jóias na late Mr. Maravilhoso do paugrandense Luis de Freitas, nos idos de 1987, lá se vão vintinho. Ou fazendo do Cochrane's Crocker meu então escritório noturno, ah, tá bom: todo mundo que freqüentava aquele bar vinha com essa entre um uísque e outro, e curioso ou não, coincidência ou não, andei escrevendo sobre o Crocker's Cochrane's ontem mesmo, a lembrança avivada pela visita do Dr. João* — a.k.a. barman Johnny — aqui em casa, quando falamos do "falecido De Gang", é sério: houve quem pensasse (não eu) que ele houvesse morrido.
Enfim. Lá vou eu de novo tentando a minha casquinha na lasquinha tardia de notoriedade que espicaça meus companheiros da então estrada, ou, pelo menos, meus contemporâneos na falta almejada de fama. Vai chegando a nossa vez tardia no bloco pós-carnavalesco "A Fila Anda". AFE.
Vocês eu não sei, mas tenho me sentido cheia de energia. Isso porque, provavelmente, depois de anos funcionando com dois cérebros disfuncionais — o de mamãe senil e o meu — finalmente substituí um deles por um mais produtivo, canalizando mensagens literais de James Joyce, eita centro de mesa bom esse!, quer dizer, centro espírita de mesa, daqueles que Joyce tão jocosamente descreve no Ulisses, ao transmitir mensagens de mortos sobre sapatos perdidos: pra levantar moral de escritor fracassado não tem encosto melhor, fala sério. Mesmo que o texto psicografado fique a anos-luz do original canalizado, dá assim, digamos, uma pontinha de esperança. Um gosto amargo e doce de ilusão porética à la Stephen Dedalus: "E minha vez? Quando?"
Pois é, gente. Junto com essa meia dúzia de três ou quatro que anda tentando se levantar dos mortos consta essa que vos fala, antiga designer, antiga metida, antiga vanguardinha do Brasil hoje metida a escritora, é, gente: antes fosse namoradinha, mas como se diz... nunca é tarde para...
Nem que seja na hora da morte, é, tradução literal da oração latina aí de cima, puro equívoco católico apostólico que eu pensei que dizia: antes tarde do que nunca, ah, bom: nunc em latim quer dizer "agora": antes agora do que nunca, não é mesmo? Ops: na hora da morte amém.

* atual doutorando em cinema pela Sorbonne, que fique bem claro: tem gente que consegue meesmo dar a volta por cima

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

O paraíso é uma droga

Minha tia octogenária, tadinha, avessa a médicos desde criancinha, amanheceu no outro dia doentinha: não deu mais pra escapar deles. Convocado, o doutor respondeu ao chamado com um coquetel formado de sete pilula(s?)zinhas de cores sortidas, entre elas o famoso e inevitável antidepressivo.
Por um lado aplaudi: titia anda mesmo muito deprimida. Mas, por outro, me preocupei. O tal do remédio tinha feito parte do repertório inicial de drogas que fez bom coro à ruina humana em que mamãe se transformou, tadinha, e acabei desistindo dele: um bom e eficiente provocador de pesadelos.
Tudo isso teria acabado por aí, fala sério, relegado a assunto irrelevante por esta que vos fala e que prefere se atirar do edifício a botar pra dentro do cérebro um antidepressivo. Mesmo assim sei sim, sei mais ou menos do que estou falando, desde que fui nomeada curadora única e absoluta das receitas controladas da família. Outro dia, na drogaria, a vendedora se espantou com o volume delas que apresentei, é, minha filha, é duro controlar a doença (mental) alheia, é sim.
Mas tudo isso teria acabado por aí, fala sério, se não tivesse seguido por um papo onskype com uma jovem brasileira de nossa boa família, bem criada, bem casada e bem nutrida e mãe de bons filhos, que confessou frente ao contra-entusiasmo da tia que ela mesma consumia o tal remédio há mais de três anos. Espanto. Perplexa. Já tinha ouvido isso antes, me entendam, de ex-marido cavalarmente insensível, como é que você, uma moça normal, de boa família, bem criada e bem nutrida e mãe de filho nenhum tem tantos problemas? Vive tão deprimida? Pois é: me revoltei. Me revoltei e me enfiei por anos na terapia, mas mesmo correndo o risco de parecer antiquada, não boto nem morta pra dentro do cérebro um antidepressivo. Prefiro me atirar do edifício, e de um jeito ou de outro, não acredito mesmo no paraíso.