segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

(des)Encanto

É bastante triste o conto de ano novo publicado pela Bia. Eu entendo. A única resposta possível de uma mente que pensa e cria — nesta época do ano em que as impositivas regras emocionais vêm de enxurrada, pra te empurrar pro ruído geral estabelecido — é o desconforto. Desencanto. Desilusão. Mas meu vazio neste trinta e um eu confesso a vocês: é de outra natureza.
Meu vazio é o de quem acredita já ter feito o seu melhor. Queria ter um amor? Já tem um. Queria um orgasmo incrível a dois? Já teve mais de um. Queria escrever um bom livro? Já escreveu um. Não vislumbro de jeito nenhum a chance de encontrar um amor mais forte, mais ousado, mais apaixonado. Meu salto quântico tão ansiado? Já dei. Um livro mais bem escrito, sinceramente, é até possível. Mas provável, não é. Depois daquele tema intensamente vivido, vívido e colorido, qualquer perspectiva soa meio sem graça, lista de palavras ordenadas com gosto gasto de rotina. Já não espero mais. Já não espero nada mais.
Tudo o que eu queria agora era poder relaxar no bojo nem sempre suave deste encontro sagrado. Eu desejava ser capaz de amar. E fui. Sou. Por outro lado fui forçada a aceitar que aquela intensidade toda dá lugar a um fogo morno, do tipo que aquece mas sem chamuscar: um prato no ponto. No ponto e na mesa do almoço, nunca na ceia louca do imprevisto, varando alcoólica a madrugada e resultando sempre em dolorosa ressaca.
O sono é tranqüilo e já sem grandes sobressaltos, e isso é tudo de bom. Seria. Não fosse o vício eterno da intensidade, o gelo do improvável percorrendo a espinha num breve arrepio. O melhor de um amor talvez seja ansiar por ele, pela roleta russa que, claro, acaba no tiro fatal. Bum. Derrubada pelo grande amor.
Por outro lado às vezes eu penso que se de todos os outros lados eu estivesse bem, sem a dor da mãe doente e com a matéria assegurada, o teto garantido, não sei, gente. Eu estaria muito bem. Não ia querer mais nada e iria com gosto pro mato criar galinha, capinar erva-daninha. E já nem lembraria do desconforto, do desencanto, da desilusão. E nem de desejos de ano novo.
O que me mata não é falta de encanto; é falta de dinheiro mesmo, ou melhor, da segurança vitalícia de um bom dinheiro, coisa que francamente, até tem preço, mas valor que é bom não tem nenhum. Valor mesmo tem o amor, e o orgulho que a gente sente de um trabalho bem-feito. O resto é a ilusão social em que estamos todos mergulhados e que só dá um refresco na procura de um amor, quem sabe de um trabalho bem-feito. E de uma casa maior, de um computador melhor, de um celular mais moderno, de um carro novo, de uma viagem por ano, um vestido novo , um sapato novo, um filme inédito na tevê, uma audiência cada vez maior, um prêmio literário, um filho bem-casado e arranjado na vida, saúde, boa-forma, eterna juventude, uau. Paz no mundo. Segurança na rua. No Rio.
Não admira o nosso eterno descontentamento.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Acabou o Natal e o que você fez?

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Noite de 25 de dezembro. Ou melhor, primeiros minutos do dia 26.

Acabou o Natal, o grande encontro na noite do dia 24, muita gente, falação, cantorias, comilança desenfreada, fofocas em família, noite de sono que começa às 6h da manhã e um dia inteiro de ressaca, não de efeito de bebida alóólica, mas de dias de expectativa infundada para uma noite e um dia que, a meu ver, não deveria ter metade dessa agitação.

Passamos mais de um mês eperando por uma festa que não é festa. Vivemos dias de loucura nas ruas, trânsito estúpido, lojas entupidas, congestionamento nos terminais de cartão de crédito, supermercados lotados. Compras, compras, compras e a espera pela grande noite. Como uma noiva às vésperas do casamento, um músico que prepara sua estréia num novo e grandiso show, como uma criança que aguarda ansiosamente por sua festa de aniversário.

Isso, para a maioria das pessoas é Natal. Para mim, é uma distorção de valores. Eu pergunto: quem é que lembrou do aniversariante do dia? Quem parou para um minuto de meditação? Qual foi o ser que interrompeu seus festejos por instantes e reviu sua vida em família e entre amigos para repensar sua própria vida em meio a seus semelhantes? Quem se propôs uma mínima renovação interior?

"Então é Natal, e que você fez?" A cantora é brega, mas o verso é ótimo para o momento. O que você fez? O que eu fiz? Ou deixei de fazer? Me encontrei com a família, participei daquela ceia exagerada, bebi, presenteei e fui presenteada. Voltei para casa e dormi. Passei o dia cansada e aqui estou, pronta para dormir de novo e continuar tocando a vida.

Acabou o Natal e aí?

Guardei os presentes, as roupas novas do meu filho, fiz almoço (ou quase isso), me despedi do namorado no portão, como em qualquer dia do ano. Até aproveitei o sol, que andou sumido por uns dias, para lavar roupa. Sentei diante do computador para pagar uma conta, ver emails, coisa e tal. Um dia comum. Afinal, acabou o Natal, portanto é vida que segue.

E segue mesmo, igualzinha a todos os dias do ano. Acho que por isso dá essa sensação de vazio depois. Fica tudo meio triste, embaçado, como numa quarta-feira de cinzas. O corpo está cansado, as emoções bagunçadas e a alma pedindo uma pausa. Agora sim, que passou a refrega, aproveito a solidão para pensar, recolocar minhas idéias, rever minha vida e minhas relações. Sou humana como todo mundo e no meio de tanta tensão que envolve o Natal (não deveria ser assim, né?) é impossível ser a única a atrapalhar a festa e pedir uma paradinha pra pensar.

Faço isso agora, escrevendo. É minha forma de expressão. Aqui deixo tudo o que sei, que sinto, penso, prevejo.

Acabou o Natal. E agora?
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sábado, 22 de dezembro de 2007

Distantes II

Minha vizinha deu à luz esses dias. Como previ, fiquei sabendo por acaso, ao escutar o choro do bebê de madrugada. Para quem não se lembra ou não faz a mínima idéia do que estou falando, escrevi há pouco tempo sobre a distância que tomamos de pessoas próximas, nesses tempos de corre-corre atrás do cumprimento de inúmeros compromissos. E um dos exemplos foi a gravidez da minha vizinha, com quem divido parede, que descobri quando ela já estava aos seis meses de gestação.

Pois então, aconteceu. Numa madrugada dessa semana, após fechar a casa e deitar para tentar dormir, escutei, bem baixinho do outro lado da parede, aquele choro frágil de bebê recém-nascido. Sentei na cama e fiquei extasiada com a notícia. “Que lindo, ela ganhou neném!” A sensação foi a mesma de estar sendo comunicada por alguém. Me afundei novamente nos travesseiros e peguei no sono feliz pela mais nova mamãe das minhas relações.

E que relação estranha. Não só com a minha vizinha, mas com muitas outras pessoas com quem até tenho amizades duradouras, mas com pouquíssimo contato. E por isso estou novamente a falar sobre comportamentos esquisitos os quais acabamos por considerá-los corriqueiros. Afinal, quem está livre desse tipo de ‘convivência’ atualmente? Eu e minha vizinha entramos e saímos de casa e praticamente não nos vemos. Em nove meses de gravidez eu a encontrei duas vezes! E acho tão normal essa relação que fico feliz, mesmo sendo noticiada do nascimento do bebê às duas da manhã pela parede do meu quarto e quase comemoro.

Às vésperas do Natal recebo um email de uma amiga que não vejo há muito tempo. Quando nos falamos é pela internet, mas mesmo por esse meio já não nos encontramos faz meses. Em menos de dez linhas ela contou tanta novidade que fiquei até sem fôlego diante da tela do computador e uma das notícias me reportou ao caso da minha vizinha e seu bebê. A filha da minha amiga está grávida.

Caramba! Esta foi a primeira palavra da minha resposta. A notícia misturou saudade, com uma ponta de tristeza pela nossa distância, as memórias de tempos que atuamos juntas em trabalho assistencial comunitário e, principalmente, a lembrança da filha ainda criança, me chamando de tia. Agora, mulher, espera um filho e provavelmente não verei esta gravidez. Com certeza vou curti-la de longe, recebendo informações sobre a gestação por email. Mesmo assim é ainda melhor que a minha relação com minha vizinha de parede.

Em época de Natal ficam muito mais gritantes essas distâncias. Será que alguém ainda presta a atenção nisso? Houve tempos em que no início de dezembro as caixas de correio já ficavam abarrotadas de cartões de felicitações natalinas. Hoje em dia, alguns poucos chegam por email e normalmente são spams de empresas que apenas cumprem sua programação de marketing.

Voltando ao bebê da minha vizinha, espero o dia em que nos encontraremos por acaso, chegando ou saindo de casa. Assim poderei conhecer a criança e até confirmar se o bebê é realmente uma menina, como ouvi numa manhã dessas para, quem sabe, providenciar um presente. Difícil saber quando vamos nos esbarrar.
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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Tudo azul no ano que vem

foto original publicada no NY Times em 20 dez

"Talvez você nem saiba", afirma o NY Times. "Mas a cor do ano foi o vermelho pimenta ardido." Faz sentido. Afinal de contas, neste nosso ano sem graça de 2007 não faltou sabor, nem fogo, nem lágrimas, mas, ops, melhor entrar logo num acordo: foi mesmo um ano sem graça, ou um ano pra lá de agitado, ardido como pimenta? Sim. Deixemos assim. Porque aquele outro trocadilho que nos vem à mente, mais condizente com alguns dos fatos... vocês sabem, não convém a gente repetir: dizem por aí que atrai.
Foi um ano ruim para as artes. Ou pelo menos, é o que diz o jornal, promovendo o encontro final da arte com a violência. Pra alguma coisa valeu: só assim a cultura, enfim, ganha uma primeira página.
Desconfio que este roubo foi um golpe publicitário. É, gente. Levaram a tela azul de Picasso porque, francamente, não estava combinando nem um pouco com o tom oficial do ano; ou então pra chamar a atenção, sei lá, para a falta que a arte nos faz. Vocês não acham que o olhar de esguelha, o lábio num muxoxo, transmite, assim, um certo nojo? Um convite ao despertar para o que realmente interessa? Pra nos tirar do vazio? Da mesmice? Da desesperança? E o Lavrador de Portinari? Será um protesto definitivo contra a transposição do São Francisco? Um derradeiro grito contra a exploração do trabalhador? Pensando bem, a arte não se conforma com este papel insignificante a que vem sendo relegada, fala sério. Seu destino é ser atuante, eficaz, um antídoto contra o blablablá generalizado. Seu talento é provocar o debate, a consciência. Mesmo que não entenda nada de política. Nem de economia. Triste é precisar de um ladrão, ou de um tiro, pra nos mostrar isso.
Mas peraí: resta sim, alguma luz. E ela nos chega, pasmem, pelas mãos do mesmo mercado que costuma tirá-la de nós, sei lá, só pra incentivar o consumo: o azul foi declarado a cor do ano de 2008. "A escolha do azul", diz a responsável pela novidade, "responde a várias necessidades, desejos, esperanças, este tipo de coisa." Oba. "Emocionalmente é calmante, meditativa, com um toque de magia", disse ela, deixando de fora o Partido Democrata. O perigo é que o azul, vocês sabem: em inglês significa triste, deprimido, desanimado, o oposto exato da energia explosiva de um vermelho. Ainda bem que em português não tem nada disso, melhor deixar isso de lado, optar pelo lado bom. Ou a gente ainda acaba roxo. Sufocando de tanta raiva.
Que a doçura relaxante do blues — meio triste, tá certo, mas bem mais gostoso que barulho de tiroteio — embale o seu ano novo. Tudo azul. Certo. Recado entendido. Agora vem cá: dá pra entrar num acordo e devolver nossa arte roubada?

domingo, 16 de dezembro de 2007

E viva a Bahia!

Ando meio desaparecida do Crônicos. Resolvi voltar com essa crônica que, certa vez, escrevi, mas para poucos mostrei. Acho que é a proximidade das férias e da saudosa Bahia...

Me vê 3 desse aí

Salvador, Bahia. Terra de sol, praia, água de coco e do povo manso. Do pelourinho, do farol, das baianas e seus acarajés quentes. Aliás, quente não é só a comida ou a temperatura indicativa de que estamos mais próximos ao equador. Quentes são as baianas e seu gingado. Felizes e com um papo que une esperteza, o manso e o gingado, os baianos também tentam ganhar a vida. Não rebolam ou usam longas saias brancas. Mas protagonizam momentos inesquecíveis, engraçados e, diríamos, de uma sinceridade singular. Para o feijão de cada dia, o jeito mesmo é rodar a baiana.
O dia era comum, as pessoas eram as mesmas, o momento era férias. Dar um jeitinho na cor branco-cândida da pele paulista. Era Salvador a salvadora. E eu só conseguia pensar que o mês era agosto e meus amigos estavam passando frio na cidade de concreto. A São Paulo. Sem entender ao certo o porquê das pessoas fazerem a migração do mar azul e límpido, que eu observava naquele momento, para o agradável odor do famoso rio Tietê. Eis que me surge um soteropolitano que preferira o mar. Ganhava a vida na praia. Em seus braços, fortes e bronzeados, uma infinidade de colares, pulseiras e brincos.
“Boa tarde, ‘dotô’. Vai um colarzinho para a namorada?”
Não, eu não queria. Também não namorava. E talvez o fato de ele me lembrar disso me chateasse um pouco.
“Não”
Ele iria embora, assim como todo e qualquer vendedor ambulante que encontro nas praias do Guarujá. A clientela era vasta e ele não perderia tempo demais, ali, comigo. Ledo engano. O baiano não é o paulista. Ou o baiano-paulista. O baiano tem no seu sangue a tal da ginga que eu comentei. E era com essa ginga que ele queria me conquistar. Eu não era só mais um. Para ele cada um é um e todos formam o seu ganha-pão. Ele estava disposto. Bem disposto.
“Calma senhor! Eu não quero vender nada não! Só quero conversar. Por que o que adianta eu vender isso aqui se amanhã eu vou morrer?”
Ai meu Deus. Lembrou-me da falta de namorada e ainda diz que eu posso morrer amanhã. Não.. Eu não quero morrer amanhã! Ainda sou novo. Quero ter filhos. Preciso conhecer a França.
“O senhor está de férias, eu estou de férias. É férias da vida, meu filho! Tá vendo esse pessoal todo aqui? Tá todo mundo de férias!”
Sim, férias. E depois de um ano de correria, trabalho árduo eu tinha as minhas férias. Agora, esse cara poderia sair um pouco da frente do sol. Me deixa quieto com as minhas férias!
“Olha moço, não vou querer o colar hoje não. Fica para a próxima.”
Ele sentou ao meu lado. Acho que não deu muito ouvidos para o que eu falei.
“Eu mesmo posso daqui a pouco ‘PÁ!’ morrer, tirar as minhas férias eternas. Daí, eu não vou levar nada comigo. Nada disso tudo aqui tem valor”.
E não é que o homem tinha razão? Mas eu não poderia dar o braço a torcer. Não teria ninguém para dar o colar, de qualquer forma. E, na verdade, não tinha muito dinheiro na hora. Só saíra com o dinheiro da cervejinha gelada. Pensei em levar o cara para uma empresa publicitária. Esse aí, certamente, ganharia muito dinheiro no ramo. Ou talvez abrir uma igreja. Seria um bom bispo. Arrecadaríamos mais dinheiro do que aquele bispo famoso que saiu no jornal.
“Então, o problema é que agora você me pegou um pouco desprevenido...”
Não concluí.
“Nada disso! Nem que o senhor me ofereça 30 reais por esse colar, eu não quero! Nem adianta tentar insistir. Eu quero só 10 reais. Não vou ter lucro nenhum, é só para pagar o preço da energia positiva!”
Aí. Energia positiva era algo do qual eu estava precisando. Muito mais do que um colar. E com essa frase, se o tal baiano de boa lábia fosse uma bela baiana de curvas bem torneadas, já tinha me conquistado ali. Na hora.
Resolvi levar o colar. O moço saiu com seu gingado pronto para conquistar mais uma alma. E talvez o colar não me trouxesse nada de mais. Mas aquela conversa me marcou. Talvez eu a leve por muito mais tempo do que o colar, que eu já nem sei onde deixei. Era o calor baiano. Voltei para São Paulo de férias ainda. Afinal, se não vivemos, deveríamos todos viver de férias. Sempre. Antes daquelas eternas, viver. Porque eu posso, ‘pá!’, morrer agora.
Aqueles 10 reais não pagaram nem a menor parcela da energia positiva que eu levei. E oportunidades de bons negócios assim, só aparecem uma vez na vida. Melhor não desperdiçar.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Centenário

Esta crônica, publicada originalmente em 15 de janeiro de 2007 no Noga Bloga, foi responsável por minha seleção para a Oficina de Crônicas da Flip, e é com ela que homenageio, hoje, o centenário ilustre do dia. Obrigada por sua inspiração, Mestre Oscar. Nisso e em tudo o mais.

Hey, Óscar

Em minhas mais íntimas fantasias, me sinto igualzinha a qualquer celebridade (celebridade verdadeira, digo, como Picasso, Fellini, Caetano. Pina Bausch e outros do nível, nada de Ilha de Caras, por favor, que dessas não chego nem perto. Haha. Vocês notaram. Deixei o Philip Roth de fora, porque aí já seria pretensão demais). Não vejo diferença nenhuma entre o talento deles e o meu, mas como personalidade, é óbvio que o buraco é mais embaixo. Não sei o que me falta, gente: talvez um pouco mais de loucura, de ousadia, de um não-ligar-pro-que- alguém-pensa-de-mim. Ainda não cheguei lá mas vou me arrastando, penosamente, nessa direção.
Já meu marido Alan — ex-ator de improvisação, ex-mímico, ex-poeta trovador, ex-terapeuta e ex-milionário americano — é diferente. Deve ser por causa da idade, ou da arrogante (por natureza) nacionalidade, mas ele não só pensa que é igual às celebridades, como age como se celebridade fosse. Constrangedor.
Foi por isso que hesitei no outro dia, ao ver passar por nossa mesa de pizzaria, no Shopping Leblon, o grande Mestre Oscar.
— Olha lá, Alan. Tá vendo ali aquele senhor idoso, de bermuda e boné? Pois é o maior arquiteto do Brasil, e um dos melhores do mundo.
— É mesmo? E ele fez o quê?
— Brasília... Sambódromo... e mais não sei quantas sedes de partidos comunistas no mundo todo... (sendo gringo, o Alan não conhece outras maravilhas, como a Igrejinha da Pampulha, por exemplo, em Beagá)
— Como é o nome dele? - Engulo a língua. Hum. Já sei que vai dar problema:
— Oscar. Oscar Niemeyer. Este ano vai fazer 100 anos e acabou de se casar, olha como é bonita a esposa dele. Ele a chama de "filha". Todo mundo diz que foi por causa do dinheiro, mas eu não concordo. Em primeiro lugar, o Oscar é comunista convicto e trabalha até hoje, vai todo dia ao escritório; e, que eu saiba, fez muito projeto de graça, trabalhou principalmente pra governos. Quem é que ousaria pensar no Mestre Oscar pro projeto do prédio, da casa de praia? Em segundo, e nem por isso menos: já pensou que emoção, ser casada com o grande Oscar Niemeyer? Um gênio, e ainda por cima, um adorador confesso de mulher?
— Hum. Óscar, he? Óscar! Hey, Óscar!
Nossa. Não deu outra. Quase me enfio de timidez debaixo da mesa, mas Mestre Oscar já vem vindo em nossa direção, respondendo ao chamado. Confere o Alan - procurando se lembrar de onde o conhece - e já vai estendendo, simpático, a mão direita com um anel enorme no mindinho, a esquerda com uma aliança grossa. Disfarço mal o meu constrangimento:
— Pois é, Oscar. Meu marido é americano, e eu disse pra ele que você é o maior artista do Brasil.
— Exagero... Bem. Obrigado.
E lá se foi o Oscar, com um sorriso, em direção à mesa dele. Que homem. Qual será a receita de longevidade dele, hein? Hein? Seja qual for, funciona: o homem está aí, lúcido, ativo, nem bengala ele usa. Deve ser a arte, o talento, a mente inquieta, só pode. Não tem receita melhor de vida longa do que esta: trabalho, e criativo. Ah, sim. Muito amor também.
— See? No problem. É assim que você deve agir, se quiser ser um dia reconhecida - demonstra didático o Alan, meu mestre zen cuja orientação cotidiana não sigo nem um pouco: santo de casa, etc, etc. Mas ele está certo, é isso mesmo. Somos todos iguais perante a humanidade, e artista então... Se for de coração, é tudo irmão. Mesmo que só uns poucos tenham aquele quê a mais, além de uma obra surpreendente e única, que faz deles verdadeiras celebridades.

Ops. Posfácio rápido. Descobri mais tarde que o tal de “Oscar” não era “o” Oscar, que na época convalescia em casa de uma fratura. Não passava de um velhinho bem-humorado, que resolveu tirar o dia pra me fazer de boba. Ganhou, ganhou.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Um louco entre nós

Existe uma crença generalizada — apesar de improvável, e nunca até hoje confirmada — no poder do pensamento positivo, um escudo mágico que nos garante saúde, segurança e tranqüilidade. No pólo oposto do raciocínio não-lógico nos assombra o mito medieval de um encontro marcado com a morte: do seu dia, por mais que se faça, ninguém escapa. Entre estes dois extremos na escala do absurdo oscila o impulso da vida, nossa tendência nata para a sobrevivência, intocada pelo mistério da existência. Mas de vez em quando o equilíbrio se rompe, desfazendo a ilusão precária de uma ordem natural das coisas. Provoca o desastre. Desespero. Desesperança.
Quando penso no menino baleado — e desde sábado, baleado e morto — não sinto vontade de escrever. Sinto vontade de vomitar. E não há como apelar para o habitual culpado: é voz corrente aqui no bairro que o tiro partiu de nós. De mim. De você. Da porta ao lado.
Doze anos, gente. Doze anos. Uma mente virgem e um futuro moldável pela frente. Ouviu, cara? Você mesmo, você aí que não se sabe louco mas cede assim mesmo à tentação do impossível, você aí, que alimentado de violência do café à janta se olha no espelho e se julga herói, justiceiro, dono do mundo, com a bola toda. Dono da bala, você aí mesmo. Não se sente culpado? Oculto pelo anoitecer no anonimato da janela aberta, e ainda assim, culpado?
Não há desculpa pra nós: você, eu, o vizinho do lado. Doze anos e essa ração diária de insegurança, lida, ouvida, vivida e vista sem calcular o dano. Você aí.
O pior de tudo é que periga no escuro, com o dedo no gatilho daquela bala amarga, quem sabe: um outro menino inconsciente de apenas doze anos. Que embora continue vivo, já se sabe morto por dentro.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

quantas vezes você foi feliz sem quebrar o brinquedo

queimei o fofão na fogueira de são joão pra poder retirar a espada do cão. e a xuxa, enforquei que nem o judas, aquele canalha. os trilhos que faltaram na construção do ferrorama do meu irmão, fui eu quem escondi e nunca mais achei. eu furei o pogobol. eu soltei os periquitos australianos da gaiola. eu arranquei as cabeças da moranguinho e da uvinha e tirei uma das patas do meu querido pônei. cortei os cabelos da barbie da minha prima, e os próprios cabelos dela alegando ser o grito da última moda, coitada. no ursinho carinhoso, cor-de-rosa, fiz bigodes e tapa-olho de pirata, mamãe brigou comigo. o helicóptero elétrico do mackgueiver, dele, fiz um vôo rasante na bacia d’água e quebrou a parte eletrônica. o cartucho do vídeo game cce do almir filho, eu desconfigurei. o carrinho de rolimã, dado pelo meu pai a ele (e só a ele), eu afrouxei os rolamentos, e ainda assim ele não caiu na ladeira (gracias!) quantas vezes você foi feliz sem quebrar o brinquedo?!..
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eu fiquei pensando nesse texto (que ainda não está finalizado) só para começar uma conversa sobre experimentações. eu me permiti ousar as coisas. e isso tem conseqüências outras, boas ou ruins.e não pensem que esse texto me coloca na filinha das garotas más que não ganharão presente de natal, não. experimente você também quebrar seus brinquedos e afetos. e passe bem.

da ingenuidade pretendida

E sou do tempo que uma pessoa boa me fazia ser boa com ela, na lei da troca mais primitiva que regia aquele mundo que não pensava em marca nem em ser único pensava em manter aquela roda de afetos trocados pro dia fluir passar suave e no final dos mês as contas pagas ninguém com muito mais nem muito menos cada um com um pouco de mãe e pai e com muito de si o suficiente pra manter aquela roda de sobrevivência desconfiando um pouco que seja afinal era minas gerais e todo mundo era mais ou menos pobre em sendo pobre não gozava de muito tempo e com pouco tempo aceito não pensava que tinha uma vida inteira pra gozar contemplar
e se vestir ou se movimentar não se aprendia na revista mas tinha muita TV desde cedo. E tinha sonhos imensos gordos do lado de lá da imensidão que agora vejo tão pequena sem historia e de uma tristeza tão grande eu fiquei menina assim são joão assim quando menos pensava veio tudo e um amigo falou: - não entendo nada do que você fala ana, seu discurso é muito barroco! – E, eu, meu Deus, que agora entendo isso, barroco e tudo com casca filetinho rococó e tudo mais – você esperava o que André? Eu, entre igreja e cemitério, entre missa e pé de laranjeira, fio. Mas eu vi que a tristeza não estava lá.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Feel-good pie

um filme doce e crocanteSabe aquele tipo de filme que conforta e alimenta como o colinho da mãe? Se fosse um gesto, "Garçonete" seria um abraço carinhoso, daqueles que te aquecem e não exigem nada em troca. Se fosse um prato, seria a típica comidinha caseira, receita gostosa pra ir levando a vida na boa, deixando de lado os problemas cotidianos. E não causa espanto nenhum que a personagem principal, com toda a tristeza que a cerca, viva sorrindo e seja uma exímia fazedora de tortas, cada uma com nome e receita mais originais que a outra. Bem. Pelo menos uma infância feliz e doce ela teve, o que já garante uma certa dose de alegria.
Embora nada no filme seja tão, isto é, o vilão da história não é tão ruim nem a heroína é tão boa assim — afinal de contas, rejeita o filho que cresce em seu ventre e embarca numa aventura extra-conjugal com barrigão e tudo, o que não pega nada bem num filme tão bem-intencionado —, uma tensão permanente o atravessa e deixa a gente o tempo todo tentando adivinhar que horrível drama está por vir.
Não sei, gente. Deve ser aquela habilidade que o ser humano tem de organizar os fatos em perfeita sincronia e ordem, porque no filme, tudo se resolve a contento. A gente vai dando um suspiro de alívio e derramando aquelas lágrimas discretas e inevitáveis em casos como este, quando percebe alguma coisa esquisita nos créditos: o filme é dedicado à memória de Adrienne Shelly, diretora e atriz do próprio que a gente fica sabendo logo, deixou órfã a filha de dois anos, garota fofinha que aparece nas cenas finais. Uau. Perplexa. A sensação de incômodo continua nos extras do dvd, onde as imagens e entrevistas mostram Shelly com uma inexplicada textura de fantasma.
Pelo Google a gente descobre que Adrienne foi brutalmente assassinada em seu escritório de Greenwich Village em novembro de 2006, antes mesmo de "Garçonete" ser lançado. Aos quarenta anos, não viveu para vê-lo brilhar no Festival de Sundance de 2007, onde foi comprado pela Fox para obter uma bilheteria de 18 milhões de dólares. Seu assassinato inspirou o episódio "Melting Pot" da 17ª temporada de Law & Order, onde Shelly já havia atuado. Um choque.

dos esportes

Faixas fedidas enroladas na mão e pode ser que a luta comece uma hora ou outra. Um menino de 20 anos é só docilidade enquanto mostra e vai torcendo o pano passando entre o anular, indicador, dedão,mindinho, punho, os olhos de Tiago fixam cada aluno, ele não quer brigar, quer seduzir cada um para a brincadeira. São poucos mas logo todos se sentem acolhidos porque Tiago é rei, rei com mãos machucadas, alguns roxos no rosto, nas articulações dos dedos. Tiago gosta de hip hop, não gosta de puxar ferro. Tiago finge cara feia é meigo e seu respeito capta a dificuldade do outro. Como o boxe. Você se defende e ataca porque vê o outro. A luva de boxe fica próxima ao rosto, o que expõe e esconde o que de cada um. Você só pode atacar quando está confiante de que suas pernas estão seguras, seu rosto protegido, seu corpo coerente. O ataque é rápido e preciso, dois socos, um de cada mão e você volta pro seu porto seguro (pro mesmo lugar?). Você só vai em frente se cuidar da retaguarda. O ataque é uma língua de iguana, um estímulo pra que o outro se perceba. E segue o jogo.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

UM COPO DE ARROZ CRU

E mordida de jegue é arroz-doce? Pense uma vida difícil. É ônibus, trem, dia quente. Meu marido mantinha a casa. Cobrador. Venceu na vida. Não sofria mais em obra. Pegar peso, quebrar pedra. Deixou a unha crescer. Do dedo mindinho. Assim. Tem estilo. Não peleja mais com braço. Trabalha com a inteligência! Cobrador. Venceu na vida. Tenha estilo! Ele tem. O meu marido.
Mas pense uma vida difícil. Muita conta. Muito carnê. Mas tinha fogão e tevê! A geladeira já estava atrasada. O dinheiro é que a gente vai ver. Tia Nêga bem que me disse.
– Pega um copo de arroz cru! Bota no canto da sala. Assim atrás do sofá. Que ninguém vê e ninguém sabe.
Diz que traz abundância, não sei. Tenha estilo! Não pense bestagem! Abundância é coisa de comer! Que não deixa faltar. Passar fome. Fartura? Isso! Fartura.
Apois pense uma vida difícil. E traficante não pede pedágio? Pra quem vai trabalhar! Tinha que acordar mais cedo! Pra não ter que pagar. Tenha estilo! Não dou dinheiro pra safado! Cortaram a cabeça de meu neto. Largaram no ponto de ônibus. No banco assim de graça.
Pense uma vida difícil! É dinheiro do tráfico, trem. Do busão e até do ladrão! É muito dinheiro que gasta. Pra ir trabalhar.
E gente velha parece desgraça. Ninguém quer bangalô três vezes! Meu marido tem estilo,viu? Deixou a unha crescer. Do dedo mindinho. Comprida assim. A firma não quis mais ele. Afirma não ter dinheiro. A fim de cortar o custo. Mas meu marido é Zé Augusto. Meu marido tem estilo. Comprida assim. Deixou a unha.
Já fez bem um ano assim. Sem emprego, dinheiro, doente. O carnê indo atrás da gente. Eu tinha fogão e tevê! A geladeira já levaram. O resto tive que vender. Um ano a pão e água.
Mas ontem o pão acabou. Bem no inverno, a comida esgotou. Na noite em que eu ia morrer, de fato, de fome, fraqueza. Ao chão, moribundos, com frio. Encontramos no copo o arroz cru.
Tenha estilo! Fiz logo um sopão! Comemos. Sorrimos. Dormimos. Tia Nêga não tinha razão? Não morremos de fome à noite. Pra passar por mais fome de dia. Dinheiro? Não. Tenha estilo! Vim aqui atrás de serviço.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007


A fuga do espírito natalino
No escritório

- Tira aí, vamos circular o pote!

Rosana passa à frente o pote com vários papeizinhos dobrados, contendo os nomes dos colegas da sala. Novembro está terminando e já está mais do que na hora de tirar o amigo-oculto, que será descoberto na tradicional festa de confraternização.

Quem está na sala retira seu passaporte para o grande encontro de fim de ano. A maioria faz cara feia. Alguns até pedem para tirar novamente. Então, amigo-oculto serve para quê?

De um lado, para facilitar a quem não tem grana, poder comprar um presentinho só, em vez de presentear a todos.

De outro, o amigo-oculto é considerado uma animação essencial.

- Se não tiver, não tem festa! – alguém diz.

Mas, no fundo, o ambiente nem é tão amigável; do contrário não haveria narizes torcidos ao ler o nome escrito na tirinha de papel.

A própria Rosana não gosta de amigo-oculto. Diz que é uma imposição circunstancial de um grupo que tenta provar o impossível em uma efêmera festa de confraternização. Manu, da mesa ao lado, também não, por este e por outro motivo. Não quer gastar o dinheiro que não tem para comprar presente para uma pessoa que não está a fim de presentear. E por conta disso acabam provocando um mal-estar na sala.

- Ih! Tirei eu mesma. – avisa Rosana – É uma boa hora para desistir e retirar meu nome do pote. Pronto, gente, tô fora.

Rosana se exclui da brincadeira, sem aviso prévio, enquanto olhos estatelados a encaram.

No meio da discussão que segue a decisão de Rosana, Manu aproveita a deixa e pula fora, de mansinho, dizendo que não gosta de amigo-oculto, e que também não quer participar.

Aí o pote transborda!

- Mas isso é sacanagem! – reclama um.

- Eu também não comemoro Natal, mas penso que devemos conviver em sociedade, por isso participo. – retruca o outro.

E Manu não deixa pra depois:

- Assim não tem mérito. Sou obrigada a dar presente a alguém a contragosto e isso é conviver em sociedade? Acho melhor ser democrática, honesta, poder dizer e fazer o que quero ou não. Me sinto melhor diante dos meus colegas.

Silêncio.

O chefe, tentando aparentar calma, propõe o retorno à discussão no dia seguinte. Mas, a esta altura, o estrago já está feito; as caras feias e trombas já estão armadas.

Amanhã, discutir o quê?

Rosana e Manu ainda trocam um papo pelo MSN, sobre a imperdível oportunidade que tiveram de ficar caladas.

E o espírito natalino, que estava quase a bater na porta, sai de fininho, porque na verdade nem chegaria a entrar, num ambiente assim, socialmente frágil, de relações que já nascem partidas.

They sculpt horses, don't they?


No IMDB uma espectadora descreve o filme, de 38 anos atrás, como uma história triste, de gente desesperada numa época de desespero, tentando ganhar alguns trocados durante a Grande Depressão americana. Em "They Shoot Horses, Don't They?" (em português, "A Noite dos Desesperados"), de Sydney Pollack, baseado no romance homônimo de Horace McCoy — à venda na Livraria Cultura —, Jane Fonda participa de uma maratona de dança meio suicida e acaba assassinada.
Já hoje de manhã em Ipanema, em frente à Casa de Cultura Laura Alvim, os escultores de areia Oscar, da Argentina, e Eduard, da Colômbia, bem que precisavam de uma grana, mas não me pareceram tão desesperados assim. Com um talento inesperado, à altura dramática de um Pollack, tentam faturar algum com seus cavalos hiper-realistas. Gente. Nunca vi nada tão impressionante em matéria de escultura na areia. A gente fica esperando os cavalos se levantarem e saírem a galope a qualquer momento, pra não dizer que o expressivo olhar pidão deles faz a gente sem querer botar a mão no bolso. Vale conferir, antes que se desmanchem.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Vontade de pedra

E a montanha se levantou. Esticou suas pernas atrofiadas pelos séculos de repouso e começou a caminhar. A fauna que habitava nela pensou enlouquecer e se suicidou, a flora invejou a coragem da casa em abandonar as raízes. Ela suava rochedos no esforço de ir com delicadeza para não machucar muito o mundo com suas pisadas. O bater dos dobramentos e o esfregar de suas chinelas determinavam novos caminhos para rios e novas moradias para cânions. A neve rolava casposa por sua cabeça refrescando o cansaço da ousadia. Os vales se acompridavam esperando que ali ela parasse; cordilheiras a convidavam para festejar e à estar um pouco mais com elas; algumas a revelia, sorrindo preconceitos; o mar abria os braços para acolher a nova visitante; o mundo físico e político era redesenhado pela caminhante. Os homens fingiam não ver. Difícil aceitar uma montanha, assim, caminhando livre por onde queria. Ela mesma não queria muito, mas a vontade de outro a impelia. E ela ia andando e andando. Rangia seus pensamentos empoeirados e admirava a paisagem que pela primeira vez mudava. O coração de pedra agitado, mais quente que nunca lembrava os tempos de vulcão. Os pássaros atropelados como mosquitos em uma rodovia. Muitas cidades deixavam de existir. Meio triste e pesarosa pelos estragos a montanha titubeava se parar, mas logo lembrava do motivo de ter se levantado e ia e ia. E foi e chegou. Acomodou-se felina na planície onde ficaria para sempre, ou até um novo bom motivo para se mudar. Encaixou suas escarpas retumbando um suspiro satisfeito. E antes dela voltar ao seu silêncio de acidente geográfico, meneou o cume para os dois olhos que a contemplavam com fé.

terça-feira, 20 de novembro de 2007


Que venha o Natal

É inevitável. Todo ano, nesta mesma época, escrevo algumas linhas sobre Natal, fim do ano, meus sentimentos em relação a esse momento turbulento do nosso calendário. Já me confessei avessa a tudo isso. Há muito tempo deixei de gostar das festas natalinas, da própria ceia familiar também. Quando entra o mês de novembro e ouço os conhecidíssimos jingles das grandes lojas, me arrepio. Pronto. Vai começar tudo de novo.

Já não consigo sentir o tal espírito de Natal que todo o mundo fala. Claro, sei que ele existe; é uma questão de energia. Mas, a meu ver, ele ficou esquecido um tempo atrás desse tempo que vivemos hoje. Do consumismo psicopatológico, das confraternizações regadas a litros de bebida alcoólica e às conseqüentes centenas de acidentes, muitos deles fatais. Isso é espírito natalino?

Já não encontro mais paciência para sair de casa dirigindo meu carro (e olha que moro em cidade pequena). É trânsito lento, todos querendo encontrar vaga no mesmo lugar na área central da cidade, buzina pra todo lado, motorista nervozinho (aquele que sempre acha que sua pressa é maior que a dos outros), esbarra-esbarra dentro do shopping, fila em restaurante. Também não vejo espírito natalino nessa efervescência.

Quem me lê poderá dizer que sou uma chata, fria e insensível. Talvez. Tornei-me exigente, acredito. Aprendi desde pequena qual o verdadeiro sentido do Natal, o porquê dele existir e creio que isso não mudou. As pessoas é que mudaram, exacerbaram a festa, que deveria ser meditativa e fraterna, transformando-a muitas vezes em um carnaval consumista. Só se pensa em presente, churrasco, bebidas, presente, churrasco, bebidas e... o que mais?

Chega a ser deprimente o número de jovens pelas ruas, exibindo suas latas de cerveja como se fossem troféus. Com gritos de “É Natal! É Natal!”, saem na madrugada, com braços e corpos para fora dos carros, festejando... o quê?

Ninguém pense que não promovo e curto meu Natal, meio às avessas, é claro, mas cumpro o ritual. Já montei minha árvore junto com meu filho, instalei e acendi as luzes do anjinho pendurado na janela, e ainda estou procurando uma guirlanda ao meu gosto para a porta. O filhote reclamou de poucas luzes, portanto, penso em comprar e instalar mais. E vamos preparar a casa para o Natal!

Enfim, vou passar por todo o roteiro de compras, visitas, encontros, confraternizações, igualzinho ao do ano passado, que no próximo ano vai ser igual novamente, e no outro, e no outro. Não gostar disso ou daquilo, ficar triste com esse ou aquele, me irritar com outro montão de coisas e situações. Não tenho escapatória, a não ser me trancar em casa, tomar um sonífero e acordar dia 5 de janeiro. Como não vai dar para ser assim, que venha o Natal. Vou fazer tudo direitinho, como mamãe ensinou.

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segunda-feira, 19 de novembro de 2007

do são joão a são paulo

a saga de anita
Parte I
(Marina, a colega de escritório, hypada, magra, jovem vinda de vitória pra estrear em sao paulo de piercing no umbigo)
- Olha, olha Ana, o corpo!
(Anita) - Cadê? Tem espetáculo novo??
- A Daniela Sarayba na praia, loca, se liga!
- Ahnn...

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Para nós, os Amaldiçoados

De Simone Silveira Kaplan


Eu não sou eu nem sou o outro,

Sou qualquer coisa de intermédio:

Pilar da ponte de tédioQue vai de mim para o outro.

O Outro, Composição: Adriana Calcanhotto / Mário de Sá-Carneiro



Como artista, eu sou amaldiçoada. Mais cedo ou mais tarde, serei sacrificada. A minha arte não me defende. Ela invade o espaço do outro e perturba o conforto alheio.

Tenho tanta coisa linda pra falar, pra mostrar, há beleza em mim certamente. Se tenho que falar do belo, não sei escrever. Escrevo mal. Esqueço. Quem escreve sabe. O artista quer tudo aquilo que não está terminado. Só o esboço lhe interessa. Um mundo belo é um mundo acabado. Há os poemas perfeitos que nascem aleatoriamente. São magníficos mas caem em esquecimento. Estes nascem no momento da ação que o inspira. Todo poeta já vivenciou estar distraído e ver o poema surgir do nada, ditado pela própria voz muda de dentro de si. Por estar distraído, o poeta ouve os versos, mas minutos depois não pode lembrá-los. Este poema é o poema belo. Todos os outros, são frutos do trabalho, do artista artesão, que trabalha na forma, no som, na linguagem, frutos de um ambiente imperfeito. O artista cria através do exercício da doação, da exposição. Não estão distraídos e assim podem se colocar na linha de fogo. Podem ser sacrificados. Revelar um mundo exterior imperfeito para transformá-lo pode ser crime. Revelar o mundo interior do homem, também.

Sim, nós, os artistas, os invisíveis, enxergamos este mundo em ruínas e queremos paz, queremos o verde infinito visto do alto do morro. Existirá enfim esta possibilidade, para nós, os amaldiçoados?




segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Imediatamente

Eu juro, eu tenho muita coisa para fazer, eu juro. mas, abro um envelope que deixaram, como que despretensiosamente numa livraria e encontro um site vou até o site, é um livro, então, retomo volto a falar dos lidos. O envelope trazia escrito: Isto é para você. ABRA IMEDIATAMENTE . O que me parecia mais uma tentativa artesanal de alguém para fazer lerem seus livros, aparece-me como excelente marketing de uma grande empresa. De livros, ainda bem. Ainda bem que fazem bom marketing também nos livros.Nos outros países há muito fazem. Há muito que o livro é uma coca-cola(também). o progresso chega lento, vcs sabem e vai levando muita coisa junto com o atraso... e então eu fico meio deseperada, lembro de um poema meu... dentro de pouco tempo todo mundo vai ser artista... eu juro... eu fico meio desesperada... mas, lembro de uma artista bem mais experiente do que eu, por acaso o nome dela é bem conhecido, por acaso ela não é escritora, por acaso ela também não é só esteta, por acaso ela mexe com artes plásticas, mas, poderia ser com qualquer outra arte e diz: liga não. isso passa. não sei se passa, mas, assusta. tenho certeza, no entanto, q ela está certa: tudo passa. e passa muito e passa rindo. mas o passado é o que importa e nem tudo vira passado, muita coisa vira pó. e para virar passado um bom marketing não garante. ajuda, com certeza e isso não é pecar. barbárie é sentar à mesa sem sentir mal-estar ********************************* Sobre cows - Cá entre nós eu vou dizer-lhes o que achei da vaca na primeira vez que vi... e isso há de causar polêmica, porque todo mundo está adorando as vacas. não tenho nada contra as vacas, muito ao contrário, acho que enfeitam a cidade, fazerm rir. mas, não encarei como arte. espero que ninguém esteja encarando assim... (espero q não haja um silêncio agora). fui informada de que é um evento mundial. que não nasceu aqui... mas, e daí... estamos falando sobre vacas e não sobre auto-estima do brasileiro, legitimidade do autor... pelo amor de Deus. é só olhar e tentar ver ou responder: aquilo é ou não é algo que te reposiciona no mundo? a mim, reposiciona muito mais a vaca quando avacalhada - por favor devagar com o spray, cuidado com o meu olho. ou com a vaca que foi atacada pelas crianças da Lapa. do contrário, seria melhor proteger as vacas de verdade, ou o mundo dos seus gases, segundo alguns naturebas... ora, bolas. mas, que o movimento está bacana, está. dá uma mexida em todo mundo. é legal ver as adolescentes posando ao lado da vaca, sorrindo, como se aquilo fôsse uma espécie de signo da inteligência da humanidade. isso também acho que é intervenção (não o ato das adolescentes mas o ato de ensejar o sorriso delas) e aí, eu paro para pensar sobre estas vacas novamente. será que eu não fui enganada? será que não fui sagaz o suficiente para perceber? Meu Deus, então é isso? será que a idéia não é mesmo essa? ser der tempo vou procurar me informar se há reverberação sobre isso. mas, virando os olhos para um outro lado, tenho aqui no meu colo o livro Embarcações de Luís Serguilha. O livro tem um projeto gráfico respeítável. Os designers gráficos estão mandando brasa e a era do computador facilita o trabalho de toda essa gente boa. A editora é Ausência (achei o título interessante para uma editora de livros), e vem de Portugal: Proteger a dosagem das confidências/ na elasticidade semelhante aos velocípedes da morfina/ que sincroniza os brônquios dos sítios luminescentes/ sobre os baluartes das contemporâneas dissipações/ e as carumas das têmporas lunares incorporam/ o reboco portuário.

Sim, eu disse a mesma coisa para mim mesma: mas, que palhaçada é esta? Como pode um livro tão bem cuidado trazer a primeira estrofe assim. o que o autor está querendo com isso? ele sabe o quanto o tempo é precioso? e continuando a leitura eu fui informada por mim mesma que o movimento surrealista ainda ecoa em algumas pessoas com uma força tão violenta que não adianta dizer a elas que a contemporaneidade cuida de vacas e latas de sopa, por exemplo, o que o minimalismo é algo muito contundente, de uma profundidade que só e compreendida quando se ouve john cage...e aí vem a lembrança de Joyce que também não dizia coisa com coisa e tem seguidores e que eu admiro como a palma de minha mão que não conheço, mas, não é sobre isso também e tudo se explica no reboco portuário. sim, não era palhaçada, o homem não é um idiota, ele faz seu poema, e usa o que quiser. com reboco portuário ele fecha a porta. não sei se me entendem. mas, espero que ao menos serguilha entenda que eu estou fazendo um elogio. ou melhor, que estou dizendo que há poema, não há brincadeira. que há uma brincadeira de verdade, isso sim, o que é a arte. sempre do meu ponto de vista, claro, aliás. Então o leitor terá o trabalho de tentar decifrar o que o poeta mandou dizer. sim... sim, senhor. mas, calma, não é bem assim. não é nada obrigatório. o leitor vai tentar cavucar o imaginário do poeta ou simplesmente navegar nos símbolos. quanto ao imaginário, creio que a porta está fechada para nós. imagino que estudando o autor profundamente, nós possamos chegar a um nível de entedimento primário que talvez ele próprio desconheça e que seguramente será tão desinteressante para nós como são nossas próprias mazelas, talvez, para ser otimista, à la Bergman... então, é melhor ir para o mundo dos signos, sem tentar achar o caminho certo. tentar escorregar pelas folhas que navegam soltas pelos mares deste poeta português. acrescente-se a isso que o poeta espalha seus versos como se fossem folhas sobre a água mesmo. eles se espraiam, como ondas. não seguem uma sequência tradicional de versos um embaixo do outto. coisa entediante, diria. mas, para fazer diferente é preciso ter proposta sempre, do contrário, a gente vai ficar bem triste. então, a primeira parada foi reboco portuário. Continuemos:
reconduzido instantaneamente/ pelo interruptor arvorado das merendas pubianas/ As bainhas interpoladas das anémonas seduzem /as silabarias terminativas das carótidas/ que ampliam prodigiosamente /os apeamentos dos diamantes hemisféricos/ sobre a bifurcação da plaina codificadora/ Os bandos magistrais da desordenada anatomia.

eu pararia aqui para respirar. sim, acho que aqui tem uma pausa. eu perguntaria ao poeta: poeta, aqui é uma pausa? porque não há nada que indique senão a própria anatomia do poema. nós o estamos vendo e percebemos que aqui em desordenada anatomia há um corte, uma quebra. como uma vírgula que não há, como algo que repousa. E sua anatomia não tem nada de desordenada, diga-se de passagem. Ele prossegue, mas, acho que aí cabe o leitor procurar o livro. Ele é assim, e é um livro para ler à sombra, com calma e crescer junto. Poesia abstrata, eu diria, mas, vamos com calma.Espero que estas considerações sejam oportunas ao poeta e que ele chegue a lê-las.
elaine pauvolid _______________________________________

Monday. monday

No Gente Boa não prestei muita atenção. É uma página de puro entretenimento, vocês sabem, de passar batido e observar as notinhas, só pra saber o que está rolando. Mas quando a tal notícia sobre a festa-hype-com-coelhinhas-da-Playboy se transforma em crônica para a posteridade, a coisa fica bem mais séria. Não só pelas coelhinhas, claro, mas por outros sintomas do texto.
"Não é a arte. É a autopromoção que conta agora", ui, essa doeu. Dói mais ainda saber que o leitor pede ao cronista frases curtas (e o cronista, coitado, ou dá ou desce, ou ainda pior: nem chega a subir). Ah, sim, e dói muito, muito mais ainda, saber que muito cronista bom se perde às vezes, tentando agradar: este de que vos falo achou por bem abolir o parágrafo, mesmo que as frases curtas acabem perdendo o fôlego, se é que vocês me entendem. Só pra contrariar.
"Não complique o texto. Não complique a vida", bem, a bem da fama, tudo bem. Limite o vocabulário e seu correspondente universo intelectual. Coisa mais chata.
Dói muito quando a gente lê que as profissões tradicionais oferecem salários ridículos, triste sentença a que se submete, por pura necessidade, também o cronista em questão: um escritor excelente que a gente descobre com gosto em textos mais antigos, mas que hoje em dia consome tempo e energia, não só registrando bobagens, que nisso se vê uma boa ponta de ironia, mas eternizando em crônica os sinais banais dos tempos. É o fim do mundo, gente. Ou pra não dar munição a apocalípticos, o fim do mundo como o conhecemos. O que vem por aí depende de nós, mais do que a gente pensa, isto é, se a gente resolver pensar. Ai que preguiça. Ainda mais numa segunda-feira de chuva.

domingo, 11 de novembro de 2007

Do nada

De fato
não somos
o que fomos,
nem vamos
adiante
com o que temos.

O fato
é que somos
mais ou menos
o que não temos
ou vamos ter
O que seremos
ou somos?

Que fato
esse, estranho
Não sendo,
não tendo
não podendo
o que será, então?

O fato
é que vou indo
não sendo
querendo
ser, não tendo;
mais ou menos.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

salve polônio!

Diante de tudo o que se vê e da rapidez e degradação
de tudo, Cabo Polônio é
um lugar perdido. Quem perde o quê fica para o tal
livre arbítrio. São cerca
de 80 casas pequeninas, a maioria branca, salpicadas
sobre areia e grama e
cercadas quase totalmente pelo mar. Por um tris " um
caminho estreito e
sinuoso por onde se entra e sai de caminhão " não
estamos numa ilha.

E pra quem ouviu descrições de deserto, de dia faz
um calor do cão e à
noite, mesmo quando não chove, chegam ventos
poderosos que, parecem, vão
tirar os telhados daquelas casinhas todas.

De maneira geral, são brancas, o que dá uma sensação
de ilha grega para
muita gente.

Em Cabo Polônio " a 400 km de Montevidéo em ônibus
com ar-condicionado e
mais uma travessia de caminhão aberto sobre dunas "
as casas são distantes
umas das outras o suficiente para a felicidade.

Atílio é um artista plástico uruguaio, exilado por
vontade própria em
Polônio, convivendo com flores e suas obras. Sua
casa é cercada de plantas
compridas brancas.

Dentro dela, Atílio me mostrou uma caixa com tampo
de vidro onde guarda suas
interpretações de lobos e leões-marinhos em massa e
pedra. Outro trabalho
que chama a atenção é a série de bicicletas,
variações em desenho dos dois
aros fundamentais.

Para ele, a humanidade anda precisando de
bicicletas. Beatriz tem um rancho
próprio em Polônio onde, com o filho Guilherme,
trata de escrever o roteiro
para começar rodar, em dois meses, um filme.

O tema é a escravidão sexual, mulheres uruguaias
exportadas para esse fim.
Inconformada com a falta de apoio do governo
uruguaio à cultura, ela toma
horas de sol antes de escrever em alguma das praias
extensas e vazias. "É a
minha terapia."

Corre a boca pequena que o Uruguai é o país mais
lento do mundo.
No restaurante da Nancy, ela divide o fogão com um
filho bebê na cintura e
uma olhada nos biscoitos que vão virar alfajores,
feitos em fogão a lenha.
Para comer no restaurante de Nancy é preciso
esperar, de frente ao mar.

Elisa foi ativista do partido comunista durante as
ditaduras uruguaias, ela
se aquietou depois de um exílio no Chile e ao
perceber que as esquerdas
frustraram.

Então montou seu "El Molino" , cuja energia vem do
vento mesmo, abastecendo
as poucas e aconchegantes luzes à noite, geladeira e
aparelhos elétricos.
Casou-se com Patrick, um francês que flagrei fazendo
parafusos de alfavaca
com garfo depois de tomar um banho de mar.

Cansado em definitivo da urbe, o mineiro Henrique
Falcão montou sua loja de
roupas no alto de uma pedra, ao lado do farol.
"Célula Tronco" é um projeto
de desenho, arte e preservação da vida.

"Eu fazia uma série de roupas, sem parar, saía
vendendo como louco. Agora
são peças únicas. A venda é consequência. Eu não
posso agradar todo mundo".

Falcão quer criar uma fundação para preservação dos
lobos-marinhos, que
fazem um descanso nas praias de Polônio antes de
partirem para a reprodução
em mares mais frios.

A experiência em Cabo Polônio pode se radicalizar se
o visitante ficar em
casa de amigos ou num rancho alugado, vivendo à luz
de velas e usando a água
com moderação. Passei 12 dias assim, observando as
regras estabelecidas na
casa, pregadas numa geladeira movida a gás.

Acionava a bomba que leva a água da chuva para o
alto da casa e a distribui
para as torneiras do banheiro e da pia da cozinha.
São 50 movimentos diários
de musculação.

Em vez de usar a descarga do banheiro, buscava água
em dois baldes do lado
de fora da casa, acompanhada de Cazuza, Firulais e
Lineu, respectivamente,
os dois cachorros e o gato, ilustres habitantes da
casa dos espelhos, meu
abrigo nessa experiência "polonhense".

Ouvia dos moradores que rapidamente eu ficaria
"polonhense". Não entendi
muito bem o que, ao final do percurso, e só de volta
à vida urbana, pude
perceber.

Ficar "polonhense", para mim, foi entrar numa
sensação de humanidade e uma
vagareza saudável, por "supuesto". Para o banho,
esquentava a água e
despejava naquele balde-gambiarra que vira um
chuveiro. Fiquei com saudade
da ducha de hotel cinco estrelas.

Mas da janela do banheiro eu podia ver o mar e o
farol de Polônio, um dos
muitos cheio de histórias daquele país. Com um farol
daquele tamanho,
Polônio é conhecido por naufrágios históricos e
encalhe de navios. Um desses
casos envolve o Dom Guillermo, um navio que "atuou"
na Segunda Guerra
Mundial.

O que restou da embarcação é visto numa das praias
de Polônio, uma porção de
ferragens retorcidas fincadas na areia e nada mais.
Leo, o dono da casa, me
doutrinou sobre a água.

Disse que um banho como aquele equivale a um minuto
do nosso chuveiro na
cidade. Lembrei que meu banho é longo quando estou
bem triste ou bem alegre.
Naquele "transe" da quase-ilha eu não tinha nenhum
sentimento radical.

Leo foi o primeiro e único prefeito de Polônio.
Despachava na casa dos
espelhos, promovendo jantares à noite entre os
moradores, antigos
pescadores, turistas que decidiram se radicar,
hippies em trânsito e uma
sorte de gente com variados interesses, mas como a
mesma paixão pelo lugar.

Há uma pendenga sobre as propriedades em Polônio. O
Estado é o dono, teria
emprestado para os moradores e, agora, quer cobrar
uma taxa mensal pelo uso
das areias e grama.

Tudo é bem recente, mas o consenso é que o turismo
deverá ser controlado
porque não há estrutura para acolher muita gente; e
os lobos-marinhos e todo
aquele cenário vivo podem se estressar.

É certo que racionar água e luz quando se está
cercado de beleza e calma não
dói tanto. Mas, afinal, do que mesmo a gente
precisa?

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

E eu com isso?

Há três rolos de papel higiênico em cima da caixa de descarga, para nunca faltar. Mas o suporte na parede está sempre vazio. As funcionárias da empresa entram, usam o banheiro durante todo o dia, se contorcem para pegar o papel atrás delas, porém não se dão a um trabalho menor, que é repor novo rolo no suporte.

Na pizzaria, oito pessoas de uma mesma família se refestelam. Uma criança joga a tampinha da garrafa no chão. Nada acontece. Ninguém sequer olha para baixo. Todos comem, bebem, riem, vão embora e a tampinha fica lá, até que o garçom se abaixe e a recolha.

Mãe e dois filhos estão na sala de espera do consultório pediátrico. Uma babá cuida do filho menor. Ele anda pra lá e pra cá com um copo de plástico vazio na mão. Quando cansa do brinquedinho, joga-o fora. Ali mesmo, no meio da sala de espera. Nem mãe nem babá se manifestam. O copo permanece no mesmo lugar e uma outra criança o pega e o põe no lixo.

Essas pessoas são as mesmas que reclamam do governo, seja ele do PT, PSDB, DEM, PDT ou PQP; são elas que se lamentam de preços altos, da falta de educação do motorista ou indiferença do garçom; falam mal do som alto na casa do vizinho, do prefeito que não manda limpar a praça e da copeira que trouxe o cafezinho frio.

Pessoas que exigem todos os seus direitos, querem seus desejos satisfeitos “porque sou um cidadão que paga seus impostos”. Mas, infelizmente só se lembram disso na hora de cobrar. Cobrar sim, do dono do bar, quando recebe a conta errada para mais, e é incapaz de solicitar a correção do erro, quando a mesma conta vem cobrando menos do que foi consumido. Com a maior cara de pau o ‘cidadão’ sai de fininho, com ar de vitorioso.

Eu pergunto: são essas pessoas que vão salvar o planeta? São esses exemplos de falta de educação e cultura que vão se unir para reverter os efeitos do aquecimento global?

Quando vejo cenas como essas acontecerem à minha frente, não sei se fico irritada, indignada ou triste. Estamos no século 21, vivemos uma hipermodernidade que nos obriga a prestar atenção no mundo a nossa volta. Todas as informações estão aí, ao alcance de todos: na televisão, nos jornais, nas rádios, na Internet, nas escolas, nas faculdades, nas ruas. Não dá mais para fazer ouvidos moucos, fingir que “não é comigo” e continuar parando o carro em cima da faixa de pedestres. É inconcebível varrer a sujeira do meu quintal e jogar tudo na calçada do vizinho.

A mulher que entra no banheiro e não perde 15 segundos do seu tempo para pendurar o rolo de papel higiênico se comporta como se não pertencesse ao mesmo mundo das outras pessoas. É o que ocorre com o pai ou a mãe que vêem o filho jogar lixo no chão e não reagem. Pensam, provavelmente, que o espaço público não pertence a eles, justamente por ser público. “Ah..! Deixa pra lá que depois vem alguém e limpa”.

Tudo o que é público é nosso; não pertence ao governo, ao dono da empresa ou da pizzaria e nem é de responsabilidade única do servente que faz a limpeza. Esse hábito de empurrar o dever para o outro é que fez o nosso planeta ficar como está. Falta civilidade, falta senso de urbanidade, falta apropriação do que é de todos. Cuidar, proteger, fazer a própria parte. É disso que o planeta, o país, a cidade, o bairro precisam. Para ser cidadão é preciso ter educação, caráter mesmo.

Uma amiga ansiosa está iniciando um projeto ambiental, que prevê várias ações no âmbito acadêmico. E fala que é preciso “andar rápido, pois a conscientização de alunos e professores não pode mais demorar”. Eu pergunto, de novo: conscientizar? De que jeito? Ninguém conscientiza ninguém. O sujeito é que se conscientiza, a partir de um processo de conhecimento, de um movimento reflexivo próprio. E como um indivíduo que sequer recebeu educação básica – por favor, muito obrigada, com licença, bom dia, boa tarde – consegue adquirir consciência? Tem estudante de medicina por aí, jogando latinha de cerveja na estrada, pela janela do carro, a caminho da faculdade. O que se faz com alguém assim? Bate na bunda?

Antes de mais nada é necessário aprender o que é respeito e em seguida colocar em prática. Considerar que o outro tem os mesmos direitos e desejos, que a água que deixo exposta no meu quintal vai levar dengue para a casa ao lado. E que todos ficaremos doentes juntos, sejamos pobres, ricos, negros, velhos, crianças, se não exercermos nossa cidadania em favor da coletividade. É o mínimo que se pode exigir de um cidadão.
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quinta-feira, 25 de outubro de 2007

When it rains, it pours

Chuva no Rio sempre foi motivo de transtorno. Antigamente, começava o verão e a gente já sabia: vai ter gente morrendo, perdendo casa, faltando ao trabalho.
Nos tempos da Pólen me vi uma vez quase afogada em Madureira, e olhem, não tinha celular naquele tempo não. A gente ficava presa no trânsito e não tinha nem como avisar em casa, que dirá bater um papo (ou fotografar o caos e mandar um torpedo) pra se distrair. Nesse dia de Madureira o que me restou foi me conformar, estacionar o carro — é. naquela época eu tinha um. tive até motorista por um tempo, gente, sério: um preto supercharmoso, o Aloísio, que me levava pra lá e pra cá... num bugre vermelho sem capota, acreditem —, e esperar no bar a chuva melhorar, entre um chope e outro. Depois trabalhei na Fundição Progresso, pra quem não sabia fui produtora de artes plásticas lá durante o governo Collor (?), e lá vem verão, e chuva, e ruas alagadas e eu afogada de novo, o carro morto na Glória. Sem glória nenhuma, só o jantar forçado no alemão que tinha lá. A gente até aprendia a enxugar as velas naquela época, será que era isso mesmo? Ou vocês pensavam que nunca houve um tempo sem injeção eletrônica, me perdoem se estou falando besteira. Apesar de ter um irmão peagadê no assunto, não entendo nadinha de carro, e como todo mundo sabe, já nem tenho um. Desisti. Embora goste, de vez em quando, de dirigir sem rumo. E sem chuva, é claro.
O pior ainda não contei. Quando eu vivia em São Conrado, ao alcance das balas perdidas da Rocinha quando balas perdidas nem eram notícia ainda, fiquei ilhada na minha casa por quatro dias seguidos. Eu morava sozinha naquele baixio da curva, perto da Sendas, onde a rua sempre, sempre alagava quando chovia. Mas daquela vez foi um desastre. Não fiquei tão mal, é claro, quanto os pobres coitados que na mesma chuva perderam vida, casa, tudo. Só perdi tempo e um pouco de paciência, mas que me senti flagelada é fato. Começou não tendo luz. Depois cortaram o telefone e o gás. A água do prédio, ironia, acabou. Só sobrou a virada da minha piscina de fibra azul-clara, que salvou a paz olfativa de muita gente no prédio, fala sério: não servia pra cozinhar, mas pra outra coisa rolava, e tudo bem: toca pra frente até a água baixar, a gente enrolada na nossa arquinha esquecida de noé. Depois disso, claro, e não só por isso (o tráfego de balas também aumentou) acabei vendendo, pela metade do preço, a bela cobertura duplex de São Conrado. Os flagelados de Rio das Pedras levaram 90% das minhas belas roupas quando eu decidi optar pela simplicidade voluntária, já morando no Alto Leblon, onde qualquer chuvinha nos proporciona uma versão privada das Cataratas do Iguaçu.
Hoje estou com mais sorte. Graças ao advento do computador, da internet, do celular e dos blogs — não necessariamente nessa ordem —, trabalho em casa. Se chove, não saio e pronto. Tá certo. É o maior privilégio, a não ser, é claro, quando a gente não ganha nem um tostão há anos, e a grana não dá nem pra academia. Ah, gente, essa aí foi apelação mesmo: não vou mais à academia por vontade própria, e quando chove no Rio, depois da — segundo o jornal — mais longa seca desde 1997, perco a contragosto o meu exercício diário: um tremendo transtorno. Tenho que me virar sem a minha dose cotidiana de serotonina na veia, fazer o quê.
Pelo menos fico sabendo, pela internet — é, porque hoje, devido às chuvas, o jornal atrasou —, que a tendência ao otimismo não só é humana, mas até bem normal: uma estratégia natural de sobrevivência, embora tentem, a todo custo, nos tirar este remédio natural do estojo de emergência.
Choveu, tá ruim. Não choveu, tá ruim. Acabo concluindo é que repórter urbano é jovem demais pra conhecer a história dessa cidade, Rio que me seduz, de dia falta água de noite falta luz. O que não justifica os desastres, claro, nem o desleixo da prefeitura, mas vamos combinar: caíram menos encostas desta vez, e mesmo gente, até que morreu menos. Vai ver é porque com o tiroteio nos morros não sobrou ninguém pra morrer no desabamento. Ponto pro tráfico liberado de drogas.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

acalentos e acalantos

foi pra não pensar em você que decidi pôr ordem nas coisas: lavei a casa, mudei todos os móveis de lugar, desinfectei o chão, coloquei cheiro de novidade no ar da sala, tirei a tv do quarto, troquei as fotos do quadro azul, recebi visitas, pedi mangueira azul no vizinho, coloquei o amontoado de roupas usadas pra lavar. outras músicas ouvi, suco de manga verde almocei, o celular desliguei, ao noticiário nacional assisti, a nina banhei, acessório no sofá coloquei, cores ao vidros vazios da prateleira dei. preenchi-me. tudo para não ter um único pensamento em você.
e exatamente na última faixa do cd - numa ode à grécia – eu penso nos deuses, na análise sintática das orações, em santorini blues (de novo o azul) e seu nome ecoa pela casa limpa, arrumada e vazia. foi justamente aí que a água começou a derramar do balde inundando o quintal, tendo que recomeçar a limpeza.
sorri e pensei no quanto sou boba e que arrumo a casa e a vida pra te esperar chegar.

entrego os pontos: é mais forte do que eu.

vem,
se me trouxeres acalentos e acalantos
eu fico

(fátima souza)

sábado, 20 de outubro de 2007

Porque hoje é sábado:
reflexões impublicáveis de uma vaca judia



Por trás da beleza divina, da genialidade dos gestos, da história triste de exílio e infância pobre de Rudolf Nureyev, o deus da dança do século 20, não seria difícil imaginar a existência (como se viu, nem tão) oculta de um verdadeiro "monstro sagrado", como o descreve em sua "afetuosa" biografia a inglesa Julie Kavanagh. Mas pelo que se lê no artigo de Marília Martins publicado no Globo de hoje, e na resenha linkada do Guardian, a coisa era ainda pior. Como todos os amantes da dança de minha geração sempre babei por Nureyev, a quem nunca tive a oportunidade de assistir no palco. Nem por isso achei agradável saber que o ídolo "transava com homens por paixão e com mulheres por interesse", traía seus mecenas e ainda por cima os ofendia em público, como fez com Jane Hermann, diretora do Met, ao chamá-la de "jewish cunt" num restaurante.
Mas deixa isso pra lá porque hoje é sábado, dia de indulgências, de ficar à vontade, de recair em vícios que vimos combatendo com grande empenho. Calma, gente. Não estou falando de ler e citar o jornal, mas da mania auto-imune de extrair verruguinhas e casquinhas de ferida com a unha, arrancando sangue da minha pele fina.
Confissões à parte, não vou me estender demais, vocês sabem. Como toda mulher moderna, enfrento todo dia uma jornada dupla, ultimamente tripla, é: sou escritora, agora benfeitora das artes, e last but not least não tive filhos mas tenho marido, o que todo mundo sabe, dá um trabalho danado. (Todo mundo sempre soube mas foi Cecília Troiano quem escreveu a respeito, em seu "Vida de Equilibrista".) Não é à toa que estou sempre exausta. Ultimamente mais ainda, porque não durmo há dias. Basta eu cair naquele sono gostoso, debaixo do meu cobertor de lã, pra acordar meia hora mais tarde morrendo de sede e calor, suada, com a mente ocupada em destrinchar mais um detalhezinho do meu projeto de Mecenato: a última idéia é montar uma loja online pra vender os livros, fotos, desenhos e esculturas dos MeMo's a preço voluntário, num contato direto do artista com o seu consumi... ops: admirador. É, gente. Depois dos Radioheads, preço voluntário é o último hit, que Creative Commons que nada. Mais sobre isso mais tarde, isso é, bem mais tarde, porque neste sábado, fala sério, preciso:
- ler o jornal atrasado da semana inteira
- ler o New York Times com ênfase para o Book Review
- terminar meu projeto MeMo para entregar ao MinC
- preparar um superespaguete ao molho fresco de manjericão orgânico
- dar atenção ao maridinho, coitado, seduzido, esquecido e abandonado
Isso, claro, se eu não ceder à tentação de passar o sábado inteiro montando a estrutura da tal da loja MeMo, mais um item delirante no meu sonho de "fazer pelos outros o que queres que façam por ti".
Pra terminar, pode até ser que eu esteja ficando burra — ou quem sabe simplesmente exausta —, mas não consegui entender se a resenha do badaladíssimo romance novo de João Paulo Cuenca, no Prosa de hoje, elogia ou critica. A coisa é por demais morde-e-assopra, e na minha memória só sobrou uma frase: "O Dia Mastroianni" não busca profundidade. O que para mim bastou, porque o "ritmo e velocidade, impactos e sustos, personagens se drogando, se embebedando e trepando sem afeto" passam uma impressão ensurdecedora de barulho, e como muito bem diz Frei Betto, "há demasiados ruídos à nossa volta". Temos direito a um pouco de silêncio, pelo menos aos sábados. E a esperar que valha a pena essa nova vida de mecenas moderna... que meu projeto "pegue" e que meus futuros protegidos, entre os quais se inclui meu eu escritora, não decidam um dia se voltar publicamente contra mim.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As pré-balzaquianas

- Amiga, estou em crise. Já vou chegar aos trinta. Isso significa que nunca mais vou ser gatinha.

Foi o que uma pessoa querida me confessou entre um e outro copo de café gelado. Quando respondi que a tal crise pré-balzaquiana não me afeta, pelo menos por enquanto, ela me olhou com certo espanto, que logo foi substituído por um quê de admiração. "Me diz como você faz", ela me pediu. Esta crônica então é para atender a este pedido e tentar, quem sabe, remediar a ansiedade que muitas garotas sofrem ao chegarem perto dos trinta e entenderem que não podem adiar mais suas vidas como mulheres feitas.

Algumas sofrem da "síndrome" de um jeito esparramado, querendo assumir de vez a nova condição, sem sucesso. Outras a enfrentam de um jeito discreto, como se não estivesse acontecendo. Existem ainda aquelas que experimentam seus efeitos retardados, alguns anos depois de chegarem na terceira década, mas, independente de seus sintomas, talvez nenhuma de nós esteja imune. A crise dos trinta parece ser um desses joanetes filosóficos que machucam nossos pés de vez em quando. Talvez a crise seja o calcanhar de Aquiles das mulheres. Eu não sei bem, ainda não fui acometida pelos sinais. Até o presente momento, o retorno de Saturno tem se mostrado muito generoso comigo. Ah, não sabe o que é o retorno de Saturno? Bom, toda mulherzinha deveria saber. Se você não sabe, das duas uma: ou é homem ou não é mulherzinha, então, certamente, esta crônica não é para você, que não está passando por uma crise e não está nem um pouco preocupado(a) com o que possa advir disso. Então pare de ler por aqui.

As pré-balzaquianas não precisam da sua compaixão. De uma certa forma, não precisam da compaixão de ninguém. Dispensamos pena. Entretando, contudo, porém, queremos ser compreendidas. Ouvidas, pelo menos. E ficam certos questionamentos: será que algum dia nós superamos esta suposta crise ou o que acontece é que encontramos ferramentas cada vez mais sofisticadas para escondê-la? Será que disfarçamos as preocupações, tentando apagá-las com os tratamentos estéticos de ponta? O que fazer para não nos pegarmos dizendo aquela frase da música, "ah, se eu soubesse o que eu sei"?

Bom, vamos por partes. Vamos voltar ao início. Nós nunca mais seremos gatinhas. Isso lá é verdade. "Eu posso ser uma mulher bonita, mas nunca mais vou ser gatinha", minha amiga argumentou já no segundo copo (será que pré-balzaquianas deveriam tomar tanta cafeína?).Tudo bem, quem precisa ser gatinha? Desde quando ser "inha" virou sinônimo de beleza? Será que damos tanto valor à juventude que, quando ela começa a parecer distante, não nos sobra mais nada para oferecer? E quem disse que ser jovem é o mesmo que ser bonita? Acreditar nisso significa que precisamos perpetuar uma indústria antinatural que corre contra o tempo, que nos aprisiona num padrão e nos obriga a sermos novas, praticamente saídas da puberdade, com pele lisa, sem celulite ou estrias, corpo sarado, proporções perfeitas, seios turbinados, sorriso imaculadamente branco e enfileirado, ou seja, você tem que corresponder a uma imagem que mulher alguma reflete no espelho de casa.

A mensagem é clara: minha filha, você não pode ser o que é. Se vire. Você já era. Você é last season, é vintage, é retrô, existe um exército de pós-pubescentes muito mais bonitas que você, muito mais frescas, muito mais gostosas. Se vire. Volte no tempo. Estique a cara. Previna as rugas. Depile tudo. Tudo mesmo, viu? Para ficar peladinha feito uma menina... O recado que nos passam é vil e impuro e desleal. Vivemos numa sociedade esquizofrênica que diz que deu liberdade e autonomia às mulheres, mas que desconsidera seus corpos, sua real sexualidade, seus desejos, seus valores, suas necessidades. Somos tratadas como eternas meninas num mundo que praticamente nos impede de sair da Terra da Nunca. Não somos levadas a sério, nossos pensamentos são menores, nossas vontades são menores (e nossa renda idem), nossos corpos têm que cumprir a árdua tarefa de regredir no tempo. Não tenho mais vergonha do ridículo, então vou dizer: para mim isso é pedofilia institucionalizada. É patrulha. É prisão. Nós só achamos que estamos livres, mas fazemos de tudo para cumprir padrões que não escolhemos. Queremos tanto nos encaixar, encontrar nosso lugar num mundo excessivamente masculinizado, que somos capazes de qualquer sacrifício, somos capazes de abdicar de nossos prazeres para chegarmos um pouco mais perto de uma quimera. O que é melhor? Ser infeliz e perseguir um ideal impossível ou optar por uma vida plena, livre da vergonha de ser quem é?

Está bem, talvez eu esteja exagerando ou sendo muito radical. Normal para mim, embora meu bom senso (ou intuição?) já tenha me salvado de poucas e boas. Vou dizer para vocês por que a crise pré-balzaquiana é desnecessária. Para isso, ilustro com minha própria experiência. Me deixem regredir dez anos... Quando eu tinha dezoito, pesava de cinco a dez quilos a menos do que hoje e me achava gorda. Não tinha vivido um grande amor. Não ganhava meu dinheiro. Não fazia idéia do que queria ser quando crescesse. Era preconceituosa. Tinha medo de viver e de me entregar. Não tinha experimentado boa parte das aventuras que a vida oferece. Ou boa parte das desventuras. Era de poucos amigos. Escondia meus quereres. Acordava já achando que o mundo estava de mal comigo, que eu era uma coitadinha. Me digam como é possível ter saudade disso? Hein? Talvez seja por todos esses fatores que eu tenha me reconstruído. E que não exista motivo algum para querer disfarçar qualquer sinal da passagem do tempo. Para que ter vergonha da idade se é ela quem nos oferece tantos presentes? É viável caminhar neste mundo sem perder a essência rebelde da adolescência, mas abraçando os ganhos e a positividade do tempo. Ele nada nos toma. Apenas ensina e modifica. Hoje, dez anos depois, aprendi a dançar, amar, perder e ganhar, aceitar elogios, acordar com um sorriso no rosto, ter esperança, ver poesia num homem dormindo na minha cama, escrever, dizer o que quero com responsabilidade, me expressar, pensar sem ter dor de cabeça, não pensar em nada e viver o aqui e o agora, usar franjinha, ter estilo, economizar, gastar dinheiro, trabalhar, fazer e acontecer, dar asas à minha porção hedonista, positivista, socialista, capitalista, epicurista ou qualquer outro "ismo" que esteja na moda (sem esquecer de quem sou e o que estou fazendo aqui), ter senso de propósito, fazer as sombrancelhas, devorar o mundo com gula e agradecer cada oportunidade recebida. Agora me digam por que eu sentiria falta do passado? Por que seria quem sou hoje sem carregar no corpo as marcas da minha vida? Por que teria que abdicar da minha flexibilidade para viver uma ilusão?

Vou confessar: não vejo a hora de aparecerem as primeiras ruguinhas, de ver o corpo modificado pela chegada dos filhos e pentear as mechas brancas nos cabelos. Louca? O dia em que eu não puder mais ser "louca"... Mas preciso dizer que acho que loucas podem ficar todas as mulheres que se rendem a esta prisão das idéias, a estes desprazeres. Loucas são todas as que acordam e não conseguem ver a vida num raio de sol, todas as que não aceitam o convite dos mistérios para dançar. E, se o que vejo hoje foi trazido pelo tempo, significa que, com os anos, passarei a enxergar e conhecer mais e mais. Agora me digam por que eu haveria de querer ser o que eu não sou? E, se a revolução de Saturno tem sido tão proveitosa, que venham as próximas, que eu seja sacudida pelos ventos, pelos furacões da alma, que eu não tenha vergonha das minhas futuras pregas nas mãos, que eu continue vívida por dentro, viva por fora, radiante, com a beleza das pessoas felizes, não a beleza falsa e adúltera dos que vivem perseguindo os estereótipos. Minha franqueza pode assustar alguns. Existem inclusive os que fogem da verdade para conservar as aparências de louça. Minha crônica é em homenagem a você, minha amiga. Que a crise pré-balzaquiana vá embora tão logo você assopre as velinhas, porque o tempo sim é irreversível, a nossa evolução, não. Balzaquianas, é? Que cheguem os próximos dez, vinte, trinta anos. Serão recebidos de braços abertos e com muita festa, como se recebe a todos os bons amigos.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

da janela não via nada
Janela é pra se deixar ver
E se perder nas múltiplas cores de fora
Resguardando as metades de dentro
Janela é espiadouro do nada
É hábito da gente
É o pra fora da casa
Protegendo os gostos de dentro
Os cheiros rápidos do fora
Imunes ao contorno dos quatro cantos
Na janela
A vida é o limite
No quase encontro dos
dentro e fora

domingo, 14 de outubro de 2007

É dose!

Autora mulherzinha faz beicinho e esperneia contra críticas infundadas.

(Publicado originalmente em http://oglobo.globo.com/blogs/paralelos .)

Estou sendo vítima de um desserviço literário cruel.

Há dois dias, recebo um telefonema de minha editora me comunicando que enfim o Prosa & Verso me daria de presente uma resenha sobre meu livro de contos "Amor em pílulas", lançado em novembro do ano passado. "Quase um ano depois", pensei. "Antes tarde do que nunca". O fato é que ainda estou esperando pela tal resenha e o café do fim de semana prolongado foi tomado ao sabor de presente de grego.

A crítica de Beatriz Resende, recheada de achismos que uma segunda leitura do livro trataria de desfazer, aponta uma certa "pressa", que, segundo ela, comprometeu o aproveitamento de "Amor em pílulas", estando ele incompleto, como se precisasse de um fermento para crescer. Acusada de "fazer beicinho" e ter "súbitas crises de mulherzinha"(o que está longe de ser qualquer atributo literário), vim aqui, ao nosso espaço virtual, para espernear, como boa emergente que sou.

"Amor em pílulas" é sim um livro-laboratório. Ele reúne contos e experimentações (em sua maioria publicados em primeira mão na internet, em sites literários como Blogautores, a extinta Patife, Bestiário, a própria revista Paralelos e meu finado blog "à segunda vista") que foram alvo de críticas e elogios muito mais construtivos e consistentes do que este rol de acusações vazias, em tom até mesmo pessoal, na melhor tradição impressionista de análise de texto, que não encontra embasamento nos próprios contos que deseja "discutir". Não há espaço para discussão. As frases da crítica são usadas de maneira autoritária, dignas de quem não aceita qualquer outra proposta formal diferente do conto clássico.

Minha "atração pelo presente" e minha pressa devem ter contaminado Beatriz Resende, porque sua suposta resenha sofre do mesmo mal crônico. Traduz uma leitura rasa e mal cuidada. Seu texto contém erros de digitação e informações mal apuradas, vindas de uma rápida pesquisa do meu nome no Google, deixando claro para um bom leitor a opinião da crítica a respeito da literatura online.

A internet é o espaço "experimental" (entenda-se: de pouco ou nenhum prestígio acadêmico), enquanto o livro é um lugar canônico, sagrado, intransponível, onde meros plebeus, como eu, não podem transitar. Ou seja, se você quer ser escritor, independentemente do veículo de expressão, não dê sua cara a tapa, esconda-se num pseudônimo, respeite as regras dos manuais escolares de redação e não tenha um pingo de audácia. Muito menos o atrevimento de nunca estar pronto. Escritor bom deve ser escritor morto, não é? Estar no presente é uma ofensa. Quais são os predicados que um escritor deve ter para ser lido? Quando ele atinge o merecimento da maturidade? Seria ele escravo de uma única obra-prima para o resto de sua existência? Ou o julgamento é precário?

Me admira que um suplemento literário de renome como o Prosa & Verso tenha a coragem de publicar um texto tão baixo, que ultrapassa os limites de uma crítica negativa, chegando à injustiça rasgada. Lamento que Beatriz tenha perdido seu precioso tempo com minhas notas de bloquinho. Eu perdi o meu abrindo o jornal esta manhã. É o que acontece com os novatos que não querem cultivar círculos de amizade cheios de interesse, que precisam aparecer nas livrarias para consignar como se pedissem um favor. Me sinto uma versão de luxo dos poetas que vendem seus textos a R$ 1 nas portas das faculdades. Mas podem ter certeza que não escrevo para mendigar elogios gratuitos. Escrevo para crescer e para isso não preciso de receita de bolo. Umas vezes posso colocar açúcar demais, outras de menos, mas é o meu bolo e isso deve ser motivo de inveja para alguns.

sábado, 13 de outubro de 2007

Overdose

Amor em Pílulas na Livraria Cultura----- Original Message -----
From: Noga Lubicz Sklar
To: Ana Beatriz Guerra
Sent: Saturday, October 13, 2007 12:16 PM
Subject: Há críticas demais

Oi, Bia

Em primeiro lugar, parabéns pela resenha no Prosa & Verso: sempre ajuda em alguma coisa. Se a menciono é mais para rebatê-la, rsrs, agora que já terminei de ler seu livro. Fiquei meio atrasada porque me envolvi numa loucura de projeto, se tiver tempo dá uma olhada: http://www.mecenatomoderno.org/.
Curti demais o "Amor em Pílulas", o conto, e as listas da segunda parte. Entre os outros contos de alguns gosto mais, de outros menos. Acho que ando com uma certa birra de personagens de ficção, sei lá, e engasguei um pouco, em raros momentos, no ritmo da prosa. Até concordo com a crítica de Beatriz Resende quando diz, sem dizer muito, que a escrita cresce ao longo do livro, mas não entendo essa insistência em exaltar "a crueldade demais" em detrimento do "amor demais". É por isso que o mundo não vai pra frente. Ou vai, mas segue tropeçando. Digo isso, claro, sem conhecimento de causa. Ainda estou no amor; não cheguei na crueldade e queira Deus que não chegue nunca (fora do livro, I mean). Isto dito, não vi crueldade demais nos "Contos de loucura", apenas desamparo: o outro lado, o lado sombra do amor, que o faz valer ainda mais a pena. Pois loucura é exatamente isso: o avesso, a falta total de amor.
Achei o "Dermografismos" muito interessante, neste ponto concordo com a Beatriz. É baseado no filme do Greenaway, não? Adorei o texto decalcado nos lençóis, sério, foi o que gostei mais que tudo, é dessas coisas que faz a gente ainda se animar com a literatura.
Quanto às listas, que sua semi-xará considera apressadas, você já sabe: eu achei lindas. Que mania de criticar a criação alheia por algo que você mesmo não entende! Pô! As listas, digo e repito, são lindas, e deixam ao espectador o trabalho de elaborá-las, ou digeri-las. Ponto pra elas. Ponto pra eles.
A gente cresce fazendo, Bia, não vejo porque você deveria esperar mais. Tem muita gente grande por aí que não é digna de lamber os seus pés, e muito escritor imaturo fazendo sucesso com textos menores, só porque são queridinhos da mídia.
Já tenho na cabeça a primeira frase do meu artigo: "o talento promissor da escritora Ana Beatriz Guerra me serve de consolo", ou algo assim, querendo com isso, claro, lucrar alguma coisa ao afirmar que fazemos parte da mesma turma de escritoras não-devidamente-reconhecidas. Afinal de contas (apud "Amor em Pílulas", página 119), também preciso da grana, mas não é por causa disso que te resenho. É só por amor à literatura, entende? E pra evitar sofrer um dia a dor do seu personagem, que injeta a realidade da cocaína na veia porque "já não suporta mais viver de ilusões".

Me aguarde. Beijos! N

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Pratique o eu


oolhos-de-pinter, d'àpres Steven Forrest/ The New York Times


"Não sou nada. /Nunca serei nada. /Não posso querer ser nada. /À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.", diz Fernando Pessoa, quero dizer, Álvaro de Campos, em seu poema "Tabacaria", linkado por Carla Rodrigues em seu blog. Fernando Pessoa é pessoísta à beça. Enquanto escreve seus poemas magistrais, descreve a si mesmo como o mais vil dos homens, abjeto, um fracasso completo se comparado aos demais, como reforça este outro poema dele — Poema em linha reta — que eu sei quase de cor e no qual me reconheço. Fala sério: é muito pessoismo.
Comparar-se aos outros é mesmo um perigo. É causa ou efeito de depressão, uma doença que piora com a idade, é, gente, a velhice tende mesmo ao pessimismo, não é? Bem. Às vezes não. Como prova o habitualmente irônico Millôr Fernandes, do alto glorioso de seus 84 anos: "O mundo melhorou. Estamos vivendo o melhor momento da humanidade. A higiene é recente. Antigamente, a média de idade era 42 anos, hoje é 80." Tá certo. É bem millôr reconhecer isso. Mas o rótulo de humorista, o jornalista recusa e o entendo muito bem. Se é perigoso ser otimista, fazer humor é mais perigoso ainda.
É o Alan quem me ensina: "o sarcasmo é a forma mais baixa de inteligência." Quanto a mim, não sei porque, desde que casei com ele venho me tornando cada vez mais mordaz, e isso, apesar da vidinha feliz e pacata que nós dois levamos. Por outro lado, foi ele mesmo quem me apresentou ao humor corrosivo de George Carlin, não custa nada sklarecer. Aos meus ouvidos brasileiros soou, a princípio, meio estranho: um tipo de humor que não se aprende na escola, não, gente, de jeito nenhum: nasce com a gente, uma coisa assim, digamos, cárlica. Mas que se agrava com a prática... quanto a isso não resta dúvida, eu que o diga, com as minhas tiradas terrivelmente incorretas, como por exemplo o hábito de publicar certas coisas aqui no blog fazendo associações livres que ninguém mais entende, e até mesmo antecipando um preconceito sutil que ninguém, mas ninguém mesmo, jamais perceberia se eu não o apontasse.
Tomar os outros por si não faz bem nenhum. Pior ainda é seguir o conselho de quem nunca quer o bem alheio, como demonstra no Globo de hoje Babu Santana, prêmio especial do júri no Festival do Rio. O ator nos conta que trabalhava em uma livraria no centro do Rio quando pensou em fazer o teste para o Nós no Morro, e ouviu da dona da loja: "Para que você quer fazer teatro? Você é feio, negro, queixudo. Corta um dobrado para sobreviver, para que tentar o teatro?" A atitude estimulante da moça não é incomum, mas vamos combinar, não foi nada babu da parte dela.
Bom mesmo é praticar o eu. Quanto mais você é você mesmo, mais você mesmo você se torna, se é que vocês me entendem. Foi por isso que não entendi nada ao ler o título do artigo no Globo sobre Harold Pinter, reproduzido do New York Times, de onde vem também a foto aí de cima: "Aos 77, ainda pinteriano." Uai, gente. E quando você envelhece, deixa de ser você mesmo? Do que não gostei nem um pouco foi da tradução do adjetivo que é tema do texto, no inglês original "pinteresque". Pinteresco, esclarece a autora, significa "cheio de dicas obscuras e sugestões, que deixa a audiência na incerteza até a conclusão", uma descrição exata da "singular e inclassificável" obra de Pinter, hum, me identifiquei com essa. "Nunca consegui escrever uma peça feliz, mas consigo aproveitar uma vida feliz" me salva Pinter, mais uma vez.
E por favor: não me acusem de elitista por linkar o New York Times, gente, não é nada disso. Só fiz isso porque o Globo não o permite, numa política bem assim, hum, deixa pra lá. Por falar nisso, o Alan reclamou à beça do meu projeto para os MEMO's que vai, segundo ele, na contramão das tendências, querendo cobrar pra ser lido (ou visitado), coisa de que a mídia online, em todo mundo, vem abrindo mão. Mas não, faço questão de esclarecer: a idéia do mecenatomoderno não tem nada a ver com cobranças mas sim, como o próprio nome diz, com mecenato. Em outras palavras: o milenar patrocínio de artistas por quem pode, e escolhe apoiá-los.
Ah, sim, vocês perceberam. Parece que eu, finalmente, mudei de obsessão, e já não falo tanto no meu Hierosgamos, o fracassado romance que ninguém quer ler, mas agora vem cá: tá certo que a autora dele não é nada popular — é mau-humorada e de muito poucos amigos —, o que não altera em nada a qualidade literária do texto, não é mesmo? Pouquíssima gente o leu, e quem já o fez, adorou. Insistir nisso agora até parece renancismo, mas no fundo no fundo, é noguice pura. E estamos conversados.
Esses zoinho azul
Me trazem a notícia boa:
Eu vivi
Pari um mundo de memória
As mãos dando nós
A sua tristeza londrina
de Minas
Eu soube.
Eu palpitei sem sino
Só de zoinho azul passando
Encaracolando meu desejo
Esvoaçando meu chororô
Você que é tão dramático e nem sabe
Meu personagem em preto e branco
Remando pra lá da minha corrente
Soluçando sorrindo

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

As boas compras

Salvador, Bahia. Terra de sol, praia, água de coco e do povo manso. Do pelourinho, do farol, das baianas e seus acarajés quentes. Aliás, quente não é só a comida ou a temperatura indicativa de que estamos mais próximos ao equador. Quentes são as baianas e seu gingado. Felizes e com um papo que une esperteza, o manso e o gingado, os baianos também tentam ganhar a vida. Não rebolam ou usam longas saias brancas. Mas protagonizam momentos inesquecíveis, engraçados e, diríamos, de uma sinceridade singular. Para o feijão de cada dia, o jeito mesmo é rodar a baiana.
O dia era comum, as pessoas eram as mesmas, o momento era férias. Dar um jeitinho na cor branco-cândida da pele paulista. Era Salvador a salvadora. E eu só conseguia pensar que o mês era agosto e meus amigos estavam passando frio na cidade de concreto. A São Paulo. Sem entender ao certo o porquê das pessoas fazerem a migração do mar azul e límpido, que eu observava naquele momento, para o agradável odor do famoso rio Tietê. Eis que me surge um soteropolitano que preferira o mar. Ganhava a vida na praia. Em seus braços, fortes e bronzeados, uma infinidade de colares, pulseiras e brincos.
“Boa tarde, ‘dotô’. Vai um colarzinho para a namorada?”
Não, eu não queria. Também não namorava. E talvez o fato de ele me lembrar disso me chateasse um pouco.
“Não”
Ele iria embora, assim como todo e qualquer vendedor ambulante que encontro nas praias do Guarujá. A clientela era vasta e ele não perderia tempo demais, ali, comigo. Ledo engano. O baiano não é o paulista. Ou o baiano-paulista. O baiano tem no seu sangue a tal da ginga que eu comentei. E era com essa ginga que ele queria me conquistar. Eu não era só mais um. Para ele cada um é um e todos formam o seu ganha-pão. Ele estava disposto. Bem disposto.
“Calma senhor! Eu não quero vender nada não! Só quero conversar. Por que o que adianta eu vender isso aqui se amanhã eu vou morrer?”
Ai meu Deus. Lembrou-me da falta de namorada e ainda diz que eu posso morrer amanhã. Não.. Eu não quero morrer amanhã! Ainda sou novo. Quero ter filhos. Preciso conhecer a França.
“O senhor está de férias, eu estou de férias. É férias da vida, meu filho! Tá vendo esse pessoal todo aqui? Tá todo mundo de férias!”
Sim, férias. E depois de um ano de correria, trabalho árduo eu tinha as minhas férias. Agora, esse cara poderia sair um pouco da frente do sol. Me deixa quieto com as minhas férias!
“Olha moço, não vou querer o colar hoje não. Fica para a próxima.”
Ele sentou ao meu lado. Acho que não deu muito ouvidos para o que eu falei.
“Eu mesmo posso daqui a pouco ‘PÁ!’ morrer, tirar as minhas férias eternas. Daí, eu não vou levar nada comigo. Nada disso tudo aqui tem valor”.
E não é que o homem tinha razão? Mas eu não poderia dar o braço a torcer. Não teria ninguém para dar o colar, de qualquer forma. E, na verdade, não tinha muito dinheiro na hora. Só saíra com o dinheiro da cervejinha gelada. Pensei em levar o cara para uma empresa publicitária. Esse aí, certamente, ganharia muito dinheiro no ramo. Ou talvez abrir uma igreja. Seria um bom bispo. Arrecadaríamos mais dinheiro do que aquele bispo famoso que saiu no jornal.
“Então, o problema é que agora você me pegou um pouco desprevenido...”
Não concluí.
“Nada disso! Nem que o senhor me ofereça 30 reais por esse colar, eu não quero! Nem adianta tentar insistir. Eu quero só 10 reais. Não vou ter lucro nenhum, é só para pagar o preço da energia positiva!”
Aí. Energia positiva era algo do qual eu estava precisando. Muito mais do que um colar. E com essa frase, se o tal baiano de boa lábia fosse uma bela baiana de curvas bem torneadas, já tinha me conquistado ali. Na hora.
Resolvi levar o colar. O moço saiu com seu gingado pronto para conquistar mais uma alma. E talvez o colar não me trouxesse nada de mais. Mas aquela conversa me marcou. Talvez eu a leve por muito mais tempo do que o colar, que eu já nem sei onde deixei. Era o calor baiano. Voltei para São Paulo de férias ainda. Afinal, se não vivemos, deveríamos todos viver de férias. Sempre. Antes daquelas eternas, viver. Porque eu posso, ‘pá!’, morrer agora.
Aqueles 10 reais não pagaram nem a menor parcela da energia positiva que eu levei. E oportunidades de bons negócios assim, só aparecem uma vez na vida. Melhor não desperdiçar.