quarta-feira, 19 de março de 2008

milagre

A história preferida de Rolando Telles era um milagre. O padre Raposo que desviou das balas de revólver. Numa estrada sombria, bem à noitinha, um capanga encurralou padre Raposo a mando de Honório, por desavenças de família. Padre Raposo ficou do lado da moça que se separou de Raul quando descobriu sua amante. Honório, pai da moça, nunca perdoou. Numa noite de abril, descobriu que padre Raposo partiria da fazenda Esperança para a cidade mais próxima, Nagibe, e nem perdeu tempo. O capanga sabia que o padre tinha horas fora de si. As beatas contavam os olhos virados pro alto, a fala embolada e uma vermelhidão que subia quando padre Raposo orava. Tinha muitos fiéis fervorosos, era quase milagreiro, ia ter de sumir uns tempos, mas o dinheiro era bom. Subiu a rampa que ia da porteira de Vacarias a Diabo Mole e ficou de tocaia. Ora ou outra toparia com o padre. O solidéu no meio da escuridão era a pista mais fácil para não se enganar com os peões locais, que largavam serviço nessa hora. O capanga fumou seu último cigarro de palha. Demorou.A fumaça subia lenta até o galho que ele podia ver da árvore em que se botou detrás. A fumaça era um ritual que gostava. No quintal, no lusco-fusco, ia para o quintal, botava o fumo bem pertinho, desenrolava a palha, alisava com o canivete que fora do pai, uma relíquia de família. Ajeitava o chapéu, dobrava as pernas, enrolava bem apertado do jeito que o fumo cheiroso não soltasse ponta e levava o cigarro na boca uma. A primeira baforada. A segunda já relaxava, soltava forte a fumaça na luz apagada do quintal, subindo, fazendo volta no telhado até sumir no pretume, sozinho, dever cumprido. E lá vinha padre Raposo, só devia ser, uma roupa cumprida só pode ser de padre, o solidéu, um porte de padre. Um trote ritmado, meio teimoso, coisa de padre, rompendo a estrada, pouca poeira, tinha chovido. Armou a arapuca. Tão logo padre |Raposo passou a curva, tava lá o capanga, armado de revólver e coragem. Tascou um discurso de matador. – O senhor pára, o senhor pára, o senhor pára. Um respeito devido a Deus.
Padre Raposo, que vinha fazendo orações no caminho, não se opôs. Brecou o cavalo na mansidão, esperando ver o que sabia. O capanga empunhou a arma, destilando a raiva necessária para não tremer. Foi a hora em que padre Raposo pediu.
– Só um instante, só um instante. E rezou rápido um padre nosso e tirou o solidéu no mesmo instante em que as balas zuniram pelo ar fresco da noite, saindo uma a uma na direção do alvo, riscando o breu sem meia volta na estrada . Uma a uma depositadas no solidéu qual caixinha de bola de gude, caíram assentadas no chapéu de padre Raposo que não gritava nem sorria, esperava, olhando pro alto, tal como as beatas contavam, um olho de vidro pro céu, um olho que não estava ali nem aqui, num lugar desabido. Foi então que o capanga se ajoelhou – Rolando Telles se ajoelhava – pediu perdão três vezes, contou seu mando, seus pecados, sua vidinha medíocre. Padre Raposo catou as balas no chapéu e pôs no bolso – estão até hoje com seu pai, Rolando Telles sussurava com mistério – perdoou o assassino e pediu praquela história não se repetir. Aprumou seu cavalo e seguiu para Nagibe, apertando as balas no bolso da batina às vezes.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O texto abaixo não é novo, mas está atualíssimo.

Quem somos?

Acabou. A Semana da Mulher passou e voltamos todas e todos à realidade nua e crua. Nada de beijinhos, abracinhos, botões de rosas vermelhas e felicitações nos ambientes de trabalho e nas ruas. Quem ou quantos vão se lembrar ou ao menos pensar no verdadeiro motivo de ´comemorarmos´ o Dia Internacional da Mulher? Alguém se habilita? Pois é...

Nesse mesmo dia, em 2006, tive que explicar a uma mulher porque essa ‘comemoração’ existe. E essa mulher já tinha na época mais de 30 anos e não era inculta, muito menos ignorante. Bacharel em Direito, não exercia a profissão, mas era ativa no mercado de trabalho de São Paulo. Só que na ocasião não tinha sequer idéia do por que desse nosso dia.

8 de março de 1857. Operárias de uma fábrica de tecidos, em Nova Iorque, fazem uma grande greve. Elas ocupam a fábrica e reivindicam melhores condições de trabalho, equiparação de salários com os homens e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação é reprimida com total violência. Elas são trancadas dentro da fábrica, que é incendiada. Cerca de 130 tecelãs morrem carbonizadas, num ato totalmente desumano.

Sinceramente, desde que conheci essa história passei a detestar receber rosas no Dia Internacional da Mulher. Ganhar flores, pra mim, é um presente ligado a romantismo afetivo, ou pior, a um pedido de desculpas descarado de um homem que traiu sua mulher (conheci vários confessos). Também não gosto das dezenas de felicitações que me chegam por e-mail. São todas muito parecidas: “somos lindas, maravilhosas, gostosas, cheirosas, perfeitas e necessárias” ou “temos um dia só pra gente, então vamos comemorar!!!!!!!”.

Enquanto isso, num escritório muito próximo daqui, uma mulher cabisbaixa, encolhida como um feto, tenta dar rumo a sua vida diante de uma advogada de um projeto social. Ela foi violentada durante toda a vida pelo pai e pelos irmãos. E o marido, segundo ela, nem é tão mau: “Ele me bate, sim, mas só um pouquinho...” Essa mulher, muito provavelmente, recebeu uma rosa de presente quando chegou ao trabalho de manhã. E o que é feito por mulheres assim? Porque ela não considera tão mau o homem que ´bate pouquinho´?

Porque ainda somos hipócritas. Porque ainda preferimos fechar os olhos ante o desconforto da realidade. Como aquela deputada que entra num evento na semana da mulher e diante de um auditório lotado de mulheres que realmente fazem algo de útil pela questão do gênero despeja um discurso pra lá de antigo, tipo ´a luta continua´, e em seguida sai de fininho. Gostaria de saber o que ela ou qualquer outra faz de efetivo pelas milhares de mulheres que ainda sofrem muito nesta sociedade de cultura machista. Ou somente providenciam rosas para parabenizá-las e enaltecer sua feminilidade.

O Dia Internacional da Mulher é um dia de reflexão, de pensarmos, nós mulheres, no que podemos fazer para melhorar nossas vidas e das nossas semelhantes. Dia de sair do conforto de nossos lares felizes para levar um abraço, um afago, um par de ouvidos àquelas que padecem diariamente de horrores que nem podemos imaginar. Dia de arregaçar as mangas e de ter boas idéias, propor mudanças, programas, projetos. De mostrar ao mundo que somos mulheres sim, com muito orgulho, não apenas para o deleite dos homens, porque somos cheirosas e gostosas, mas para viver com o mínimo de dignidade que qualquer ser vivo merece e tem direito.
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quinta-feira, 6 de março de 2008

Carta de Havana




“Este país não se chama Cuba, se chama Paradoxo. País muito curioso para nativos e estrangeiros, aqui se juntam os imigrantes europeus mais vis com os escravos negros vindos da África, com os chineses arrancados do formigueiro asiático, mais os aventureiros e falsos idealistas que vêm em Paradoxo uma droga, um alívio para suas frustrações”. O primeiro parágrafo de “La Visita De La Infanta”, do escritor cubano Reinaldo Montero, é meu ponto de partida. Montero me leva gentilmente ao bairro chinês de Havana, onde há uma foto de Fidel Castro na parede, comendo de palitos, diante de uma garrafa de Coca-Cola daquela mais redonda e tradicional. O registro precioso foi a única foto que sumiu na volta da viagem. Mistério. O bairro chinês está em Havana Velha, uma convulsão arquitetônica mais a sensação de que teria sido bombardeada na noite anterior.
A decoração é um kitsch sem tamanho. Ao meu redor, nenhum estrangeiro. Um privilégio num país em que há uma moeda para os nativos e outra para os gringos. A fila para o famoso sorvete Copelia dobra os quarteirões se o pagamento for em pesos cubanos. Nós pagamos em pesos conversíveis – o dólar desmascarado – e saímos chupando sorvete em frente a dezenas de pessoas na outra fila.
Para o ídolo-herói-poeta José Marti, a alma cubana é uma senhora velha que todos os dias faz a mesma coisa, e do minguado salário tira quatro partes iguais para parentes distantes. Um alívio que não sejam mencionados salsa, rum ou chicas. Nem se pode atestar oficialmente – estatísticas não existem em Cuba – mas o busto de José Marti é a imagem mais reproduzida naquele país. Em cada escola, José Martí recepciona as crianças do lado de foram, normalmente um busto em gesso. Tal como em tempos de campeonato, só se fala em beisebol, só se joga beisebol.
Amargura é o nome da rua que leva até a praça onde a ONU tenta restaurar as fachadas de casas cubanas para os turistas. O sonho de Juan é conhecer o Rio de Janeiro. Mas sou alertada que se eu fosse francesa, Paris seria o alvo. Ensolarada, Havana é Paris tomada, enfim, pelos imigrantes, canta um poeta local. Enca, com medo, segue lendo livros que lhe presenteiam os turistas espanhóis. “Alugar o quarto da minha casa é uma universidade”. Varadero não é Cuba, para o professor de Matemática Tony. “As vezes corro, corro 14 km e sinto que estou preso”. Tony mantém um celeiro no quintal de casa. No lugar de milho, livros proibidos pelo regime e charutos dados pelos amigos que trabalham nas fábricas.
Alfredo interpreta Xangô num show musical para turistas e nem se importa com o número de horas do discurso de Fidel Castro. “Ele sempre tem alguma coisa importante a dizer, normalmente no final”.
Os meninos atravessam correndo a via mais movimentada de Havana, pulam sobre a mureta do Malécon e se atiram, de cabeça, num quadrado de água do mar entre rochas pontiagudas. O exercício de precisão resulta em palmas da platéia familiar, sob um sol fortíssimo, ainda que tecnicamente, seja inverno. Amarelo, azul e rosa. Ao final do dia, a vontade é entrar numa caverna.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Meu sábado por um cisco
A fragilidade humana, sem aviso prévio


Sábado à noite. Depois de uma semana inteira de expectativa pelo fim de semana e de um dia inteiro de trabalho duro, entro no banho, me preparando para uma longa noite de diversão, quando um cisco encontra um cantinho do meu olho direito. Do cantinho, move-se para debaixo da pálpebra superior, bem no meio, me impedindo até de piscar. Para quem esperava uma noite de puro relax, foi uma questão de segundos para viver o fim do meu sábado, por um cisco.

Em 15 minutos estava no hospital, de olho fechado, segurando-o com a mão, para não sentir dor. Deito na maca, luz em cima, médico com o cotonetes pronto para entrar em ação, abre o olho e ... "É, pelo jeito esse não faz parte do grupo caseiro, aquele pretinho, poeira da CSN. Não consigo vê-lo". Anestésico, abre o olho de novo e cotonetes e jato de soro. Nada. Saio do hospital com um 'baita' curativo e a recomendação de voltar no dia seguinte, caso o cisco ainda permanecesse lá. "Agora você precisa dormir", disse o médico, no meu sábado, às 11 da noite.

Depressão. Desânimo. Uma sensação de fragilidade que só aparece nesses momentos. Um cisco, invisível a olho nu, tem a capacidade de fazer tamanho estrago. Jamais tive tanta certeza que somos menores que átomos nesse universo infinito que nos rege. Ou seja, "muito pouco ou quase nada". Estamos à mercê de forças superiores, a qual chamo de Deus, outros de Alá, Oxalá, Jeová, ou somente força da natureza. Algo ou alguém oculto que fica lá, a espreita, esperando o momento certo de dizer "fica aí que eu tô mandando", como me mandaram ficar em casa naquele sábado.

E neste momento em que falo de fragilidade lembro de situações do dia-a-dia em que isso fica claro e às vezes hilário. Se me senti arrastada à cama por um cisco, o que dizer da frase "não posso ver sangue"? Isso mesmo. Anos atrás (não preciso dizer quantos, né?) trabalhava no Hemonúcleo de Barra Mansa (ainda era setor de Hemotransfusão) e recebia doadores de sangue todas as manhãs. Não era raro um marmanjo desmaiar antes, durante ou depois da doação. Falo em marmanjo porque eram aqueles homens enormes, musculosos, que costumamos chamar de armário duplex seis portas. Fragilidade é para qualquer um; ninguém está livre. Nem aquele bombeiro másculo que precisou de atendimento dos profissionais do Pronto Socorro para acordar.

Atualmente estamos à mercê de mosquitos. Esses pelo menos são maiores que ciscos. A diferença é que cisco não provoca a morte de ninguém. Pelo menos desconheço algum caso. E é mosquito da dengue pra cá, mosquito da febre amarela pra lá. E nós, seres humanos, numa movimentação constante para ver esses bichinhos minúsculos cada vez mais distantes do nosso convívio. Porque? Somos frágeis a eles, completamente impotentes àquela picadinha que poderia ser perfeitamente inocente. Afinal, somos gigantescos, não?

Somos gigantes, sim, da arrogância e da prepotência. Não nos dobramos a regras e leis, debochamos de tudo o que possa minimamente limitar nossa liberdade, afinal, "a vida é muito curta e a gente tem que aproveitar". Planejamos nossas vidas como se fôssemos sozinhos no mundo, sem o próximo, sem a certeira Lei de Murphy. E quando menos esperamos estamos presos à caminha quente, numa noite também quente de sábado, que muito merecia um chopp, por conta de um cisco.

E se a gente parar para pensar, é justamente à mercê de seres minúsculos, só visíveis em microscópios, que nós humanos acabamos. As piores doenças, que levam milhares de pessoas à morte, são causadas por vírus e bactérias, que estão aí, na natureza, desde que o mundo é mundo, aterrorizando nossas vidas. Aids, febre amarela, dengue, gripe aviária, varíola (alguém lembra desta?). E um monte de gente grande sucumbindo a essas viroses, que arrasam todo o orgulho, nariz empinado e queixo pra cima.

Um cisco. Entrou, saiu, ainda bem. E me deixou a certeza de que sou nada, ou quase nada, e agradeço diariamente às tais forças superiores que tenha ficado apenas, apenas num cisco. E que perdi somente uma noite de sábado.
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