quinta-feira, 25 de outubro de 2007

When it rains, it pours

Chuva no Rio sempre foi motivo de transtorno. Antigamente, começava o verão e a gente já sabia: vai ter gente morrendo, perdendo casa, faltando ao trabalho.
Nos tempos da Pólen me vi uma vez quase afogada em Madureira, e olhem, não tinha celular naquele tempo não. A gente ficava presa no trânsito e não tinha nem como avisar em casa, que dirá bater um papo (ou fotografar o caos e mandar um torpedo) pra se distrair. Nesse dia de Madureira o que me restou foi me conformar, estacionar o carro — é. naquela época eu tinha um. tive até motorista por um tempo, gente, sério: um preto supercharmoso, o Aloísio, que me levava pra lá e pra cá... num bugre vermelho sem capota, acreditem —, e esperar no bar a chuva melhorar, entre um chope e outro. Depois trabalhei na Fundição Progresso, pra quem não sabia fui produtora de artes plásticas lá durante o governo Collor (?), e lá vem verão, e chuva, e ruas alagadas e eu afogada de novo, o carro morto na Glória. Sem glória nenhuma, só o jantar forçado no alemão que tinha lá. A gente até aprendia a enxugar as velas naquela época, será que era isso mesmo? Ou vocês pensavam que nunca houve um tempo sem injeção eletrônica, me perdoem se estou falando besteira. Apesar de ter um irmão peagadê no assunto, não entendo nadinha de carro, e como todo mundo sabe, já nem tenho um. Desisti. Embora goste, de vez em quando, de dirigir sem rumo. E sem chuva, é claro.
O pior ainda não contei. Quando eu vivia em São Conrado, ao alcance das balas perdidas da Rocinha quando balas perdidas nem eram notícia ainda, fiquei ilhada na minha casa por quatro dias seguidos. Eu morava sozinha naquele baixio da curva, perto da Sendas, onde a rua sempre, sempre alagava quando chovia. Mas daquela vez foi um desastre. Não fiquei tão mal, é claro, quanto os pobres coitados que na mesma chuva perderam vida, casa, tudo. Só perdi tempo e um pouco de paciência, mas que me senti flagelada é fato. Começou não tendo luz. Depois cortaram o telefone e o gás. A água do prédio, ironia, acabou. Só sobrou a virada da minha piscina de fibra azul-clara, que salvou a paz olfativa de muita gente no prédio, fala sério: não servia pra cozinhar, mas pra outra coisa rolava, e tudo bem: toca pra frente até a água baixar, a gente enrolada na nossa arquinha esquecida de noé. Depois disso, claro, e não só por isso (o tráfego de balas também aumentou) acabei vendendo, pela metade do preço, a bela cobertura duplex de São Conrado. Os flagelados de Rio das Pedras levaram 90% das minhas belas roupas quando eu decidi optar pela simplicidade voluntária, já morando no Alto Leblon, onde qualquer chuvinha nos proporciona uma versão privada das Cataratas do Iguaçu.
Hoje estou com mais sorte. Graças ao advento do computador, da internet, do celular e dos blogs — não necessariamente nessa ordem —, trabalho em casa. Se chove, não saio e pronto. Tá certo. É o maior privilégio, a não ser, é claro, quando a gente não ganha nem um tostão há anos, e a grana não dá nem pra academia. Ah, gente, essa aí foi apelação mesmo: não vou mais à academia por vontade própria, e quando chove no Rio, depois da — segundo o jornal — mais longa seca desde 1997, perco a contragosto o meu exercício diário: um tremendo transtorno. Tenho que me virar sem a minha dose cotidiana de serotonina na veia, fazer o quê.
Pelo menos fico sabendo, pela internet — é, porque hoje, devido às chuvas, o jornal atrasou —, que a tendência ao otimismo não só é humana, mas até bem normal: uma estratégia natural de sobrevivência, embora tentem, a todo custo, nos tirar este remédio natural do estojo de emergência.
Choveu, tá ruim. Não choveu, tá ruim. Acabo concluindo é que repórter urbano é jovem demais pra conhecer a história dessa cidade, Rio que me seduz, de dia falta água de noite falta luz. O que não justifica os desastres, claro, nem o desleixo da prefeitura, mas vamos combinar: caíram menos encostas desta vez, e mesmo gente, até que morreu menos. Vai ver é porque com o tiroteio nos morros não sobrou ninguém pra morrer no desabamento. Ponto pro tráfico liberado de drogas.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

acalentos e acalantos

foi pra não pensar em você que decidi pôr ordem nas coisas: lavei a casa, mudei todos os móveis de lugar, desinfectei o chão, coloquei cheiro de novidade no ar da sala, tirei a tv do quarto, troquei as fotos do quadro azul, recebi visitas, pedi mangueira azul no vizinho, coloquei o amontoado de roupas usadas pra lavar. outras músicas ouvi, suco de manga verde almocei, o celular desliguei, ao noticiário nacional assisti, a nina banhei, acessório no sofá coloquei, cores ao vidros vazios da prateleira dei. preenchi-me. tudo para não ter um único pensamento em você.
e exatamente na última faixa do cd - numa ode à grécia – eu penso nos deuses, na análise sintática das orações, em santorini blues (de novo o azul) e seu nome ecoa pela casa limpa, arrumada e vazia. foi justamente aí que a água começou a derramar do balde inundando o quintal, tendo que recomeçar a limpeza.
sorri e pensei no quanto sou boba e que arrumo a casa e a vida pra te esperar chegar.

entrego os pontos: é mais forte do que eu.

vem,
se me trouxeres acalentos e acalantos
eu fico

(fátima souza)

sábado, 20 de outubro de 2007

Porque hoje é sábado:
reflexões impublicáveis de uma vaca judia



Por trás da beleza divina, da genialidade dos gestos, da história triste de exílio e infância pobre de Rudolf Nureyev, o deus da dança do século 20, não seria difícil imaginar a existência (como se viu, nem tão) oculta de um verdadeiro "monstro sagrado", como o descreve em sua "afetuosa" biografia a inglesa Julie Kavanagh. Mas pelo que se lê no artigo de Marília Martins publicado no Globo de hoje, e na resenha linkada do Guardian, a coisa era ainda pior. Como todos os amantes da dança de minha geração sempre babei por Nureyev, a quem nunca tive a oportunidade de assistir no palco. Nem por isso achei agradável saber que o ídolo "transava com homens por paixão e com mulheres por interesse", traía seus mecenas e ainda por cima os ofendia em público, como fez com Jane Hermann, diretora do Met, ao chamá-la de "jewish cunt" num restaurante.
Mas deixa isso pra lá porque hoje é sábado, dia de indulgências, de ficar à vontade, de recair em vícios que vimos combatendo com grande empenho. Calma, gente. Não estou falando de ler e citar o jornal, mas da mania auto-imune de extrair verruguinhas e casquinhas de ferida com a unha, arrancando sangue da minha pele fina.
Confissões à parte, não vou me estender demais, vocês sabem. Como toda mulher moderna, enfrento todo dia uma jornada dupla, ultimamente tripla, é: sou escritora, agora benfeitora das artes, e last but not least não tive filhos mas tenho marido, o que todo mundo sabe, dá um trabalho danado. (Todo mundo sempre soube mas foi Cecília Troiano quem escreveu a respeito, em seu "Vida de Equilibrista".) Não é à toa que estou sempre exausta. Ultimamente mais ainda, porque não durmo há dias. Basta eu cair naquele sono gostoso, debaixo do meu cobertor de lã, pra acordar meia hora mais tarde morrendo de sede e calor, suada, com a mente ocupada em destrinchar mais um detalhezinho do meu projeto de Mecenato: a última idéia é montar uma loja online pra vender os livros, fotos, desenhos e esculturas dos MeMo's a preço voluntário, num contato direto do artista com o seu consumi... ops: admirador. É, gente. Depois dos Radioheads, preço voluntário é o último hit, que Creative Commons que nada. Mais sobre isso mais tarde, isso é, bem mais tarde, porque neste sábado, fala sério, preciso:
- ler o jornal atrasado da semana inteira
- ler o New York Times com ênfase para o Book Review
- terminar meu projeto MeMo para entregar ao MinC
- preparar um superespaguete ao molho fresco de manjericão orgânico
- dar atenção ao maridinho, coitado, seduzido, esquecido e abandonado
Isso, claro, se eu não ceder à tentação de passar o sábado inteiro montando a estrutura da tal da loja MeMo, mais um item delirante no meu sonho de "fazer pelos outros o que queres que façam por ti".
Pra terminar, pode até ser que eu esteja ficando burra — ou quem sabe simplesmente exausta —, mas não consegui entender se a resenha do badaladíssimo romance novo de João Paulo Cuenca, no Prosa de hoje, elogia ou critica. A coisa é por demais morde-e-assopra, e na minha memória só sobrou uma frase: "O Dia Mastroianni" não busca profundidade. O que para mim bastou, porque o "ritmo e velocidade, impactos e sustos, personagens se drogando, se embebedando e trepando sem afeto" passam uma impressão ensurdecedora de barulho, e como muito bem diz Frei Betto, "há demasiados ruídos à nossa volta". Temos direito a um pouco de silêncio, pelo menos aos sábados. E a esperar que valha a pena essa nova vida de mecenas moderna... que meu projeto "pegue" e que meus futuros protegidos, entre os quais se inclui meu eu escritora, não decidam um dia se voltar publicamente contra mim.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As pré-balzaquianas

- Amiga, estou em crise. Já vou chegar aos trinta. Isso significa que nunca mais vou ser gatinha.

Foi o que uma pessoa querida me confessou entre um e outro copo de café gelado. Quando respondi que a tal crise pré-balzaquiana não me afeta, pelo menos por enquanto, ela me olhou com certo espanto, que logo foi substituído por um quê de admiração. "Me diz como você faz", ela me pediu. Esta crônica então é para atender a este pedido e tentar, quem sabe, remediar a ansiedade que muitas garotas sofrem ao chegarem perto dos trinta e entenderem que não podem adiar mais suas vidas como mulheres feitas.

Algumas sofrem da "síndrome" de um jeito esparramado, querendo assumir de vez a nova condição, sem sucesso. Outras a enfrentam de um jeito discreto, como se não estivesse acontecendo. Existem ainda aquelas que experimentam seus efeitos retardados, alguns anos depois de chegarem na terceira década, mas, independente de seus sintomas, talvez nenhuma de nós esteja imune. A crise dos trinta parece ser um desses joanetes filosóficos que machucam nossos pés de vez em quando. Talvez a crise seja o calcanhar de Aquiles das mulheres. Eu não sei bem, ainda não fui acometida pelos sinais. Até o presente momento, o retorno de Saturno tem se mostrado muito generoso comigo. Ah, não sabe o que é o retorno de Saturno? Bom, toda mulherzinha deveria saber. Se você não sabe, das duas uma: ou é homem ou não é mulherzinha, então, certamente, esta crônica não é para você, que não está passando por uma crise e não está nem um pouco preocupado(a) com o que possa advir disso. Então pare de ler por aqui.

As pré-balzaquianas não precisam da sua compaixão. De uma certa forma, não precisam da compaixão de ninguém. Dispensamos pena. Entretando, contudo, porém, queremos ser compreendidas. Ouvidas, pelo menos. E ficam certos questionamentos: será que algum dia nós superamos esta suposta crise ou o que acontece é que encontramos ferramentas cada vez mais sofisticadas para escondê-la? Será que disfarçamos as preocupações, tentando apagá-las com os tratamentos estéticos de ponta? O que fazer para não nos pegarmos dizendo aquela frase da música, "ah, se eu soubesse o que eu sei"?

Bom, vamos por partes. Vamos voltar ao início. Nós nunca mais seremos gatinhas. Isso lá é verdade. "Eu posso ser uma mulher bonita, mas nunca mais vou ser gatinha", minha amiga argumentou já no segundo copo (será que pré-balzaquianas deveriam tomar tanta cafeína?).Tudo bem, quem precisa ser gatinha? Desde quando ser "inha" virou sinônimo de beleza? Será que damos tanto valor à juventude que, quando ela começa a parecer distante, não nos sobra mais nada para oferecer? E quem disse que ser jovem é o mesmo que ser bonita? Acreditar nisso significa que precisamos perpetuar uma indústria antinatural que corre contra o tempo, que nos aprisiona num padrão e nos obriga a sermos novas, praticamente saídas da puberdade, com pele lisa, sem celulite ou estrias, corpo sarado, proporções perfeitas, seios turbinados, sorriso imaculadamente branco e enfileirado, ou seja, você tem que corresponder a uma imagem que mulher alguma reflete no espelho de casa.

A mensagem é clara: minha filha, você não pode ser o que é. Se vire. Você já era. Você é last season, é vintage, é retrô, existe um exército de pós-pubescentes muito mais bonitas que você, muito mais frescas, muito mais gostosas. Se vire. Volte no tempo. Estique a cara. Previna as rugas. Depile tudo. Tudo mesmo, viu? Para ficar peladinha feito uma menina... O recado que nos passam é vil e impuro e desleal. Vivemos numa sociedade esquizofrênica que diz que deu liberdade e autonomia às mulheres, mas que desconsidera seus corpos, sua real sexualidade, seus desejos, seus valores, suas necessidades. Somos tratadas como eternas meninas num mundo que praticamente nos impede de sair da Terra da Nunca. Não somos levadas a sério, nossos pensamentos são menores, nossas vontades são menores (e nossa renda idem), nossos corpos têm que cumprir a árdua tarefa de regredir no tempo. Não tenho mais vergonha do ridículo, então vou dizer: para mim isso é pedofilia institucionalizada. É patrulha. É prisão. Nós só achamos que estamos livres, mas fazemos de tudo para cumprir padrões que não escolhemos. Queremos tanto nos encaixar, encontrar nosso lugar num mundo excessivamente masculinizado, que somos capazes de qualquer sacrifício, somos capazes de abdicar de nossos prazeres para chegarmos um pouco mais perto de uma quimera. O que é melhor? Ser infeliz e perseguir um ideal impossível ou optar por uma vida plena, livre da vergonha de ser quem é?

Está bem, talvez eu esteja exagerando ou sendo muito radical. Normal para mim, embora meu bom senso (ou intuição?) já tenha me salvado de poucas e boas. Vou dizer para vocês por que a crise pré-balzaquiana é desnecessária. Para isso, ilustro com minha própria experiência. Me deixem regredir dez anos... Quando eu tinha dezoito, pesava de cinco a dez quilos a menos do que hoje e me achava gorda. Não tinha vivido um grande amor. Não ganhava meu dinheiro. Não fazia idéia do que queria ser quando crescesse. Era preconceituosa. Tinha medo de viver e de me entregar. Não tinha experimentado boa parte das aventuras que a vida oferece. Ou boa parte das desventuras. Era de poucos amigos. Escondia meus quereres. Acordava já achando que o mundo estava de mal comigo, que eu era uma coitadinha. Me digam como é possível ter saudade disso? Hein? Talvez seja por todos esses fatores que eu tenha me reconstruído. E que não exista motivo algum para querer disfarçar qualquer sinal da passagem do tempo. Para que ter vergonha da idade se é ela quem nos oferece tantos presentes? É viável caminhar neste mundo sem perder a essência rebelde da adolescência, mas abraçando os ganhos e a positividade do tempo. Ele nada nos toma. Apenas ensina e modifica. Hoje, dez anos depois, aprendi a dançar, amar, perder e ganhar, aceitar elogios, acordar com um sorriso no rosto, ter esperança, ver poesia num homem dormindo na minha cama, escrever, dizer o que quero com responsabilidade, me expressar, pensar sem ter dor de cabeça, não pensar em nada e viver o aqui e o agora, usar franjinha, ter estilo, economizar, gastar dinheiro, trabalhar, fazer e acontecer, dar asas à minha porção hedonista, positivista, socialista, capitalista, epicurista ou qualquer outro "ismo" que esteja na moda (sem esquecer de quem sou e o que estou fazendo aqui), ter senso de propósito, fazer as sombrancelhas, devorar o mundo com gula e agradecer cada oportunidade recebida. Agora me digam por que eu sentiria falta do passado? Por que seria quem sou hoje sem carregar no corpo as marcas da minha vida? Por que teria que abdicar da minha flexibilidade para viver uma ilusão?

Vou confessar: não vejo a hora de aparecerem as primeiras ruguinhas, de ver o corpo modificado pela chegada dos filhos e pentear as mechas brancas nos cabelos. Louca? O dia em que eu não puder mais ser "louca"... Mas preciso dizer que acho que loucas podem ficar todas as mulheres que se rendem a esta prisão das idéias, a estes desprazeres. Loucas são todas as que acordam e não conseguem ver a vida num raio de sol, todas as que não aceitam o convite dos mistérios para dançar. E, se o que vejo hoje foi trazido pelo tempo, significa que, com os anos, passarei a enxergar e conhecer mais e mais. Agora me digam por que eu haveria de querer ser o que eu não sou? E, se a revolução de Saturno tem sido tão proveitosa, que venham as próximas, que eu seja sacudida pelos ventos, pelos furacões da alma, que eu não tenha vergonha das minhas futuras pregas nas mãos, que eu continue vívida por dentro, viva por fora, radiante, com a beleza das pessoas felizes, não a beleza falsa e adúltera dos que vivem perseguindo os estereótipos. Minha franqueza pode assustar alguns. Existem inclusive os que fogem da verdade para conservar as aparências de louça. Minha crônica é em homenagem a você, minha amiga. Que a crise pré-balzaquiana vá embora tão logo você assopre as velinhas, porque o tempo sim é irreversível, a nossa evolução, não. Balzaquianas, é? Que cheguem os próximos dez, vinte, trinta anos. Serão recebidos de braços abertos e com muita festa, como se recebe a todos os bons amigos.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

da janela não via nada
Janela é pra se deixar ver
E se perder nas múltiplas cores de fora
Resguardando as metades de dentro
Janela é espiadouro do nada
É hábito da gente
É o pra fora da casa
Protegendo os gostos de dentro
Os cheiros rápidos do fora
Imunes ao contorno dos quatro cantos
Na janela
A vida é o limite
No quase encontro dos
dentro e fora

domingo, 14 de outubro de 2007

É dose!

Autora mulherzinha faz beicinho e esperneia contra críticas infundadas.

(Publicado originalmente em http://oglobo.globo.com/blogs/paralelos .)

Estou sendo vítima de um desserviço literário cruel.

Há dois dias, recebo um telefonema de minha editora me comunicando que enfim o Prosa & Verso me daria de presente uma resenha sobre meu livro de contos "Amor em pílulas", lançado em novembro do ano passado. "Quase um ano depois", pensei. "Antes tarde do que nunca". O fato é que ainda estou esperando pela tal resenha e o café do fim de semana prolongado foi tomado ao sabor de presente de grego.

A crítica de Beatriz Resende, recheada de achismos que uma segunda leitura do livro trataria de desfazer, aponta uma certa "pressa", que, segundo ela, comprometeu o aproveitamento de "Amor em pílulas", estando ele incompleto, como se precisasse de um fermento para crescer. Acusada de "fazer beicinho" e ter "súbitas crises de mulherzinha"(o que está longe de ser qualquer atributo literário), vim aqui, ao nosso espaço virtual, para espernear, como boa emergente que sou.

"Amor em pílulas" é sim um livro-laboratório. Ele reúne contos e experimentações (em sua maioria publicados em primeira mão na internet, em sites literários como Blogautores, a extinta Patife, Bestiário, a própria revista Paralelos e meu finado blog "à segunda vista") que foram alvo de críticas e elogios muito mais construtivos e consistentes do que este rol de acusações vazias, em tom até mesmo pessoal, na melhor tradição impressionista de análise de texto, que não encontra embasamento nos próprios contos que deseja "discutir". Não há espaço para discussão. As frases da crítica são usadas de maneira autoritária, dignas de quem não aceita qualquer outra proposta formal diferente do conto clássico.

Minha "atração pelo presente" e minha pressa devem ter contaminado Beatriz Resende, porque sua suposta resenha sofre do mesmo mal crônico. Traduz uma leitura rasa e mal cuidada. Seu texto contém erros de digitação e informações mal apuradas, vindas de uma rápida pesquisa do meu nome no Google, deixando claro para um bom leitor a opinião da crítica a respeito da literatura online.

A internet é o espaço "experimental" (entenda-se: de pouco ou nenhum prestígio acadêmico), enquanto o livro é um lugar canônico, sagrado, intransponível, onde meros plebeus, como eu, não podem transitar. Ou seja, se você quer ser escritor, independentemente do veículo de expressão, não dê sua cara a tapa, esconda-se num pseudônimo, respeite as regras dos manuais escolares de redação e não tenha um pingo de audácia. Muito menos o atrevimento de nunca estar pronto. Escritor bom deve ser escritor morto, não é? Estar no presente é uma ofensa. Quais são os predicados que um escritor deve ter para ser lido? Quando ele atinge o merecimento da maturidade? Seria ele escravo de uma única obra-prima para o resto de sua existência? Ou o julgamento é precário?

Me admira que um suplemento literário de renome como o Prosa & Verso tenha a coragem de publicar um texto tão baixo, que ultrapassa os limites de uma crítica negativa, chegando à injustiça rasgada. Lamento que Beatriz tenha perdido seu precioso tempo com minhas notas de bloquinho. Eu perdi o meu abrindo o jornal esta manhã. É o que acontece com os novatos que não querem cultivar círculos de amizade cheios de interesse, que precisam aparecer nas livrarias para consignar como se pedissem um favor. Me sinto uma versão de luxo dos poetas que vendem seus textos a R$ 1 nas portas das faculdades. Mas podem ter certeza que não escrevo para mendigar elogios gratuitos. Escrevo para crescer e para isso não preciso de receita de bolo. Umas vezes posso colocar açúcar demais, outras de menos, mas é o meu bolo e isso deve ser motivo de inveja para alguns.

sábado, 13 de outubro de 2007

Overdose

Amor em Pílulas na Livraria Cultura----- Original Message -----
From: Noga Lubicz Sklar
To: Ana Beatriz Guerra
Sent: Saturday, October 13, 2007 12:16 PM
Subject: Há críticas demais

Oi, Bia

Em primeiro lugar, parabéns pela resenha no Prosa & Verso: sempre ajuda em alguma coisa. Se a menciono é mais para rebatê-la, rsrs, agora que já terminei de ler seu livro. Fiquei meio atrasada porque me envolvi numa loucura de projeto, se tiver tempo dá uma olhada: http://www.mecenatomoderno.org/.
Curti demais o "Amor em Pílulas", o conto, e as listas da segunda parte. Entre os outros contos de alguns gosto mais, de outros menos. Acho que ando com uma certa birra de personagens de ficção, sei lá, e engasguei um pouco, em raros momentos, no ritmo da prosa. Até concordo com a crítica de Beatriz Resende quando diz, sem dizer muito, que a escrita cresce ao longo do livro, mas não entendo essa insistência em exaltar "a crueldade demais" em detrimento do "amor demais". É por isso que o mundo não vai pra frente. Ou vai, mas segue tropeçando. Digo isso, claro, sem conhecimento de causa. Ainda estou no amor; não cheguei na crueldade e queira Deus que não chegue nunca (fora do livro, I mean). Isto dito, não vi crueldade demais nos "Contos de loucura", apenas desamparo: o outro lado, o lado sombra do amor, que o faz valer ainda mais a pena. Pois loucura é exatamente isso: o avesso, a falta total de amor.
Achei o "Dermografismos" muito interessante, neste ponto concordo com a Beatriz. É baseado no filme do Greenaway, não? Adorei o texto decalcado nos lençóis, sério, foi o que gostei mais que tudo, é dessas coisas que faz a gente ainda se animar com a literatura.
Quanto às listas, que sua semi-xará considera apressadas, você já sabe: eu achei lindas. Que mania de criticar a criação alheia por algo que você mesmo não entende! Pô! As listas, digo e repito, são lindas, e deixam ao espectador o trabalho de elaborá-las, ou digeri-las. Ponto pra elas. Ponto pra eles.
A gente cresce fazendo, Bia, não vejo porque você deveria esperar mais. Tem muita gente grande por aí que não é digna de lamber os seus pés, e muito escritor imaturo fazendo sucesso com textos menores, só porque são queridinhos da mídia.
Já tenho na cabeça a primeira frase do meu artigo: "o talento promissor da escritora Ana Beatriz Guerra me serve de consolo", ou algo assim, querendo com isso, claro, lucrar alguma coisa ao afirmar que fazemos parte da mesma turma de escritoras não-devidamente-reconhecidas. Afinal de contas (apud "Amor em Pílulas", página 119), também preciso da grana, mas não é por causa disso que te resenho. É só por amor à literatura, entende? E pra evitar sofrer um dia a dor do seu personagem, que injeta a realidade da cocaína na veia porque "já não suporta mais viver de ilusões".

Me aguarde. Beijos! N

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Pratique o eu


oolhos-de-pinter, d'àpres Steven Forrest/ The New York Times


"Não sou nada. /Nunca serei nada. /Não posso querer ser nada. /À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.", diz Fernando Pessoa, quero dizer, Álvaro de Campos, em seu poema "Tabacaria", linkado por Carla Rodrigues em seu blog. Fernando Pessoa é pessoísta à beça. Enquanto escreve seus poemas magistrais, descreve a si mesmo como o mais vil dos homens, abjeto, um fracasso completo se comparado aos demais, como reforça este outro poema dele — Poema em linha reta — que eu sei quase de cor e no qual me reconheço. Fala sério: é muito pessoismo.
Comparar-se aos outros é mesmo um perigo. É causa ou efeito de depressão, uma doença que piora com a idade, é, gente, a velhice tende mesmo ao pessimismo, não é? Bem. Às vezes não. Como prova o habitualmente irônico Millôr Fernandes, do alto glorioso de seus 84 anos: "O mundo melhorou. Estamos vivendo o melhor momento da humanidade. A higiene é recente. Antigamente, a média de idade era 42 anos, hoje é 80." Tá certo. É bem millôr reconhecer isso. Mas o rótulo de humorista, o jornalista recusa e o entendo muito bem. Se é perigoso ser otimista, fazer humor é mais perigoso ainda.
É o Alan quem me ensina: "o sarcasmo é a forma mais baixa de inteligência." Quanto a mim, não sei porque, desde que casei com ele venho me tornando cada vez mais mordaz, e isso, apesar da vidinha feliz e pacata que nós dois levamos. Por outro lado, foi ele mesmo quem me apresentou ao humor corrosivo de George Carlin, não custa nada sklarecer. Aos meus ouvidos brasileiros soou, a princípio, meio estranho: um tipo de humor que não se aprende na escola, não, gente, de jeito nenhum: nasce com a gente, uma coisa assim, digamos, cárlica. Mas que se agrava com a prática... quanto a isso não resta dúvida, eu que o diga, com as minhas tiradas terrivelmente incorretas, como por exemplo o hábito de publicar certas coisas aqui no blog fazendo associações livres que ninguém mais entende, e até mesmo antecipando um preconceito sutil que ninguém, mas ninguém mesmo, jamais perceberia se eu não o apontasse.
Tomar os outros por si não faz bem nenhum. Pior ainda é seguir o conselho de quem nunca quer o bem alheio, como demonstra no Globo de hoje Babu Santana, prêmio especial do júri no Festival do Rio. O ator nos conta que trabalhava em uma livraria no centro do Rio quando pensou em fazer o teste para o Nós no Morro, e ouviu da dona da loja: "Para que você quer fazer teatro? Você é feio, negro, queixudo. Corta um dobrado para sobreviver, para que tentar o teatro?" A atitude estimulante da moça não é incomum, mas vamos combinar, não foi nada babu da parte dela.
Bom mesmo é praticar o eu. Quanto mais você é você mesmo, mais você mesmo você se torna, se é que vocês me entendem. Foi por isso que não entendi nada ao ler o título do artigo no Globo sobre Harold Pinter, reproduzido do New York Times, de onde vem também a foto aí de cima: "Aos 77, ainda pinteriano." Uai, gente. E quando você envelhece, deixa de ser você mesmo? Do que não gostei nem um pouco foi da tradução do adjetivo que é tema do texto, no inglês original "pinteresque". Pinteresco, esclarece a autora, significa "cheio de dicas obscuras e sugestões, que deixa a audiência na incerteza até a conclusão", uma descrição exata da "singular e inclassificável" obra de Pinter, hum, me identifiquei com essa. "Nunca consegui escrever uma peça feliz, mas consigo aproveitar uma vida feliz" me salva Pinter, mais uma vez.
E por favor: não me acusem de elitista por linkar o New York Times, gente, não é nada disso. Só fiz isso porque o Globo não o permite, numa política bem assim, hum, deixa pra lá. Por falar nisso, o Alan reclamou à beça do meu projeto para os MEMO's que vai, segundo ele, na contramão das tendências, querendo cobrar pra ser lido (ou visitado), coisa de que a mídia online, em todo mundo, vem abrindo mão. Mas não, faço questão de esclarecer: a idéia do mecenatomoderno não tem nada a ver com cobranças mas sim, como o próprio nome diz, com mecenato. Em outras palavras: o milenar patrocínio de artistas por quem pode, e escolhe apoiá-los.
Ah, sim, vocês perceberam. Parece que eu, finalmente, mudei de obsessão, e já não falo tanto no meu Hierosgamos, o fracassado romance que ninguém quer ler, mas agora vem cá: tá certo que a autora dele não é nada popular — é mau-humorada e de muito poucos amigos —, o que não altera em nada a qualidade literária do texto, não é mesmo? Pouquíssima gente o leu, e quem já o fez, adorou. Insistir nisso agora até parece renancismo, mas no fundo no fundo, é noguice pura. E estamos conversados.
Esses zoinho azul
Me trazem a notícia boa:
Eu vivi
Pari um mundo de memória
As mãos dando nós
A sua tristeza londrina
de Minas
Eu soube.
Eu palpitei sem sino
Só de zoinho azul passando
Encaracolando meu desejo
Esvoaçando meu chororô
Você que é tão dramático e nem sabe
Meu personagem em preto e branco
Remando pra lá da minha corrente
Soluçando sorrindo

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

As boas compras

Salvador, Bahia. Terra de sol, praia, água de coco e do povo manso. Do pelourinho, do farol, das baianas e seus acarajés quentes. Aliás, quente não é só a comida ou a temperatura indicativa de que estamos mais próximos ao equador. Quentes são as baianas e seu gingado. Felizes e com um papo que une esperteza, o manso e o gingado, os baianos também tentam ganhar a vida. Não rebolam ou usam longas saias brancas. Mas protagonizam momentos inesquecíveis, engraçados e, diríamos, de uma sinceridade singular. Para o feijão de cada dia, o jeito mesmo é rodar a baiana.
O dia era comum, as pessoas eram as mesmas, o momento era férias. Dar um jeitinho na cor branco-cândida da pele paulista. Era Salvador a salvadora. E eu só conseguia pensar que o mês era agosto e meus amigos estavam passando frio na cidade de concreto. A São Paulo. Sem entender ao certo o porquê das pessoas fazerem a migração do mar azul e límpido, que eu observava naquele momento, para o agradável odor do famoso rio Tietê. Eis que me surge um soteropolitano que preferira o mar. Ganhava a vida na praia. Em seus braços, fortes e bronzeados, uma infinidade de colares, pulseiras e brincos.
“Boa tarde, ‘dotô’. Vai um colarzinho para a namorada?”
Não, eu não queria. Também não namorava. E talvez o fato de ele me lembrar disso me chateasse um pouco.
“Não”
Ele iria embora, assim como todo e qualquer vendedor ambulante que encontro nas praias do Guarujá. A clientela era vasta e ele não perderia tempo demais, ali, comigo. Ledo engano. O baiano não é o paulista. Ou o baiano-paulista. O baiano tem no seu sangue a tal da ginga que eu comentei. E era com essa ginga que ele queria me conquistar. Eu não era só mais um. Para ele cada um é um e todos formam o seu ganha-pão. Ele estava disposto. Bem disposto.
“Calma senhor! Eu não quero vender nada não! Só quero conversar. Por que o que adianta eu vender isso aqui se amanhã eu vou morrer?”
Ai meu Deus. Lembrou-me da falta de namorada e ainda diz que eu posso morrer amanhã. Não.. Eu não quero morrer amanhã! Ainda sou novo. Quero ter filhos. Preciso conhecer a França.
“O senhor está de férias, eu estou de férias. É férias da vida, meu filho! Tá vendo esse pessoal todo aqui? Tá todo mundo de férias!”
Sim, férias. E depois de um ano de correria, trabalho árduo eu tinha as minhas férias. Agora, esse cara poderia sair um pouco da frente do sol. Me deixa quieto com as minhas férias!
“Olha moço, não vou querer o colar hoje não. Fica para a próxima.”
Ele sentou ao meu lado. Acho que não deu muito ouvidos para o que eu falei.
“Eu mesmo posso daqui a pouco ‘PÁ!’ morrer, tirar as minhas férias eternas. Daí, eu não vou levar nada comigo. Nada disso tudo aqui tem valor”.
E não é que o homem tinha razão? Mas eu não poderia dar o braço a torcer. Não teria ninguém para dar o colar, de qualquer forma. E, na verdade, não tinha muito dinheiro na hora. Só saíra com o dinheiro da cervejinha gelada. Pensei em levar o cara para uma empresa publicitária. Esse aí, certamente, ganharia muito dinheiro no ramo. Ou talvez abrir uma igreja. Seria um bom bispo. Arrecadaríamos mais dinheiro do que aquele bispo famoso que saiu no jornal.
“Então, o problema é que agora você me pegou um pouco desprevenido...”
Não concluí.
“Nada disso! Nem que o senhor me ofereça 30 reais por esse colar, eu não quero! Nem adianta tentar insistir. Eu quero só 10 reais. Não vou ter lucro nenhum, é só para pagar o preço da energia positiva!”
Aí. Energia positiva era algo do qual eu estava precisando. Muito mais do que um colar. E com essa frase, se o tal baiano de boa lábia fosse uma bela baiana de curvas bem torneadas, já tinha me conquistado ali. Na hora.
Resolvi levar o colar. O moço saiu com seu gingado pronto para conquistar mais uma alma. E talvez o colar não me trouxesse nada de mais. Mas aquela conversa me marcou. Talvez eu a leve por muito mais tempo do que o colar, que eu já nem sei onde deixei. Era o calor baiano. Voltei para São Paulo de férias ainda. Afinal, se não vivemos, deveríamos todos viver de férias. Sempre. Antes daquelas eternas, viver. Porque eu posso, ‘pá!’, morrer agora.
Aqueles 10 reais não pagaram nem a menor parcela da energia positiva que eu levei. E oportunidades de bons negócios assim, só aparecem uma vez na vida. Melhor não desperdiçar.

domingo, 7 de outubro de 2007

Distantes

Minha vizinha está grávida. De seis meses. E só agora fiquei sabendo. Dividimos as paredes em casas geminadas, mas quase não nos vemos por conta dos horários de trabalho. Quando a encontrei, dias atrás, levei um susto com aquela barriga, principalmente por ser ela uma atleta, que sempre exibiu aquele corpo torneado sonhado por toda mulher.

Essa notícia me fez pensar no quanto vivemos distantes das pessoas mais próximas nesses dias corridos. Acordo cedo, saio para trabalhar, chego já noite e emburaco em casa, onde também tenho os meus afazeres de mãe e dona de casa (quase) dedicada. Portanto, mal vejo meus vizinhos; muito menos tomo ciência do que andam fazendo de suas vidas. A maioria deles nem conheço.

Até pessoas da minha família, que moram na mesma cidade, custo a ver. São todos assoberbados de atividades, que para encontrá-los é preciso consultar agenda. Inclusive minha mãe. Aos 74 anos se queixa da falta dias em sua semana. E ficamos sabendo uns sobre os outros por telefone, quando sobram minutos para um bate-papo rápido.

Já faz alguns dias que não vejo minha vizinha. Mas tenho ouvido a movimentação de preparo da casa para a chegada da bebê. Soube o sexo assim, sem querer. Da minha cama ouvi uma conversa dela com uma visita amiga. Estavam excitadíssimas, conferindo as peças do enxoval. “Olha que lindinho esse vestido, ela vai ficar uma gracinha, né?”

No último sábado cheguei em casa à tarde e tentei tirar um cochilo. Nada feito. Móveis são arrastados, gente conversando, e uma furadeira insistente rasgando meu tão desejado silêncio para uma soneca rápida. Talvez nem receba a notícia do nascimento da bebê, devido à ‘distância’, mas já imagino minha participação auditiva das choradeiras noturnas, dos gritos e gemidos de cólica, da mãe marinheira-de-primeira-viagem desesperada sem saber dar conta.

Também vou perder o sono, fazer o quê? Ainda tenho um tempo para pensar se vou ficar apenas escutando os intermináveis choros ou se vou levantar e bater lá para oferecer ajuda. Afinal já passei por isso e garanto que não é nada fácil. Não custa nada ser solidário nesses momentos. E já que moramos coladas, “to aí”, de prontidão, para tentar vencer a ‘distância’.

Seja um você também

A gente cria. Escreve. Publica. Livros. Blogs. Comunidades. Mas no vamos ver, vamos viver de quê? A coisa, entre outras coisas, tem me encucado. Andei buscando uma solução. E a encontrei.
Fiquei devendo pra Martha Medeiros no outro post mas me redimo hoje, com citação e tudo. (Morde e assopra é comigo mesmo. Mas não é por ser puxa-saco, ou por insegurança, ou por pena. Nada disso. É que digo o que penso, e se for de amigo e não for o melhor, o mais elogioso, logo me arrependo. Não de dizer a minha verdade, hum, mas de pensar e sentir aquilo, fazer o quê.) Na Revista deste Domingo, Martha mostra porque é mesmo uma deusa, vai lá. Concordo com ela em conceito, exemplo e atitude, vejam só: "Não se sinta culpado por pensar em si próprio. Cuide do seu espírito, do seu humor. Arrume seu cotidiano. Agora sim, vá em frente e mostre aos outros como se faz."
Detto e fatto, bem, não é tão fácil. Arrumar como? Diz o Globo que existe escassez de 20 mil engenheiros no país, em todas as áreas. Bem. Nem todo mundo quer (ou pode) ser engenheiro. E a vida de artista, como é que fica? De escritor? De blogueiro? Vender livro, já se viu, dificilmente é solução pra bolso. Emprego em jornal, nem pensar, como disse uma amiga no outro dia: "nem dando pro Xexéo", ah, tá bom. Melhor deixar pra lá. A gente tem o que dizer, vai e diz: escreve no blog, e não é coisa pouca. Exige pesquisa, criação, revisão e edição, fotos, links, cuidado. Ou vocês pensam que só leva um segundo? Não, gente. É trabalho, trabalho sério. Do bom. Vai daí que eu já tinha pensado: com essa audiência toda, imagine se cada um que te curte resolve te patrocinar, hum, digamos, com cinco reais por mês. Nem falo daquelas visitas todas que o contador mostra, não mesmo, falo dos 10 por cento que te lêem mesmo, ficam mais de uma hora contigo todo dia, sacou? Hum... um, dois, cinco reais, mas só quando a gente quiser, se der vontade de apreciar um texto bom, sem vínculo ou compromisso. Gostou? Patrocine. De NY, comenta aqui no blog a Simone K. : "Como sabe o doar aqui, ou a falta dele, pode até ser um motivo de vergonha. Trabalho voluntário é a forma mais popular, não? Se a gente não faz, o vizinho reclama."
Ah, sim. Brasileiro não dá nada de graça pra ninguém, mas bem que a gente podia mudar um pouco isso. Um amigo meu, artista como eu, achava humilhante um link que eu tinha aqui no blog, pra doações no PayPal: acabei apagando. Mas continuei pensando: uai, gente, humilhante por quê? É humilhante ser apreciado? Ser pago por seu trabalho? Já faz um bom tempo que me debato com a questão; como "trabalhadora da luz", o dilema era o mesmo: trabalhar pode; cobrar não. E nesses tempos de ascensão, quem é esotérico sabe bem do que estou falando: fala-se muito em mudanças radicais, em um novo ambiente de altíssima energia onde cada um só faz o que lhe dá prazer. Muito belo. Muito bom. Mas a pergunta persiste: se o nosso mundinho tresdê ainda funciona à base de dinheiro, como é que se vai sobreviver? Novas formas de viver? E quais seriam? Hein?
A web é uma resposta, com certeza. Uma mente coletiva: troca de idéias e ideais, um celeiro criativo de tudo. Dos engenheiros (a troco de salário, gente, pra eles não falta emprego!) vêm as ferramentas. Dos artistas, o conteúdo: todo mundo usa e abusa, e online, se doa de graça, não tem o menor problema. A web já está no futuro, no admirável mundo novo onde a gente só faz o que quer, e não precisa de dinheiro: é muito maior do que o Second Life. It's the One and Only Life.
Eu penso, gente, e penso muito. Vai daí que surgiu essa idéia de patrocínio voluntário de blogs. Gostou? Patrocine. Não espere o governo, o bolsa-família, o Ministério da Cultura, o prêmio, a lei, a corrupção. Nem precisa de projetos complexos, de concorrência ou aprovação. Gostou? Patrocine. Simples assim.
Pode ser que funcione. Pode ser que não. Mas é, certamente, uma opção. Faço como a Martha diz: penso em mim, começo por mim, ensino como se faz, e... bem. Espero que façam o que eu digo. E faço. Bom domingo pra vocês, e pra mudar de vida hoje mesmo, seja um MEMO* você também.

* MEMO: mecenatomoderno.org, um jeito web de mudar sua vida, e a vida de quem você curte. Visite o site. Participe da Comunidade.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Sobre os Filhos e as Pedras

Se Simone Silveira

Criar filho é semelhante ao ato de jogar a pedra na água no intuito de fazê-la derrapar, ou na melhor da hipótese, saltar graciosamente na superfície cristalina afim de que conquiste o infinito.

A pedra é escolhida ao acaso, pois elas estão lá soltas no mundo—rua, beira do rio, floresta. Mundo este que não existe até que nos damos conta dele. Agora, o mundo uma vez formado, nos presenteia com seus elementos minerais, diria mesmo ancestrais. É preciso que admiremos a grandeza da sua extensa existência. Assim, é possível tratá-lo com maior dignidade, já que, nos últimos tempos, temos coniventemente ignorado sua fragilidade e contribuído para a sua devastação.

Entre tantas pedras, há de se escolher uma com a forma plana e de preferência, arredondada. Há sempre a dúvida cruel se a eleita entre tantas é perfeita o suficiente para o jogo. Neste caso, e em quase todos na vida, uma escolha, é realmente a falta de escolha, pois já nos acostumamos a carregar no peito e na cabeça, idéias pré-definidas. Assim se passa quando se tem um filho. Bem no fundo, na hora do nascimento, a dor latente, a bacia dilatando, não importa ser a criança homem ou mulher. É imprescindível que seja saudável. Somos todos animais. Muitas mulheres como eu, dividem a mesma experiência de contar os dedos dos pés e das mãos do bebê nos primeiros segundos de vida dele. Essencial mesmo é que ele nasça. Ponto. Conheço quem pariu uma criança morta. Esta dor eu jamais desejo ao meu semelhante. Conheço uma mulher que pariu um filho doente. Ela é o meu melhor exemplo de mãe—paciência infinita, dedicação integral sem espera de retorno, amor incondicional.

Uma vez a pedra na mão, as outras deixam de existir, assim também se passa com os filhos. Quando miramos a sua fisionomia pela primeira vez, é como se já o conhecêssemos por toda a eternidade. Não há esforço. Esta familiaridade é instinto. Depois do reconhecimento, é hora de estudar a melhor forma de jogá-la na água para que salte em intervalos regulares. O intuito é que ela vá longe, muito longe. O corpo e as mãos se curvam em um ângulo específico, afim de que ao lançar a pedra, ela perfure o ar rodopiando em círculos magistrais, seguidos de um arco perfeito rumo à água. Sem quase tocar a superfície e vencendo a tendência natural de submergir-se, a pedra finalmente derrapa harmoniosamente sobre ela. Esta arte, aparentemente tão simples é como a arte de se criar um filho. Sua complexidade vem com a primeira febre, a primeira briga na escola, o primeiro palavrão, a primeira dor, o primeiro amor e outros primeiros que nos pegam despreparados e nos põem tão confusos como nossos filhos. Bem no fundo, somos todos marinheiros de primeira viagem, inclusive aqueles, como eu, que se julgam frutos de uma geração esclarecida —tudo pelo diálogo, e que defendem o conceito de ser a criança dotada de direitos e deveres como qualquer outro indivíduo. Na hora do aperto, há de se consultar os livros. To Listen to a Child, do Doutor Brazeton tem sido de suma importância como outros dele. A sogra também é elixir com toda a sua experiência de vida. As vizinhas, e até o porteiro tem o seu lugar nesta difícil arte.

Maternidade é certamente um ato natural, assim como muitos, por exemplo, comer de garfo e faca, porém é necessário a aprendizagem. Amamentar talvez tenha sido uma das mais doloridas, fisicamente e emocionalmente, nos meus primeiros meses como mãe. Tudo estava errado. Meu filho berrava. Era fome lhe corroendo o pequenino estômago. Eu me olhava no espelho, seios feridos, tanto sacrifício, qual era o problema? Eu era insistente no meu desejo, agüentava a dor da ferida aberta e os berros desesperados do meu primogênito. Três semanas e nada, a ferida crescia enquanto ele emagrecia. Ninguém me contou como segurar o bebê e dar-lhe o peito. Muita coisa a gente aprende na marra porque nossas mães “esqueceram.” Os vídeos nas aulas de preparação ao parto não é mão na massa. O boneco demonstrativo na aula de Lamaze está longe da realidade de uma criança de carne e osso e esfomiada nos braços. Enfim, sejamos modernas e sem preconceitos. Contratei uma consultora em amamentação e em poucas horas o problema foi resolvido. Me senti realizada como qualquer outro mamífero. Estava alimentando a cria.

Esta crônica era mesmo pra falar de toda a minha incerteza no meu papel de mãe (quem é mãe sabe, nunca sabemos se estamos fazendo a coisa certa... quem é filho também tem lá as suas dúvidas). Depois destas linhas e milhões de cenas rebobinadas na memória consigo derramar as minhas inseguranças e pouco reclamo dos meus filhos. Ela deveria ter começado assim: “Meus filhos até o dia de hoje competem com aqueles que me chamam pelo telefone.” O texto tomou rumo novo, voilà.

Inspiração nasceu de um telefonema pra mim do meu pai. A conversa durou pouco. Meus filhos, sempre educados em todas as outras circunstâncias, menos esta, cortou a minha conversa ao telefone com seus berros, chantagens e apelos. “As crianças no Brasil não são assim não, a gente fala no telefone sem problemas, elas se viram pra lá. Vocês também não foram assim não,” completou meu pai, certo que a nossa cultura brasileira permanece a mesma há várias décadas. Na hora respondi meio que justificando os gritos das crianças, “sabe como é, pai, aqui a gente cria filho muito só, eles se tornam muito dependentes da gente. Por isto não conseguem dividir a mãe,” disse eu, pensando mesmo nas empregadas brasileiras que tomam conta de tudo, que maravilha.

Pela noite me arrependi. Sou uma mãe que escolheu ter um papel ativo na educação de seus filhos. Tudo tem o seu preço. Há de chegar o dia quando poderei entrar no banheiro e curtir minha privacidade sem o receio de ser interrompida, ou telefonar a um amigo e ficar de papo pro ar. Tento lembrar do meu regresso ao trabalho e já posso sair pra jantar ou viajar uma vez ou outra sem que se sintam abandonados. São crianças felizes e seguras. Há um o tempo particular no amadurecimento de cada um. Há de ser ter paciência, eu repito para mim mesma, não posso esquecer. Assim como as pedras jogadas com precisão, a liberdade acontece a cada pulo.



Victor e Henry vendo a chuvar cair no pátio do Cloisters, NYC, 2007

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Dupla personalidade

Habitam em mim duas mulheres bem diferentes. Uma é uma menininha tímida, carente, a rejeitadinha, que se esconde no escuro do armário e até pra respirar precisa da aprovação dos outros. Filha de pais exigentes, se culpa por tudo e não importa o que ela faça nada é bom o bastante, tudo dá sempre errado e há pouca esperança de mudança.
A outra é uma artista: A Escritora. E artista (segundo a voz corrente) é um ser sobre-humano — ou sub, sujeito a interpretações —, sem moral e sem escrúpulos, um assassino cruel e frio que não hesita nunca e se tiver que matar por sua arte, mata. A artista em mim mata a mãe, mata o pai, trai os amigos e age por puro interesse. Beija a lona várias vezes por dia, se levanta, sacode a poeira e ousa oferecer a outra face. Passa por cima de tudo e nada a detém. Se achar que a causa é boa exibe intimidades, grava o sexo com o marido e bota no YouTube. Tortura o tempo todo a menininha que sofre, coitada, forçada sem defesa a impensáveis atitudes. Sem ter como escapar a pobrezinha pena, se arrepende de tudo, vive pedindo desculpas, encharcando de vergonha o travesseiro à noite.
Mas nesta quinta não queremos brigar. Blogaremos na Travessa do Leblon ao vivo, as duas disputando a tapa um sorriso no meu rosto. Quem vai vencer a outra? Não sei, são vocês que decidem. Pra falar francamente, espero que seja a artista, porque a menininha, coitada, de tão fraquinha, não irá muito longe. Já a artista, todo mundo sabe. Quando reconhecido, o artista logo se torna um doce, vira este ser generoso que é simpático em público, banca as noitadas e favorece os amigos. Distribui benesses, sai bem na foto e não recusa entrevista. Trata bem a imprensa, ou será que é a imprensa que trata bem dele? Se compromete até com a chata da menininha, a cuidar direitinho dela e alimentá-la a pão-de-ló, conversar calmamente com ela e a convencer, por a+b, que papai e mamãe erraram desde o início: a menininha e a artista não são inimigas, e pra falar a verdade, foram sempre a mesma pessoa.
Nos vemos todos lá.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

A vez de Inocência

De Simone Silveira

Estava distraída quando tropeçou pela primeira e única vez. Inocência havia passado toda a manhã em uma repartição pública para renovar o documento de identificação pessoal.

Chegou às oito horas em ponto quando o funcionário abriu as portas e redirecionou os cidadãos para o guinche de atendimento ao público. A fila andava vagarosamente. A espera era interminável. Uns deixaram de trazer um documento importante, outros esqueceram de pagar a taxa bancária indicada no formulário de renovação. Finalmente era a vez de Inocência. Depois da entrega da papelada, sujou os dedos de tinta e lá deixou sua impressão digital. Foi direcionada à frente da câmera para que a foto lhe fosse tirada. Sorriu. Rabiscou o seu nome à direita do “x” no rodapé do documento e partiu.

No elevador pressionou o abdômen com as duas mãos cerradas. O estômago doía. Comprou jabuticabas de um ambulante nordestino. Encheu a boca delas enquanto corria para atravessar a extensa avenida Rio Branco. Na euforia, suas pernas se embolaram e Inocência tropeçou. No asfalto da avenida Rio Branco as frutas rolavam. O sinal abriu. Inocência tentava se firmar sobre os pés, já nem pensava nas jabuticabas muito menos na dor do estômago. A dor agora era no pé direito. Aguda. As buzinas dirigidas à ela por motoristas impacientes não facilitava a difícil tarefa de se completar a travessia.

Inocência sentiu-se tonta. A respiração se tornou ofegante, apressada. As mãos pingavam suor, um filete dele lhe descia `as costas. Um imenso desejo de não mover-se instalou-se. Os automóveis se aproximavam, passavam por ela. Inocência lá, à deriva, pensamento petrificado. O sinal fechava. O sinal abria. Inocência foi aos poucos perdendo o medo. Primeiramente, o medo da forma automobilística em avanço, depois o medo do som de pneus derrapando, depois dos gritos—Louca! Saí daí, maluca! Quer morrer?

Ela morria. Eles não sabiam. Fio de sangue fazia o seu caminho até o corte, pele rompida pelo osso exposto. O líquido escorria e se misturava com a poeira do asfalto. Ela morria. As jabuticabas não existiam mais. A pele enrugava, a boca rachava, nem os olhos ela abria. Ela morria. Inocência tentara cruzar a grande avenida Rio Branco, verdade maior. Ela havia feito a decisão. Teve a coragem dos loucos, dos santos, dos desvalidos. Os passantes entretanto se acostumaram com a presença em decadência de Inocência — plantada no meio do asfalto, ferida e secando, dia após dia.

Ela poderia ter feito o enorme esforço de atravessar a avenida, agora longa, interminável, apoiando todo o peso de seu corpo sobre o pé saudável. Ela poderia ter gritado alto por uma mão caridosa. Porém houvera o desejo brotando-lhe no peito tão inesperadamente como a fruta que rolara pelo asfalto quente. Ela queria abraçar a própria inércia afim de por à prova a inércia alheia. O outro, de pé no meio-fio, dentro do carro, no alto dos prédios, debruçado na janela, permanecera insensível à sua dor. Ela só precisava de provas. Agora, já as tinha.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Ao Ponto

De Simone Silveira

Sempre me impressiono com os que desejam e mesmo assim escolhem a segurança de um amanhã falido. O sujeito sabe que não é feliz, a Felicidade vem se longe, esmurra a porta, quase rouca pede para entrar. E nada. O Homem até encontra a coragem, coitado, depois de dias, de pegar a chave e colocá-la no orifício da fechadura. A mão treme e ele desiste. A Felicidade sabe da desistência. Ela sabe de tudo. "E aí, meu caro, abre logo esta porta pois seu tempo extenua-se," diz Felicidade. A porta continua cerrada. O Homem esquece que o tempo ainda lhe pertence. Não todo o tempo do mundo, mas o pouco que possui é elixir na palma da mão em concha. "Olá, e aí, que bom ouvir sua voz," diz o Homem. E só. Sim, ela espera um pouco mais do outro lado. Desiste. Não pede mais. Elixir escorrendo por entre os dedos do Homem. Felicidade sabe da fraqueza alheia. "Eu vou bem, um pouco cansada. Ao esperar, me torno pingo caindo de um conta-gotas sem intervalo até nada mais restar senão o vazio preenchido pelo ar, " diz ela. Agora muda, parte mesmo, afinal ela é o que é. Vai não sem antes pendurar uma nota breve e honesta: Felicidade não bate duas vezes `a porta de um homem de alma perdida.