quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Radar

por Ana Beatriz Guerra

Rubem Alves, em sua crônica “Ao Carlos Rodrigues Brandão, meu amigo”, fala, obviamente, de seu amigo Carlos Brandão e narra “causos” peculiares que tanto ama. Em um determinado momento, Rubem Alves divide conosco uma filosofia pessoal de seu amigo: “aquilo de que me esqueci eu não possuo”. O amigo de Rubem chegou a aproveitar-se dessa filosofia para não devolver um dinheiro que lhe tinha sido emprestado. Até aí não se sabe se é verdade ou mais um “causo”, mas essa filosofia certamente pôs Rubem para pensar, e a mim também...

Não poderia haver nada de mais verdadeiro: “aquilo de que me esqueci eu não possuo”. Rubem usa o exemplo de um livro emprestado. Quantos livros emprestamos por aí e que deixam de ser nossos quando nos esquecemos deles ou de qual pessoa exatamente tem sua posse?

Tenho alguns livros por aqui que talvez não pertençam mais a seus donos, mas que, certamente, também não pertencem a mim, porque sei que não sou dona deles. Mas conservar um objeto de alguém é um jeito de manter a pessoa ainda a seu alcance? Porque os objetos que tenho em minha posse não são necessariamente meus, nem das outras pessoas, que sequer clamam por eles. São, em sua maioria, objetos de pessoas perdidas, não por desejo mútuo de nos perdermos, mas porque a vida se impôs entre nós. São vestígios de amizades não necessariamente findas, mas suspensas, vividas apenas num fio de memória, em frágeis encontros ocasionais.

Se a filosofia de Carlos Brandão funciona para objetos, será que ela funciona também para pessoas? Podemos reclamar a posse de uma pessoa: eu me lembro de você, logo você é minha?

De vez em quando, me pego pensando nas pessoas que passaram pela minha vida e as encaixo em três categorias: as que de fato esqueci (tanto que não consegui classificá-las, porque caíram mesmo no esquecimento e sequer as resgatei de lá), as que jamais vou esquecer (algumas entre as minhas pessoas preferidas) e as que não podemos esquecer, porque se fazem lembradas pela vida cotidiana (são as pessoas que convivem com a gente).

(Eu gostaria muito que você caísse na primeira categoria, mas isso é perto do impossível. Tá, é mentira, não quero que caia na primeira categoria, mas, que seria bom, seria. E também devo estar exagerando quando digo que é perto do impossível.)

Como tenho a tendência de querer delimitar posse em tudo e de tudo, tenho muita pena das pessoas da primeira categoria, pois são aquelas que ou não causaram nenhuma impressão ou passaram simplesmente sem deixar vestígios marcantes. São oportunidades perdidas.

Quantas pessoas esbarram conosco na rua, um universo encerrado em cada uma delas, e que simplesmente passam sem que nos demos conta, sem que possamos dar atenção, sem que a vida se imponha no meio? São perdas e ganhos cotidianos, a cada instante em que nos mantemos em nosso caminho, em nossas convicções, sem cruzar com os quereres e fazeres do outro.

As memórias que construímos nos escolhem ou são escolhidas, sempre ligadas a condições pré-determinadas. Mas, se eu me lembro bem, você existe. Se eu não me lembro, você não existe. Se me lembro, as pessoas são como os livros que não me pertencem: estão comigo, mas não posso reclamar sua posse. Se não me lembro, não estão comigo e perdi o seu alcance. E, se é que existem, existem independentes de mim. Mas, se não estão ao meu alcance, é como se não existissem; são mais um dos muitos universos encerrados dos quais não tomamos conhecimento.

Se eu não me lembro de você, eu não te possuo. Se eu me lembro de você, eu não te possuo também. Não porque você possa cair no esquecimento, mas porque memórias são particulares, construídas por cada um e, encerrados nelas, somos universos muito solitários. É a solidão que existe na raiz das memórias compartilhadas, memórias de eventos em comum, mas que jamais são as mesmas para duas pessoas, por mais que se amem, por mais parecidas que sejam, simplesmente porque são um e outro. E vice-versa.

Partilhar as memórias, dividir sensações e sentimentos, expressar pensamentos é o máximo dentro do outro onde podemos estar, é o alcance onde podemos fazer alguma diferença, é quando a gente ecoa dentro do que se lembra. É quando se voa dentro do alcance do radar do outro. Quando somos esquecidos, é como voar por instrumentos. É turbulência. É tempestade. É deriva.

Não queria que você saísse do meu radar, mas a vida se impôs entre a gente. E quem somos nós para desafiarmos a vida? Amores e desamores não são maiores do que ela. Mas é certo que lembranças cultivadas são uma forma de manter o outro vivo dentro da gente, pelo menos aqueles que não temos a ousadia de esquecer, pelo menos aqueles que foram importantes demais para virarem um universo encerrado fora do nosso alcance.

Um comentário:

Simone Couto disse...

Bia, um dos textos mais lindos que li nestes últimos tempos. Foi como ler algo que gostaria de ter escrito e não consegui, pois minhas memórias andam ainda no plano invisível, não querem se materializar em palavras, não querem de forma alguma, perder seu dignificado secreto ao dar-lhes eu vida no papel. Por tudo isto, teu texto me tocou muito.

bj, simone