OS DEGRAUS
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
(Mário Quintana em o Baú de Espantos)
Comecei a ler mais um dos livros de poesia do Mário Quintana. Baú de Espantos tem como tema central a morte e a exposição, melhor afirmando, a justaposição, de dicotomias e contrastes, como o mundo palpável e o invisível. Há poemas extraordinários como Os Degraus, O Deixador e Poema Transitório. Há uma série de outros poemas de referência à era de Camões. Os sonetos são, para mim, leitura não tão agradável e fluida como os poemas curtos, cortantes e brilhantes do Mário.
A poesia do Mário em mim é transcendental e deixa as impressões mais profundas. Fechei o Baú e os olhos. Tive um sonho absurdo com o meu falecido avô, Aristides Couto.
Aristides nasceu, criou-se e morreu em Bom Jesus do Norte, E.S. Era ferreiro e tornou-se surdo e mudo aos 24 anos devido ao som agudo das suas marteladas no ferro. Eu conheci bem os labirintos da casa velha do meu avô, bem erguida no século passado e de pé até o dia de hoje.
Todas as manhãs, era eu quem levava o seu almoço amarrado no pano de prato listrado. Ele tinha já seus 90 anos. Eu sentava lá, olhava o buraco no teto de sancas adornadas de videiras enquanto ele mastigava com a gengiva. Trocávamos umas duas ou três frases, ele, tentando ler meus lábios e falando muito alto. Após ao término da refeição, ele embrulhava o prato vazio e preto do resto do caldo de feijão e se punha a palitar os dentes invisíveis no fim da boca. Levantava-se, colocava o chapéu na cabeça e, sem muitas dificuldades, me guiava até o quintal de mangueiras e jabuticabeiras. Lá no fim daquele quintal que parecia infinito corria o rio Itabapoana.
De pé, eu me encontrei, na mesma sala de outrora, a cristaleira de vidro com os mesmos bibelôs e quinquilharias. O mesmo buraco negro de onde as lendas brotavam naquela casa. À minha volta estavam todas as minhas tias e tios já mortos (e como são tantos. Aristides e Dona Maria José tiveram treze filhos e meu pai foi o último a nascer). Os mortos falavam muito e eu só via as saias dos vestidos coloridos das mulheres. Entre elas tagarelava a Sônia, vestida em saia vermelha rodada e estampada de peónias. Sônia é lenda viva entre as irmãs Campos Couto. Ela, ainda menina, caiu da mangueira no quintal (a mesma da minha infância), aterrisou num toco de madeira e aos quinze anos morreu de tétano.
Sônia abriu a porta azul da cozinha e se pós a correr pela rua afora. Atrás dela, montado em uma bicicleta, o guardião dos mortos, uma figura magra, alta e alucinada voava entre os vivos. Eu de longe e sem medo, espiava o alvoroço, afinal eram todos, apesar de mortos, família.
Acordei às pressas, engoli uma xícara de café morno, coloquei o Báu de Espantos dentro da bolsa e fui para o dentista. Lendo o Mário no trem para Manhattan hoje pela manhã, me dei conta pela primeira vez da minha natureza de poeta. Eu olho o mundo ao meu redor e olho o mundo dentro de mim e tudo emfim se transcreve em palavras; como o mundo deve se transcrever em cores para os pintores. O texto me persegue como os fantasmas de Mário e os meus próprios.
A poesia do Mário em mim é transcendental e deixa as impressões mais profundas. Fechei o Baú e os olhos. Tive um sonho absurdo com o meu falecido avô, Aristides Couto.
Aristides nasceu, criou-se e morreu em Bom Jesus do Norte, E.S. Era ferreiro e tornou-se surdo e mudo aos 24 anos devido ao som agudo das suas marteladas no ferro. Eu conheci bem os labirintos da casa velha do meu avô, bem erguida no século passado e de pé até o dia de hoje.
Todas as manhãs, era eu quem levava o seu almoço amarrado no pano de prato listrado. Ele tinha já seus 90 anos. Eu sentava lá, olhava o buraco no teto de sancas adornadas de videiras enquanto ele mastigava com a gengiva. Trocávamos umas duas ou três frases, ele, tentando ler meus lábios e falando muito alto. Após ao término da refeição, ele embrulhava o prato vazio e preto do resto do caldo de feijão e se punha a palitar os dentes invisíveis no fim da boca. Levantava-se, colocava o chapéu na cabeça e, sem muitas dificuldades, me guiava até o quintal de mangueiras e jabuticabeiras. Lá no fim daquele quintal que parecia infinito corria o rio Itabapoana.
De pé, eu me encontrei, na mesma sala de outrora, a cristaleira de vidro com os mesmos bibelôs e quinquilharias. O mesmo buraco negro de onde as lendas brotavam naquela casa. À minha volta estavam todas as minhas tias e tios já mortos (e como são tantos. Aristides e Dona Maria José tiveram treze filhos e meu pai foi o último a nascer). Os mortos falavam muito e eu só via as saias dos vestidos coloridos das mulheres. Entre elas tagarelava a Sônia, vestida em saia vermelha rodada e estampada de peónias. Sônia é lenda viva entre as irmãs Campos Couto. Ela, ainda menina, caiu da mangueira no quintal (a mesma da minha infância), aterrisou num toco de madeira e aos quinze anos morreu de tétano.
Sônia abriu a porta azul da cozinha e se pós a correr pela rua afora. Atrás dela, montado em uma bicicleta, o guardião dos mortos, uma figura magra, alta e alucinada voava entre os vivos. Eu de longe e sem medo, espiava o alvoroço, afinal eram todos, apesar de mortos, família.
Acordei às pressas, engoli uma xícara de café morno, coloquei o Báu de Espantos dentro da bolsa e fui para o dentista. Lendo o Mário no trem para Manhattan hoje pela manhã, me dei conta pela primeira vez da minha natureza de poeta. Eu olho o mundo ao meu redor e olho o mundo dentro de mim e tudo emfim se transcreve em palavras; como o mundo deve se transcrever em cores para os pintores. O texto me persegue como os fantasmas de Mário e os meus próprios.
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