Do ponto de vista da madame – entre 35 e 40 - de chapéu e protetor solar 30 na praia depois das quatro, lendo um romance – ela viu o sujeito se aproximar. Tinha dois sacos enormes de latinhas para reciclagem. Ela de óculos olhou por cima, debaixo da sombrinha. Aquela altura a praia estava praticamente vazia, era segunda. Ela tinha biquíni comportado e caro, brancura condizente, queria ouvir o mar e terminar o livro, “Naufrágio”. O sujeito tinha calças no joelho, deixando à mostra as tatuagens nas duas pernas, cadeieiras, cruz, Jesus, letra de rap; era branco mas bronzeado da andança, cabelo anelado no ombro. Ele sentou na areia de modo que se via remendos no meio das pernas e acendeu um cigarro. Olhou em volta.
Até bem antes, ela já tinha pensado no celular, bolsa, no seu corpo branco, nos quantos cartões levava, nos filhos de conhecidos seqüestrados, nos ônibus incendiados, nas torturas da ditadura vistas em filme, nas atividades de assistência social adiadas cada ano, na segurança dos netos que virão, no futuro da humanidade, nos delegados que dão entrevista no vídeo, bigodudos, nos desfiles de escola de samba. Tudo por cima dos óculos, achou melhor fechar o olho. Não jamais olhava direto.
O sujeito cavucava areia com um palito de picolé, terminava o cigarro fazendo careta que deixava ver que tinha dentes brancos.
A banda do parque ao lado acelerava acordes graves no ensaio. Só o baixo em acordes graves, repetidos.
Ela virou de costas com o livro na frente, suando, pensando baixo de banda, esfregando mãos trëmulas de esmalte novo. Arrumou que o livro tampasse parte da barriga e sobrasse uma réstia de sombra entre o final da capa e aba do chapéu.
Ele cavucou mais forte até o ponto em que a areia fica úmida e escura.
Ela lhe atribuiu uma porção de tédio, revolta, pobreza, sujeira, raiva, solidão, sob a música do parque. Ela queria correr, mas passou a página do livro.
Ele mexeu nos sacos de latas esprimidas recicláveis com o pé.
Ela agora só via entrega, fim da linha de olhos fechados.
Ele sacudiu a areia da calça cinza – como sendo a que ela lhe viu na prisão – botou os dois sacos num ombro e seguiu.
quarta-feira, 8 de agosto de 2007
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2 comentários:
Ana, que texto maravilhoso.
É o Brasil de carne, osso e alma. É o resto do mundo cultivando a sua individualidade exacerbada e o isolamento opcional e urgente de si mesmo.
Como chegamos ao ponto de ter tanto medo, medo do outro, medo de viver em harmonia com o que nos cerca? É tudo muito triste, muito revoltante. Esta é a crise do homem moderno, o câncer incurável, corroendo às pressas as relações humanas.
Bj, Sim.
Obrigada Simone. Eu definitivamente não queria ter esse medo como uma das minhas obsessões
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