segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Café com leite, pão com manteiga e bom humor

Chego ao balcão da padaria e espero menos que 10 segundos. A atendente, lavando copos, me abre um sorriso do tamanhão do rosto dela: “Boa tarde, pode falar!” Já surpresa diante de tanta simpatia, peço um café pingado e um pão com manteiga. Tenho poucos minutos para driblar o apetite enquanto espero o horário da minha consulta no prédio ao lado. A padaria está cheia, como sempre. Ainda mais numa tarde fria, perfeita para um café bem quentinho e um pão fresco. E as meninas, as atendentes, numa felicidade que nunca presenciei.

Freqüentei essa mesma padaria um tempo atrás, quando trabalhava perto. Só tomava meu café ali porque o pão era (e ainda é) muito gostoso e eu estava sempre atrasada, portanto, era mais prático. Com o meu bom humor de sempre, chegava, dava aquele sonoro bom dia e o que eu recebia em troca era um olhar fulminante da balconista. Todos os dias. Em silêncio ela arrumava meu pão com manteiga, meu café com leite, colocava-os em cima do balcão e virava as costas. Ao sair, sempre me despedia e até hoje não sei se ela fingia que não escutava.

Em quase todos esses lugares é mais ou menos a mesma situação. Pessoas mal humoradas, tristes, mal pagas, mal tratadas pelos patrões, desrespeitadas de várias formas, acabam revelando suas dores e amarguras por meio de suas expressões (ou falta delas). Já vi das piores caras em diversos tipos de estabelecimentos, de supermercado a sorveteria, de manicure a floricultura, de loja de tintas a botequins, de clínicas médicas a restaurantes.

E eis que depois de muito tempo volto àquela mesma padaria e encontro um ambiente totalmente anormal, se comparado ao mau humor comum que reina no comércio e na prestação de serviços (salvo raríssimas exceções). Três balconistas sorridentes, conversando, cantando, brincando entre si e com os clientes, tratando as pessoas pelos nomes. Eu e uma mulher ao meu lado nos olhamos, sem acreditar no que víamos. “Nossa, gente, quanta felicidade nesse lugar”, ela disse. E lá de dentro veio esta: “É assim mesmo, trabalhamos sempre assim. Olha lá no caixa. A outra fica reclamando da gente, mas ela queria mesmo é estar aqui, rindo e cantando também, mas não pode”, brincou a balconista.

Saí da padaria rumo ao consultório médico tentando imaginar como seria a vida de cada uma daquelas mulheres. Com certeza, não muito diferente da vida de todas as outras e outros que são empregados neste tipo de estabelecimento. Madrugam para trabalhar, ajudam a família no sustento da casa, ou sustentam filhos sozinhos, fazem jornada tripla, ou quádrupla, ganham um salário daqueles que a gente praticamente paga pra trabalhar. Enfim, têm problemas como todo mundo e, por isso, teriam o direito a viver de cara feia, como todo mundo. Mas não. Fazem justamente o contrário e nem sei se têm consciência de que desta forma realmente conseguem tornar seus dias melhores. Só sei que conseguem.

Na verdade, naquele dia eu estava com um problemão na cabeça e foi extremamente reconfortante tomar aquele café com tanta alegria a minha volta. É isso aí. Nunca sabemos se quem está por perto precisa de uma palavra de carinho, apoio, sei lá. E ao sentir toda aquela energia positiva, concluí que nem tudo está perdido, mesmo. Seja qual for o motivo que possa me deixar de ‘bico’, a melhor solução, sempre, é encarar a vida com bom humor, já que cara feia não traz solução pra nada.
.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Beija-Vida

Acordo de manhã, abro a janela e ela está lá, no fio. Não fica muitos metros longe. Está sempre de olho, vigiando. Vai até a árvore em frente, se alimenta do néctar da flor de pata-de-vaca, e volta. Estou falando e uma zelosa mãe, moradora temporária do meu Ipê, na porta da minha casa: uma beija-flor que cuidadosamente construiu seu ninho para procriar ali, diante dos meus olhos. Os filhotes, nascidos na terceira semana de agosto foram uma agradável surpresa nestes dias secos, áridos.

Minha árvore ainda é jovem. Um Ipê de apenas seis anos, pouco mais de três metros de altura. Sua floração, na primavera, ainda é frágil, mas suas poucas flores brancas já nos dão uma rápida demonstração do que ela será capaz de produzir daqui a alguns anos. Sou apaixonada pelo meu Ipê, cuja muda ganhei de um grande amigo. Por isso observo-o com freqüência. Suas folhas, seus galhos, seu crescimento. E foi num desses momentos de observação que descobri algo novo, estranho, perfeitamente encaixado entre três galhos. Achei aquilo esquisito, porém não imaginei que pudesse ser um ninho, não ali, naquela posição, tão desprotegido.

Dias depois lá estava ela, a mãe beija-flor, sentadinha, chocando. E eu, chocada com aquela visão. Um ninho bem pequeno, com um pássaro delicado aguardando a chegada dos seus filhotes. Beija-flores são visitantes muito comuns na minha casa. São atraídos pelas minhas plantas, sempre em floração, mas como são aves muito ariscas, é raro ver um ninho e mais raro ainda é poder acompanhar sua reprodução. E por conta dessa grata surpresa, claro, fui pesquisar para saber um pouco mais sobre isso.

Menor pássaro do mundo, o beija-flor é muito independente. É a fêmea a única responsável por sua cria. Constrói o ninho, choca os ovos e protege os filhotes. Apesar de pequeno e de parecer frágil, o abrigo é muito seguro; resiste ao vento, às chuvas e ao crescimento dos filhotes. Normalmente é construído com grama, folhas, flores, pétalas e musgo, e fixado com o fio viscoso da teia de aranha, que o deixa bem firme. Geralmente, os beija-flores botam apenas dois ovos. Seus ninhos não comportam mais, e a fêmea não consegue alimentar mais que dois filhotes.
Esse ser aparentemente frágil é capaz de se adaptar a qualquer ambiente e não exige muito para sobreviver: constrói seu ninho na cidade, em qualquer tipo de árvore, não tem medo de gente nem de ruídos, e precisa de flores para se alimentar. Simples assim.

Tão simples quanto a decisão de derrubar uma árvore, seja qual for o motivo, sem pensar no quanto de vida se interrompe com atitude tão drástica. O crescimento acelerado da população e a destruição de muitas espécies de plantas nativas constituem um grave problema para os beija-flores, por faltar-lhes locais apropriados para construir seus ninhos ou para encontrar alimento adequado. Li sobre uma fêmea que ergueu seu ninho em cima de um bocal de lâmpada, na sala de uma casa. Os moradores quebraram o vidro da janela para que a beija-flor saísse e voltasse à vontade.

Aqui na minha casa tive o cuidado de manter a reprodução da beija-flor em silêncio. Até mesmo a curiosidade pode prejudicar a procriação. Adultos e crianças gostam de chegar perto, falar alto, tocar, remexer. Observo sempre que posso, porém de longe, só para ver como vai o desenvolvimento dos filhotes. Segundo minha pesquisa, com duas semanas de idade, a maioria dos beija-flores já tem olhos brilhantes e atentos, e o corpo coberto de penas. Às vezes, se levantam no ninho e batem as asas. Com três ou quatro semanas, o pequeno pássaro já está pronto para deixar o ninho e começa a dominar o vôo com rapidez e facilidade.

Para eles um momento feliz, quando se sentem seguros e podem ganhar a liberdade. Para nós, com os pés plantados no chão, fica aquele sentimento de frio na barriga ao ver filho indo embora. A gente se acostuma e chega até a dizer “meus filhotinhos”. Mas não. São filhos da natureza, que apenas encontraram na minha árvore um local ideal para se reproduzir. Cabe-me respeitar, favorecer, preservar, não derrubar, silenciar, admirar. E desejar que eles voltem outras vezes. Faz bem para a minha saúde e para a energia da minha casa.
.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

MEU BLOG MUDOU!

AVISO!
ESTE BLOG CONTINUA UMA MARAVILHA!
MAS MEU BLOG PESSOAL MUDOU!
CLIQUE AQUI PARA CONFERIR!
É só clicar aqui para entrar.
Entrevistei no NOVO BLOG o escritor João Anzanello Carrascoza. Está bem interessante.
Se quiser ler a entrevista, clique aqui.
E, logo abaixo da entrevista, tem um conto meu inédito. Que estará no meu próximo livro! Seja bem-vindo e fique à vontade!
Um blog atualizadíssimo - dia a dia, hora a hora - com as últimas notícias sobre Literatura, Música, Cinema, Literatura, Arte, Prêmios e Concursos literários, Literatura, Teatro, Filosofia e Literatura. Lá também antecipo contos do meu próximo livro e publico poemas do meu último, homônimo ao blog. Seja bem-vindo! Deixe seu comentário! E se puder divulgar, agradeço.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

“Admirável mundo novo”

O sociólogo Bernardo Sorj disse recentemente no programa Invenção do Contemporâneo, na TV Cultura (segundas, 00h30) que “o mundo que formou nossa percepção não existe mais”. Isso quer dizer que muito – mas, muito mesmo – do que nos foi ensinado ao longo da história passou, mudou, caducou. Ao mesmo tempo em que corremos atrás da sobrevivência, da carreira, do sucesso, do relacionamento estável, do conhecimento, temos também que disparar rumo à adaptação a este, digamos, novo mundo.

Fomos treinados a perceber tudo do jeitinho que nos foi ensinado por nossos pais e professores, que por sua vez aprenderam com seus pais e professores, e daí para trás. Aprendemos a viver com profundidade, a exercitar o pensar, a formular, a elaborar idéias, experimentar. Viver um sem fim de cobranças para ser aceitos numa sociedade altamente exigente em comportamentos, regras, etiquetas.

Hoje, para quem viveu e vive tais regras, está difícil viver. Está difícil a aceitação de uma nova sociedade, pautada na velocidade, no imediatismo, no prazer neste momento agora mesmo. As soluções são práticas, rápidas e objetivas. A profundidade virou perda de tempo. Tem-se que fazer cinco coisas no mesmo instante e passar ligeiramente os olhos em cada uma delas pode me trazer o resultado que preciso em todas, sem parar, sem agarrar.

A internet favoreceu esta praticidade, que já passa aos jornais, revistas e outras publicações. Textos curtos, leitura dinâmica, entendimento fácil, raciocínio em flash. Foi-se o tempo de Shakespeare, Marx, Kant, Edgar Allan Poe, Nietzsche, Kafka, Rimbaud, Vitor Hugo. Sem ir tão longe, há poucos meses uma adolescente de 18 anos, universitária, me perguntou quem era Raquel de Queiroz. Será que ela tem idéia de que muitos dos nomes mais célebres da literatura morreram pouco depois dos 20 anos, nos deixando obras fabulosas? Álvares de Azevedo, por exemplo, aos 21 anos foi levado pela tuberculose, e nos legou poesias imortais. Sem falar de Castro Alves, Fernando Pessoa, Ana Cristina César, ou Torquato Neto – este suicidou aos 28 anos. Neste mundo novo de hoje, jovem que escreve poesia é um excluído.

Para quem é difícil a aceitação, a saída é denominar este mundo de superficial. Nas salas de aula, nós, professores, nos surpreendemos com mentes que, antes, chamaríamos de vazias, mas que na verdade são fruto desse mundo novo ao qual estamos tentando nos adaptar. Eles são resultado da hipermodernidade, já nasceram com o compromisso de serem melhores que seus pais, fazer rápido e passar à próxima etapa. Ler? Estudar? Reunir informação? Pesquisar? Escrever? Aprimorar o nível cultural? Só o suficiente para saber o que é preciso.

Recebi um texto pela internet dias atrás, desses que nunca temos certeza da autoria. Nele, o autor ou autora diz que nosso mundo é do tamanho do nosso foco de atenção. “É como se nossa consciência flutuasse por diferentes níveis de percepção que desvelam diferentes níveis de realidade”. Para ele, ou ela, ficamos encapsulados e limitados a um número específico de ações, em contato com uma pequena quantidade de seres e universos, incapazes de acessar outras práticas, modos de ser, sensações, emoções, visões. “Há um vasto mundo fora da nossa mente!” E o mundo de hoje, o mundo de cada um, não tem mais espaço para o mundo lá fora.

É estranho até tentar lembrar que mundo foi aquele que formou a minha percepção. Quando nasci, no ano que não terminou, grandes e até então inimagináveis mudanças começavam a pipocar pelos quatro cantos do mundo. E cresci sem me dar conta do que era importante deste tempo pra trás. Me sinto parte desta geração que apreendeu o pragmatismo e com ele formulou seu pensar e seu agir. Pelo menos não tenho tanta dificuldade em me sentir adequada. Ufa!

Certo ou errado não há mais como fugir das necessidades atuais ou ficar tentando retomar o passado, com o batido discurso “no meu tempo era assim” ou “não gosto desse negócio de MSN; prefiro o olho no olho”. Esse passou, caducou. Fica cada vez mais isolado na recusa em caminhar para a frente, em fazer parte deste novo mundo que não se recusa a correr na frente de todos nós.

.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Que circo é esse?

Lamentável.
É a única palavra que me vem à cabeça ao tentar definir o que faz o circo Big Brother que está em exibição em Volta Redonda/RJ: utiliza cães que se apresentam dançando, sob as ordens daquele que se auto-intitula artista, mas que neste caso não passa de um simples adestrador, como vários por aí.

Pouquíssimo tempo depois do brilhante espetáculo do Circo da China na cidade, no qual os verdadeiros artistas dão o show, ficamos boquiabertos com a ousadia do Big Brother de exibir animais na cidade onde reside o deputado estadual Edson Albertassi, que criou a lei, de 2001, que proíbe animais em circo em todo o Estado do Rio.

Na entrevista que deram à reportagem do jornal Diário do Vale deste sábado, 19, os donos do circo, os irmãos Ewerton e Alessandro Lestra, (não sei qual dos dois é o adestrador, porque neste caso, reafirmo que artista não é), se justificam dizendo que os cães são bem tratados, comem ração e saem para passear. Eles não fazem mais que sua obrigação dar de comer, beber e passeio aos animais. Porém, daí vai uma longa distância de obrigar cachorros a fazerem o que não nasceram para fazer. Basta imaginar-se no lugar dos bichos, que sentem tudo o que a gente sente, para perceber que isso é no mínimo cinismo.

Lamentável.
É simplesmente lamentável ler, na entrevista, o dono do circo dizer que temos preconceito contra o circo. Seria preconceito sentir asco ao verificar a falta de higiene dos banheiros disponibilizados ao público? Será que ao aprovar a instalação de um circo no centro da cidade a prefeitura observou isso? Ou fez algum tipo de exigência neste sentido? O dono do circo disse que desconhece a lei que proíbe o uso de animais. Na hora de aprovar a instalação ele deveria ter sido informado. E quem é que aprova, não é a prefeitura?

Gostaria de dizer, diretamente aos donos do circo e adestradores (não são artistas), que não temos nenhum preconceito contra nenhum circo, desde que não sujeite animais a nada. Como disse anteriormente, pagaria três, quatro, cinco, 12 vezes para assistir ao espetáculo do Circo da China porque lá, sim, tem arte.

Sim, é lamentável.
Lamentável o dono cobrar que se faça algo pelos animais que estão abandonados nas ruas, se são os circos grandes responsáveis pelo sofrimento de centenas de animais, destinados ao abandono após não servirem mais para as apresentações. É lamentável tentar se eximir de uma responsabilidade, cobrando outra, que também deveria ser a sua. Afinal, é tão cruel animal abandonado na rua, quanto obrigado a fazer gracinhas para um público voraz, numa clara demonstração de trabalho escravo, onde se faz o que não se quer, em troca de casa e comida.

Lamentável que no século 21 ainda de submeta animais a espetáculos para diversão de humanos, como barbaramente se fazia três séculos antes de Cristo. Serão os donos de circo e adestradores seres bárbaros como aqueles? Mesmo sendo pais de família e que pagam seus impostos, como dizem os donos do circo na entrevista, cremos que não há necessidade de utilizar animal para ganhar a vida, mesmo porque, são eles mesmos, os donos do circo, que afirmam que “o número que envolve os cães corresponde a aproximadamente quatro minutos do espetáculo de duas horas”.

Lamentável ainda termos que ouvir tudo isso, após tanta luta por um pouco de educação, evolução, inteligência e sensibilidade das autoridades. Ainda falta muito, vemos aí o exemplo, mas não pretendemos descansar. E que as autoridades que deveriam fiscalizar este tipo de ‘entretenimento’, cumpram realmente o seu papel. É o mínimo que a sociedade exige.
.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Parabéns pra Nós!

E fizemos aniversário e ninguém abriu um latinha? Nem um "êbaaa!"? Hã?
Pois eu vou fazer barulho e mexer no embrulho desse pacotinho aqui de fita vermelha e quem foi esse ano vê-la? A Paraty? Hum? Eu não, fiquei por quá porque minha filha nasceu nos 4 do mês. Julho é meu mês diléto. Lembro do Joaquim e do Arthur e agora comemorarei a Ana e todos os anos lembrarei de vir aqui abrir uma latinha após comprar os bibelos à minha menininha.
Este ano o Nelson deu a cadeira ao Bruxo de Cosme Velho, e foi o segundo texto que li a está ouvinte disposta, li o Apólogo. Ela não deu nesga de apreciação, mas quando li uma crônica minha babou, e aí vejo que a moça já sabe quando calar e babar. Manipular.
E estou dizendo um monte de coisas desconcexas e fico todo esse tempo sem publicar e chego a palrar e bláblár a pensar o quanto as coisas mudam em um ano, o pé de galinha se aprofunda e vira parte do desenho das aflições e quantas! muitas! e felicidades, doidas e acontecimentos impossíveis do click da crônica e eu queria dar um abraço e antes da lágrima vou parando e repetindo o feliz aniversário ao nosso cantinho! Ê! Abraços e se cuidem, um ótimo ano para os Crônicos!
t+

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Os últimos serão os primeiros

Tudo bem. A gente já sabe que uma infância calada, isolada, interiorizada e, antes que eu me esqueça, habilmente disfarçada de inteligência arrogante — estratégia pueril de autodefesa contra a exibida burrice malvada, sempre pronta para uma provocação ou outra —, corre o sério risco de acabar muito mal. E geralmente acaba. Vide este Robert Mugabe, por exemplo: por trás da eficaz retórica assassina dele, desvendam os analistas a sombra do eterno menino agarrado aos livros, filhinho da mamãe carente e isolado em fantasias de grandeza que preferia ficar sozinho a brincar com os outros — "Morei muito dentro da minha mente. Gostava de falar sozinho, ler em voz alta para mim mesmo." —, ui, arrepio. Já me envolvi em comparações melhores, gente, juro. Não me parece uma boa hora, e é por isso que evito qualquer referência comprometedora àquele evento distante — e nem por isso menos marcante —, em que me escondi no armário do quarto pra escapar a mais uma bem-intencionada tentativa de mamãe, que nunca desistiu de me transformar num "ser mais social". Fracassou, coitada. Quanto mais o tempo passa, mais bicho-do-mato eu fico. E em contrapartida, claro, mais carente do que nunca de reconhecimento, eloqüência e celebridade, ui, vade retro, coisa-ruim.
Pior ainda é pretender aproveitar esta crônica triste da inclemência humana pra me alegrar com você, leitor fiel — que não se incomoda nunca com esta minha tendência nata para o humor mais negro que as mais negras intenções de qualquer ditador africano —, e rir um bocado com os novos sinais de uma vaga promessa de notoriedade, é sério, gente, descobri por acaso no google (sim, eu goglo meu nome no google de vez em quando, mesmo soando meio assim, gluglu, perua): meu incrível best-seller e praticamente esgotado "Hierosgamos" (modéstia à parte, o livro é bom mesmo, viu, gente?) está à venda, por módicos vinte reais, na Estante Virtual — corram, fãs —, em "excelente estado de conservação".
Outras coisas bacanas que descobri na pesquisa, vamos combinar, não conto nem sob tortura: não sou babaca de alimentar este mito crescente da minha fadada arrogância intelectual, imaginem. Só alerto vocês para o fato inescapável de que vou caminhando para a fama assim, com constância e trama, como venho vivendo esta vida: entrando sempre pela porta dos fundos e comendo pelas beiradas. Pois é. Não me estranhem se dentro em breve um ou outro escritor concorrente, disputando a tapa aquele espaço cada vez mais raro — e caro — em estante real de livraria, apareça morto sem explicação possível, vocês sabem: liquidado sem nenhuma piedade por um invejoso veneno da crítica, eu é que não fui, juro que não: "Apesar dos percalços da infância, a pequena e emburrada menina de poucos amigos" já desistiu faz tempo de se tornar a rainha do castelo, viu? Quanto aos que falam tão bem de mim pelas costas, peço por favor, para o bem de todos e a felicidade geral de minhas futuras vítimas, que o façam em alto e público bom som.
Faltou à tradução de O Globo acrescentar o final do artigo original de Heidi Holland: "Mas a perseverança de Robert foi também seu jeito de lidar com um universo que ele acreditava estar sempre contra ele. Apesar de períodos de contentamento, ele estava destinado a ser consumido pela desconfiança pelo resto da vida."
Pobre menino(a) poderoso(a).

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Conversas Nardônicas

Aprendi com uma dupla de cronistas renomados – Joaquim Ferreira dos Santos e Arthur Dapiève – que a crônica deve passar ao largo das questões do dia-a-dia; deve mudar de assunto, até mesmo para dar uma folga do pesado noticiário, que normalmente nos é oferecido.

Porém, há casos em que é quase impossível mudar o rumo da prosa, por isso fiquei em silêncio nos últimos dias. Durante praticamente dois meses não se falou em outras coisa: o assassinato de Isabella Nardoni. O país parou, queixos caíram pra todo lado; o que para muitos seria considerado impossível estava ali, ao vivo, na tela da TV, relatado em todos os canais e telejornais.

Uma mobilização geral tomou conta do país. Revolta, tristeza, indignação, surpresa, choque, incredulidade. Muita gente saiu de sua casa a quilômetros de distância para fazer plantão na porta do prédio dos Nardoni, em São Paulo. A polícia precisou montar esquemas especiais de segurança para garantir a integridade física de Alexandre e Ana Jatobá. Sem contar a audiência na TV em pleno domingo, com a transmissão ao vivo da reconstituição do crime. Melhor que Juvenal Antena.

Em uma das muitas e intermináveis conversas das quais participei, ouvi de uma amiga psicóloga a seguinte explicação: “Constatamos, com este caso, que nós, seres humanos, somos capazes de cometer as piores atrocidades. Não importa se pai, mãe, filho ou qualquer outro grau de parentesco. O ser humano é, sim, capaz de matar o próprio filho. É isso o que causa o choque, esse interesse exorbitante da população”. Ouvir isso dói, mas infelizmente é mesmo uma constatação.

Na tentativa de explicar de outra forma a morte da menina, por não conseguir admitir a culpa da madrasta e do próprio pai, muita gente viajou em possibilidades hollywoodianas. “Essa família é mafiosa, envolvida com tráfico internacional. A menina foi morta num acerto de contas e para não entregarem o esquema, se meteram nessa roubada”. É. Comoção nacional também vira piração.

E ainda há os que, até hoje, acreditam na versão do casal, a de que havia uma terceira pessoa no apartamento. “Não posso crer que um pai tenha sido capaz de matar a própria filha. Prefiro acreditar que alguém entrou lá e fez essa maldade. Quer ver que daqui a alguns dias a verdade vai aparecer?”.

Difícil foi agüentar o Big Brother: entrevista de 35 minutos do casal no Fantástico (da qual se editaria 5 minutos); entrevista da mãe, Ana Carolina Oliveira, também no Fantástico, em pleno Dia das Mães; entrada ao vivo acompanhando a prisão do casal Nardoni; debates, debates e debates nos canais de notícias a cabo; o promotor adorando aparecer; Ana Carolina Oliveira em missa do padre Marcelo, visitada por Xuxa e Ivete, e abraçada por Zezé Di Camargo; enfim, uma super dosagem de apelação para garantir o telespectador cristalizado em frente à TV.

No fim de tudo acho essa história muito triste. Com todo o requinte de crueldade utilizado no assassinato de Isabella, é muito triste o ponto a que chega uma família desajustada, formada por gente desequilibrada. E quem paga por isso, claro, são os seres mais frágeis. É a mesma tristeza que dá ao ver histórias como essa acontecerem nas áreas pobres, nas favelas espalhadas por aí: crianças que morrem por espancamento; outras que são estupradas dentro de casa por pais, padrastos, tios, primos, irmãos, padrinhos; e outras tantas que são inseridas no tráfico pela própria família. A diferença é que nestes casos o Big Brother se omite. Só interessa à opinião pública quem tem dinheiro, a classe média que mora em bairro nobre. Criança favelada nasce para morrer no anonimato.
.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Vitórias

Moro em frente a um Centro de Ação Comunitária, mantido pelo governo municipal. Além das atividades da programação normal da casa, ali também se reúnem os Alcoólicos Anônimos do meu bairro e adjacências. Todos os domingos, das 19 às 21 horas, estão todos lá, cerca de 20 pessoas, não sei ao certo, para darem seus testemunhos de superação ao vício. São silenciosos, chegam devagar, cumprimentam-se, abraçam-se, falam baixo, às vezes ouvimos aplausos ou alguns risos abafados. Não conheço ninguém; não sei o nome de ninguém. Só sei que são vitoriosos.

São vitoriosos. Conseguem, dia após dia, vencer em si próprios àquela vontade doentia de sucumbir ao primeiro gole. E trocam entre eles força, coragem, fé, certeza no futuro. Me emociona, a cada domingo, vê-los nesses encontros para mim festivos. Eles deixaram para trás uma rotina de angústia e sofrimento, e decidiram apostar na vida. Não é uma decisão fácil, afinal a dependência do álcool é uma doença, cuja cura está unicamente nas mãos do paciente.

É dor, privação, insegurança, depressão, e também força de vontade, amor próprio e pela família, fome de viver, tudo misturado. Vejo em cada uma daquelas pessoas um pouco de tudo isso. A disposição corajosa de mudar de rumo, crer em si e renascer das cinzas, como uma Fênix. Na edição passada falei sobre isso aqui: mudança. Vencer vícios ou situações adversas é se permitir mudar, acreditar que existe uma mola no fundo do poço que vai te impulsionar pra fora, desde que se queira, mesmo, sair lá de dentro.

Talvez pelo exercício da escrita me acostumei a observar pessoas e tenho visto alguns exemplos de vitória por aí. Tenho um amigo que se curou do vício em drogas e hoje é professor universitário. É tão vitorioso que sequer guarda nas expressões do rosto as marcas dos dias de sofrimento. Alegre, com o olhar iluminado, sempre otimista, é espirituoso e a todo momento tem algo de bom pra dizer, sem ser piegas. É um cara feliz e pronto.

O mais interessante em tudo isso é que é difícil falar de vitória sem falar das perdas ou dores pelas quais se passa, pelas quais se é tentado à escolha pela vida ou pela morte. A vitória pessoal está intimamente ligada a um infortúnio qualquer, angústia, aflição. Não falo de vencer na profissão, ter sucesso na carreira e ganhar muito dinheiro. Conheço gente rica que nunca mais soube o que é alegria depois da morte de um filho. E superar uma perda dessa importância não é para qualquer um. Muitas mães passam o resto dos seus dias sem sentido depois de enterrar um filho.

Superação pessoal. Vitória individual sobre si mesmo. O cantor Roberto Carlos levou a vida inteira para admitir que era doente, que sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo – TOC e, finalmente, decidiu se tratar como convinha. Entregou-se a um psiquiatra e se tratou, vencendo em si a compulsão, as manias. Já o ator Michael Douglas, dizem, procurou tratamento para outro tipo de compulsão, a sexual. Era doente por sexo e só conseguiu recuperar o controle após sessões de análise e alguns remedinhos psiquiátricos para frear o desejo ardente. Por favor, leitor, não viaje. É doença mesmo, viu?

Uma coisa aprendi observando as vidas dessas pessoas e de outras tantas que não caberiam aqui. O importante é ser feliz e para isso é preciso liberdade. E qualquer sentimento que nos prenda à dor impede a vida em sua plenitude. Da mesma forma que não se pode dar asas ao prazer de viver, preso ao vício, seja de drogas, álcool, sexo. Claro que não estamos nessa vida a passeio, senão tudo seria muito mais simples. Falo na liberdade do ser completo, feliz por si, de alma leve, “espinha ereta e coração tranqüilo”. Livre. Vitorioso.
.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

poemas de amor mequetrefes

Sai cadeeiras verdes pra lá
Me acostuma esse cheiro
Me aconchega de longe
Nem sabendo dos iguais
Suadeira felizmente aproxima
Suave igual letra sem verbo
A gente vai estendendo
fôrma e nuca
Meu viking da paulicéia
Eu inseguro, tu, inseguras
Vamos levando
No andar possível
Vamos amando

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Exercício desconfortável

Mudar: Trocar de aspecto, natureza; trocar uma coisa por outra; variar; remover de um lugar; deslocar-se de uma casa para outra; transformar-se. Esses são alguns dos significados de uma palavrinha que assombra a cabeça de muita gente. Mudar ou mudança. Para uns é novidade; para outros é dor. Há pessoas que vêem nessa palavra um novo sentido para a vida, novos rumos, novos ares. Outras sentem ameaça, têm medo, não querem sair da zona de conforto.

Mudar é o próprio sentido da vida. Mudamos a cada segundo, desde que nascemos. Trocamos de células, de tecidos, desenvolvemos nossas capacidades motoras, engatinhamos, andamos. Aprendemos a falar. De gugu-dadá avançamos para papai, mamãe, angu e daí para a frente não paramos mais de absorver as mudanças que a vida nos apresenta dia após dia.

Das transformações naturais, passamos a ser, digamos, empurrados às mudanças propostas e impostas, nas mais diversas situações, sejam elas familiares, profissionais ou de qualquer tipo de relacionamento. Um casamento, um filho, outro filho, o casamento que acaba, viver sozinho, outro casamento. Um emprego novo, ser demitido, um cargo novo, mudanças na estrutura organizacional da empresa, uma nova equipe, um novo chefe, um novo subordinado. Entrar para a faculdade, formar-se, fazer uma pós-graduação, mestrado, doutorado. Tudo na vida propõe mudança, quando tomamos qualquer decisão ou quando a vida decide por nós. E podemos optar por mergulhar nesta aventura ou ficar parado, cristalizado de medo, esperando ser engolido pelo destino. Piração?

Parece que sim, mas a própria psicologia nos explica que toda mudança pode significar algo como uma morte. Porque é uma fase, um tempo que definitivamente não volta mais. O fim de uma vida, para começo de outra. Acabou, perdeu, e perda é morte, e quem não tem medo da morte? É daí que surgem sentimentos próximos ao pânico que chegam a levar muita gente aos consultórios psiquiátricos para longos tratamentos químicos, que vão ajudar o cérebro a concatenar as idéias, de acordo com as novas perspectivas.

É só olhar para dentro ou para o lado e nos deparamos com essa realidade crua, ou cruel. A vida nos coloca diante de situações de mudanças das mais variadas formas e isso é sempre positivo, claro. Mas, muitas vezes somos forçados a mudar a partir da perda de um ente, de um casamento desfeito, o que costuma ser muito doloroso. A vida nos aperta, nos coloca contra a parede, como se dissesse: “É sua chance de se tornar uma pessoa melhor”. E agora, aceito ou não? Em todo caso é uma grande oportunidade de abraçar o novo, seja qual for o jeito que se apresente, e sorver até a última gota.

Por outro lado, volto à questão lá de cima, o medo de sair da zona de conforto, da comodidade, da fantasia criada para escamotear inseguranças, incapacidades e incompetências. “Enquanto estou aqui, debaixo do tapete, ninguém vê a verdadeira sujeira que eu sou”. Quem não conhece alguém assim? Cá pra nós, aqui no pé do ouvido, se já temos problemas demais a enfrentar com nossas próprias mudanças, o que acha de alguém assim ao seu lado? Ninguém merece!

O 'transformar-se' não é nada fácil pra ninguém, ao contrário. A reforma íntima, a constante mudança interior que nos abala pra frente é um processo natural, mas nos mobiliza a pensar, a exercitar o raciocínio, a inteligência. Nos coloca frente a frente com a ética, a moral, a decência e o respeito próprios e com os outros.

Transformar-se significa fazer um esforço além do impossível para não ficar para trás, parado, escondido na acomodação, enquanto a vida corre e as outras pessoas lá fora evoluem. É um movimento difícil, requer desprendimento e não é qualquer um hoje em dia que está a fim de se desprender seja lá do que for. Mas, acredito que vale a pena, senão, não estaria aqui, escrevendo, crendo, fazendo planos, esperando por um futuro que não existiria sem mudanças.
.

domingo, 6 de abril de 2008

Santa Teresa por Ele e Ela

De Simone Silveira Kaplan


Santa Teresa por Ele

Homem não chora. Quem chora é ela, Santa Teresa. Só ela. Eu vi. Eu, perdido entre foliões. O bloco das Carmelitas passando. A Ladeira derramou um rio de lágrimas minutos antes de Anita chegar. Tanta chuva, tanta dor.

Eu me arrumei todo. Olha que não sou de vaidade. Pensei em colocar a minha melhor roupa e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-la com a cara limpa. Não usei brilhantina no cabelo nem minha camisa branca de linho. Aparei de leve a barba. Me enchi de esperança.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a birita e o jogo de cartas com a turma do Bar do Zé, despachei a empregada e dei-lhe uma gorjeta generosa. Desci e fui até a esquina. Comprei um maço de cigarros. De volta à casa, dispus o pacote e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência de taxi.

“Anita não é flor que se cheire”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar escassas pétalas de um rosa pálido nos galhos das árvores. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Fui generoso novamente na segunda gorjeta do dia.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro. Parece que foi ontem quando fugimos da multidão e das serpentinas, para trocarmos beijos extasiados e juras de amor.

19:20, ainda tenho dez minutos. Que fazer com estes dez minutos? Acendi um cigarro. Deixei o tempo passar.

Minha alegria desfaleceu-se aos poucos. O porvir foi assim, eu conto: dose de cachaça descendo quente pela garganta, o pandeiro tocando desafinado, "você manhã de tudo meu, você que cedo entardeceu, Você de quem a vida eu sou, E sem mais eu serei... Você um beijo bom de sal, você de cada tarde vã, Virá sorrindo, de manhã..."

No “Boteco do Mineiro” o músico passou o chapéu. Desta vez fui miserável. Paguei só a conta e economizei na gorjeta. Caminhei rua abaixo por entre os trilhos e confetes. Matutei com os meus botões, “ô mulher ingrata. Vá pro diabo que te carregue.”



Santa Teresa por Ela

Eu chorei . Derramei um rio de lágrimas. Ele não viu. Também não compreenderia.

Eu me aprontei toda e acabei mudando de idéia. Queria encontrá-lo como realmente sou. Não prendi meus cabelos, não usei batom vermelho. Não vesti aquela fantasia de cigana que ele gostava tanto. Só me preenchi de coragem.

O que fiz foi esvaziar a mente. Desmarquei a manicure das 11:00 horas e liberei a empregada. Fui até a esquina. Comprei um ramalhete de dálias alaranjadas. De volta à casa, dispus uma por uma no vaso e o coloquei na mesa ao lado da cama. Antes de tomar um banho, telefonei para o taxi e pedi que me pegasse às 19:00 horas. “Não posso me atrasar, por favor informe ao motorista,” eu disse à telefonista da agência.

“Osmar é traiçoeiro”, pensei ao passar pelo o Aterro do Flamengo e ao avistar árvores crescendo em solo frágil. Seguimos. As ruas estreitas e as curvas do morro surgiam aos poucos. Aquilo tudo era uma visão familiar. O taxi parou. Paguei o que devia. Desci.

Pisei em Santa Teresa e as primeiras gotas de chuva, quase invisíveis, molharam a linha do bonde, os paralelepípedos disformes, as buganvílias agarradas no muro.

19:10. ainda tenho vinte minutos. Quis acender um cigarro mas não tinha fósforo. Levantei-me e fui embora.

Meu choro ninguém viu. O porvir foi assim, eu conto: Sentei-me no meio-fio, tirei um livro de Freud de dentro da bolsa. Senti-me estúpida lendo Freud em plena terça-feira de carnaval. O abri em uma página qualquer. Li: Quando amam não desejam; e quando desejam, não podem amar. (Cap. IV, II,2).

“Meses sem notícias e agora quer me encontrar? Esquece!”, pensei. Desci a ladeira caminhando com passos tortos por entre os trilhos e confetes. “Todo caso de amor fulminante, mais cedo ou mais tarde passa. Dói mais passa”, suspirei aliviada.

Cinzas, só as da quarta-feira.

sábado, 5 de abril de 2008

Universidade do Amor

Isso mesmo senhoras e senhores. Quem disse que uma vida repleta de bons casos de amor – esses derramados de deixar cabelo branco, o peito cheio e a gente mais livre – não equivale a uma formação maravilhosamente diversa, pra não usar outros termos pernósticos, e que dá sustança pra gente continuar a andar mais sagaz e elegante?
Foi conversando de manhã com umas amigas que eu percebi que as três tinham aprendido a tomar café da manhã com seus amores, os atuais ou passados. Débora me explica que o ex-namorado combinava os elementos como ninguém e defendia a refeição primeira do dia com ardor. Raquel lembra com romantismo do ritual do café, o pinga pinga do coador velhinho, a toalha com pontos geográficos e as canecas diferentes de cada dia do amor da vida, daqueles que vão mas não passam. Érica se emociona porque o esforço do amado no preparo de misto quente e suco de laranja veio na hora em que mais precisava, mudança de cidade, sem pouso e com as malas pelo chão, o tempo do café era o carinho necessário.
E pode ser a única que exista. Porque talvez desses tempos todos, nenhuma delas se lembra do aluguel atrasado ou do texto que entregou, publicou, dos clientes que ganhou ou do quanto a conta bancária ficou mais ou menos gorda. O café da manhã, simples assim. Se trocarmos café da manhã por emoção, dá no mesmo.
Sim, há lugares mais ou menos propensos para a universidade do amor. Há quem diga que em São Paulo não dá pra praticar com o fervor merecido. Mas tem o argumento de que é possível, com mais rapidez em cada crédito. Aulas no nove da esteira. Ao invés de um café da manhã inteiro, um cafezinho de balcão na friagem do Alto de Pinheiros, uma conversa de carona na doutor Arnaldo passando pelas floristas do cemitério, uma volta corrida na Benedito Calixto pra depois se empanturrar de torresmo no consulado mineiro. Como diz a Nara, que voltou reencarnada em Fernanda takai, com açúcar e com afeto ta valendo.

quarta-feira, 19 de março de 2008

milagre

A história preferida de Rolando Telles era um milagre. O padre Raposo que desviou das balas de revólver. Numa estrada sombria, bem à noitinha, um capanga encurralou padre Raposo a mando de Honório, por desavenças de família. Padre Raposo ficou do lado da moça que se separou de Raul quando descobriu sua amante. Honório, pai da moça, nunca perdoou. Numa noite de abril, descobriu que padre Raposo partiria da fazenda Esperança para a cidade mais próxima, Nagibe, e nem perdeu tempo. O capanga sabia que o padre tinha horas fora de si. As beatas contavam os olhos virados pro alto, a fala embolada e uma vermelhidão que subia quando padre Raposo orava. Tinha muitos fiéis fervorosos, era quase milagreiro, ia ter de sumir uns tempos, mas o dinheiro era bom. Subiu a rampa que ia da porteira de Vacarias a Diabo Mole e ficou de tocaia. Ora ou outra toparia com o padre. O solidéu no meio da escuridão era a pista mais fácil para não se enganar com os peões locais, que largavam serviço nessa hora. O capanga fumou seu último cigarro de palha. Demorou.A fumaça subia lenta até o galho que ele podia ver da árvore em que se botou detrás. A fumaça era um ritual que gostava. No quintal, no lusco-fusco, ia para o quintal, botava o fumo bem pertinho, desenrolava a palha, alisava com o canivete que fora do pai, uma relíquia de família. Ajeitava o chapéu, dobrava as pernas, enrolava bem apertado do jeito que o fumo cheiroso não soltasse ponta e levava o cigarro na boca uma. A primeira baforada. A segunda já relaxava, soltava forte a fumaça na luz apagada do quintal, subindo, fazendo volta no telhado até sumir no pretume, sozinho, dever cumprido. E lá vinha padre Raposo, só devia ser, uma roupa cumprida só pode ser de padre, o solidéu, um porte de padre. Um trote ritmado, meio teimoso, coisa de padre, rompendo a estrada, pouca poeira, tinha chovido. Armou a arapuca. Tão logo padre |Raposo passou a curva, tava lá o capanga, armado de revólver e coragem. Tascou um discurso de matador. – O senhor pára, o senhor pára, o senhor pára. Um respeito devido a Deus.
Padre Raposo, que vinha fazendo orações no caminho, não se opôs. Brecou o cavalo na mansidão, esperando ver o que sabia. O capanga empunhou a arma, destilando a raiva necessária para não tremer. Foi a hora em que padre Raposo pediu.
– Só um instante, só um instante. E rezou rápido um padre nosso e tirou o solidéu no mesmo instante em que as balas zuniram pelo ar fresco da noite, saindo uma a uma na direção do alvo, riscando o breu sem meia volta na estrada . Uma a uma depositadas no solidéu qual caixinha de bola de gude, caíram assentadas no chapéu de padre Raposo que não gritava nem sorria, esperava, olhando pro alto, tal como as beatas contavam, um olho de vidro pro céu, um olho que não estava ali nem aqui, num lugar desabido. Foi então que o capanga se ajoelhou – Rolando Telles se ajoelhava – pediu perdão três vezes, contou seu mando, seus pecados, sua vidinha medíocre. Padre Raposo catou as balas no chapéu e pôs no bolso – estão até hoje com seu pai, Rolando Telles sussurava com mistério – perdoou o assassino e pediu praquela história não se repetir. Aprumou seu cavalo e seguiu para Nagibe, apertando as balas no bolso da batina às vezes.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O texto abaixo não é novo, mas está atualíssimo.

Quem somos?

Acabou. A Semana da Mulher passou e voltamos todas e todos à realidade nua e crua. Nada de beijinhos, abracinhos, botões de rosas vermelhas e felicitações nos ambientes de trabalho e nas ruas. Quem ou quantos vão se lembrar ou ao menos pensar no verdadeiro motivo de ´comemorarmos´ o Dia Internacional da Mulher? Alguém se habilita? Pois é...

Nesse mesmo dia, em 2006, tive que explicar a uma mulher porque essa ‘comemoração’ existe. E essa mulher já tinha na época mais de 30 anos e não era inculta, muito menos ignorante. Bacharel em Direito, não exercia a profissão, mas era ativa no mercado de trabalho de São Paulo. Só que na ocasião não tinha sequer idéia do por que desse nosso dia.

8 de março de 1857. Operárias de uma fábrica de tecidos, em Nova Iorque, fazem uma grande greve. Elas ocupam a fábrica e reivindicam melhores condições de trabalho, equiparação de salários com os homens e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação é reprimida com total violência. Elas são trancadas dentro da fábrica, que é incendiada. Cerca de 130 tecelãs morrem carbonizadas, num ato totalmente desumano.

Sinceramente, desde que conheci essa história passei a detestar receber rosas no Dia Internacional da Mulher. Ganhar flores, pra mim, é um presente ligado a romantismo afetivo, ou pior, a um pedido de desculpas descarado de um homem que traiu sua mulher (conheci vários confessos). Também não gosto das dezenas de felicitações que me chegam por e-mail. São todas muito parecidas: “somos lindas, maravilhosas, gostosas, cheirosas, perfeitas e necessárias” ou “temos um dia só pra gente, então vamos comemorar!!!!!!!”.

Enquanto isso, num escritório muito próximo daqui, uma mulher cabisbaixa, encolhida como um feto, tenta dar rumo a sua vida diante de uma advogada de um projeto social. Ela foi violentada durante toda a vida pelo pai e pelos irmãos. E o marido, segundo ela, nem é tão mau: “Ele me bate, sim, mas só um pouquinho...” Essa mulher, muito provavelmente, recebeu uma rosa de presente quando chegou ao trabalho de manhã. E o que é feito por mulheres assim? Porque ela não considera tão mau o homem que ´bate pouquinho´?

Porque ainda somos hipócritas. Porque ainda preferimos fechar os olhos ante o desconforto da realidade. Como aquela deputada que entra num evento na semana da mulher e diante de um auditório lotado de mulheres que realmente fazem algo de útil pela questão do gênero despeja um discurso pra lá de antigo, tipo ´a luta continua´, e em seguida sai de fininho. Gostaria de saber o que ela ou qualquer outra faz de efetivo pelas milhares de mulheres que ainda sofrem muito nesta sociedade de cultura machista. Ou somente providenciam rosas para parabenizá-las e enaltecer sua feminilidade.

O Dia Internacional da Mulher é um dia de reflexão, de pensarmos, nós mulheres, no que podemos fazer para melhorar nossas vidas e das nossas semelhantes. Dia de sair do conforto de nossos lares felizes para levar um abraço, um afago, um par de ouvidos àquelas que padecem diariamente de horrores que nem podemos imaginar. Dia de arregaçar as mangas e de ter boas idéias, propor mudanças, programas, projetos. De mostrar ao mundo que somos mulheres sim, com muito orgulho, não apenas para o deleite dos homens, porque somos cheirosas e gostosas, mas para viver com o mínimo de dignidade que qualquer ser vivo merece e tem direito.
.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Carta de Havana




“Este país não se chama Cuba, se chama Paradoxo. País muito curioso para nativos e estrangeiros, aqui se juntam os imigrantes europeus mais vis com os escravos negros vindos da África, com os chineses arrancados do formigueiro asiático, mais os aventureiros e falsos idealistas que vêm em Paradoxo uma droga, um alívio para suas frustrações”. O primeiro parágrafo de “La Visita De La Infanta”, do escritor cubano Reinaldo Montero, é meu ponto de partida. Montero me leva gentilmente ao bairro chinês de Havana, onde há uma foto de Fidel Castro na parede, comendo de palitos, diante de uma garrafa de Coca-Cola daquela mais redonda e tradicional. O registro precioso foi a única foto que sumiu na volta da viagem. Mistério. O bairro chinês está em Havana Velha, uma convulsão arquitetônica mais a sensação de que teria sido bombardeada na noite anterior.
A decoração é um kitsch sem tamanho. Ao meu redor, nenhum estrangeiro. Um privilégio num país em que há uma moeda para os nativos e outra para os gringos. A fila para o famoso sorvete Copelia dobra os quarteirões se o pagamento for em pesos cubanos. Nós pagamos em pesos conversíveis – o dólar desmascarado – e saímos chupando sorvete em frente a dezenas de pessoas na outra fila.
Para o ídolo-herói-poeta José Marti, a alma cubana é uma senhora velha que todos os dias faz a mesma coisa, e do minguado salário tira quatro partes iguais para parentes distantes. Um alívio que não sejam mencionados salsa, rum ou chicas. Nem se pode atestar oficialmente – estatísticas não existem em Cuba – mas o busto de José Marti é a imagem mais reproduzida naquele país. Em cada escola, José Martí recepciona as crianças do lado de foram, normalmente um busto em gesso. Tal como em tempos de campeonato, só se fala em beisebol, só se joga beisebol.
Amargura é o nome da rua que leva até a praça onde a ONU tenta restaurar as fachadas de casas cubanas para os turistas. O sonho de Juan é conhecer o Rio de Janeiro. Mas sou alertada que se eu fosse francesa, Paris seria o alvo. Ensolarada, Havana é Paris tomada, enfim, pelos imigrantes, canta um poeta local. Enca, com medo, segue lendo livros que lhe presenteiam os turistas espanhóis. “Alugar o quarto da minha casa é uma universidade”. Varadero não é Cuba, para o professor de Matemática Tony. “As vezes corro, corro 14 km e sinto que estou preso”. Tony mantém um celeiro no quintal de casa. No lugar de milho, livros proibidos pelo regime e charutos dados pelos amigos que trabalham nas fábricas.
Alfredo interpreta Xangô num show musical para turistas e nem se importa com o número de horas do discurso de Fidel Castro. “Ele sempre tem alguma coisa importante a dizer, normalmente no final”.
Os meninos atravessam correndo a via mais movimentada de Havana, pulam sobre a mureta do Malécon e se atiram, de cabeça, num quadrado de água do mar entre rochas pontiagudas. O exercício de precisão resulta em palmas da platéia familiar, sob um sol fortíssimo, ainda que tecnicamente, seja inverno. Amarelo, azul e rosa. Ao final do dia, a vontade é entrar numa caverna.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Meu sábado por um cisco
A fragilidade humana, sem aviso prévio


Sábado à noite. Depois de uma semana inteira de expectativa pelo fim de semana e de um dia inteiro de trabalho duro, entro no banho, me preparando para uma longa noite de diversão, quando um cisco encontra um cantinho do meu olho direito. Do cantinho, move-se para debaixo da pálpebra superior, bem no meio, me impedindo até de piscar. Para quem esperava uma noite de puro relax, foi uma questão de segundos para viver o fim do meu sábado, por um cisco.

Em 15 minutos estava no hospital, de olho fechado, segurando-o com a mão, para não sentir dor. Deito na maca, luz em cima, médico com o cotonetes pronto para entrar em ação, abre o olho e ... "É, pelo jeito esse não faz parte do grupo caseiro, aquele pretinho, poeira da CSN. Não consigo vê-lo". Anestésico, abre o olho de novo e cotonetes e jato de soro. Nada. Saio do hospital com um 'baita' curativo e a recomendação de voltar no dia seguinte, caso o cisco ainda permanecesse lá. "Agora você precisa dormir", disse o médico, no meu sábado, às 11 da noite.

Depressão. Desânimo. Uma sensação de fragilidade que só aparece nesses momentos. Um cisco, invisível a olho nu, tem a capacidade de fazer tamanho estrago. Jamais tive tanta certeza que somos menores que átomos nesse universo infinito que nos rege. Ou seja, "muito pouco ou quase nada". Estamos à mercê de forças superiores, a qual chamo de Deus, outros de Alá, Oxalá, Jeová, ou somente força da natureza. Algo ou alguém oculto que fica lá, a espreita, esperando o momento certo de dizer "fica aí que eu tô mandando", como me mandaram ficar em casa naquele sábado.

E neste momento em que falo de fragilidade lembro de situações do dia-a-dia em que isso fica claro e às vezes hilário. Se me senti arrastada à cama por um cisco, o que dizer da frase "não posso ver sangue"? Isso mesmo. Anos atrás (não preciso dizer quantos, né?) trabalhava no Hemonúcleo de Barra Mansa (ainda era setor de Hemotransfusão) e recebia doadores de sangue todas as manhãs. Não era raro um marmanjo desmaiar antes, durante ou depois da doação. Falo em marmanjo porque eram aqueles homens enormes, musculosos, que costumamos chamar de armário duplex seis portas. Fragilidade é para qualquer um; ninguém está livre. Nem aquele bombeiro másculo que precisou de atendimento dos profissionais do Pronto Socorro para acordar.

Atualmente estamos à mercê de mosquitos. Esses pelo menos são maiores que ciscos. A diferença é que cisco não provoca a morte de ninguém. Pelo menos desconheço algum caso. E é mosquito da dengue pra cá, mosquito da febre amarela pra lá. E nós, seres humanos, numa movimentação constante para ver esses bichinhos minúsculos cada vez mais distantes do nosso convívio. Porque? Somos frágeis a eles, completamente impotentes àquela picadinha que poderia ser perfeitamente inocente. Afinal, somos gigantescos, não?

Somos gigantes, sim, da arrogância e da prepotência. Não nos dobramos a regras e leis, debochamos de tudo o que possa minimamente limitar nossa liberdade, afinal, "a vida é muito curta e a gente tem que aproveitar". Planejamos nossas vidas como se fôssemos sozinhos no mundo, sem o próximo, sem a certeira Lei de Murphy. E quando menos esperamos estamos presos à caminha quente, numa noite também quente de sábado, que muito merecia um chopp, por conta de um cisco.

E se a gente parar para pensar, é justamente à mercê de seres minúsculos, só visíveis em microscópios, que nós humanos acabamos. As piores doenças, que levam milhares de pessoas à morte, são causadas por vírus e bactérias, que estão aí, na natureza, desde que o mundo é mundo, aterrorizando nossas vidas. Aids, febre amarela, dengue, gripe aviária, varíola (alguém lembra desta?). E um monte de gente grande sucumbindo a essas viroses, que arrasam todo o orgulho, nariz empinado e queixo pra cima.

Um cisco. Entrou, saiu, ainda bem. E me deixou a certeza de que sou nada, ou quase nada, e agradeço diariamente às tais forças superiores que tenha ficado apenas, apenas num cisco. E que perdi somente uma noite de sábado.
.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Vergonha de quê?

"Jim, how beautiful you are!"
de Nora Barnacle a James Joyce, morto, pelo visor do esquife


Que por trás de um grande homem existe sempre uma grande mulher, todo mundo sabe. Mas por trás de uma grande mulher, existe o quê? Um homem pequeno? Um ego masculino domado? Amansado, sim, mas a pão-de-ló, cama, cozinha e roupa lavada, café da manhã na cama. Pequeno? Talvez. Mas, certamente, raro. Nem sempre paciente.
"Bem, Jim está escrevendo seu livro. Vou pra cama e este homem se senta no quarto ao lado e continua rindo do que ele mesmo escreve. Então eu bato na porta e digo, Jim, olha, pára de escrever ou então pára de rir." É meia-noite, num certo apê em Zurique. Mas pelo que sei, poderia ser aqui, ao meio-dia, nesta sala apertada do Alto Leblon, e esta fala na boca do Alan, é, gente. Sim: é duro ser Noga e Nora ao mesmo tempo.
Mas quando leio Ulisses, me esqueço de tudo. Meu riso deliciado evoca o eterno riso deliciado daquele homem de outrora por trás do texto: um eco póstumo; e-terno. No que se refere à escrita, me identifico com J.J. em quase tudo. Escrevo tão bem quanto ele, mas se ele nunca tivesse escrito, eu mesma jamais escreveria. Sou arrogante como ele, detestada, ousada e iludida quanto à própria importância como ele era, bem: neste último aí digamos que eu esteja sozinha agora, porque Joyce, todo mundo sabe, transcendeu faz tempo a própria miséria em que acreditou a vida inteira ter vivido. Me entrego. Me arrebento. Escrevo cartas e artigos (meio desesperada, às vezes: desesperançada) explicando o que escrevo. Imponho ao leitor e aos críticos a jactância da minha literatura, e se recebo de volta não mais que um ostracismo descrente, não me calo em tréplica. Jamais me calo, esta é que é a verdade. Só quando canso de mim. Todo escritor faz isso, não é? E se não faz, de duas uma: ou porque não pode, ou porque não se arrisca. E se não pode e nem se arrisca não se reconhece escritor. É isso.
Em tudo o mais, reconheço, difiro dele. Não bebo demais. Não traio. Não sacrifico a família ao meu autocentrado delírio, bem. Isso quem sabe é por não ter família. J.J. teve patronos, ou melhor, patronas: três mulheres que, por trás da insistência dele, preservaram para o futuro a impetuosidade tão (im)própria da boa literatura. Uma delas, dizem, custou a Joyce dez anos da vida dela e quase um milhão de dólares, ops, não seria o contrário? Quem doou o quê, e a quem? Bem. Hoje em dia, vocês sabem, ninguém doa nada, doa a quem doer. Ô miséria.
Aos meus herdeiros, não deixo nenhum legado em dinheiro, nem em propriedades, nem mesmo num mero gesto de boa-vontade com o mundo. Não. Deixo apenas a minha jamais plenamente reconhecida genialidade: livros publicados, outros inéditos, todos não-lidos, poucos compreendidos, escritos esparsos acumulados. E está de bom tamanho, me acreditem.
E quanto a este texto? Acharam difícil de encarar? Acreditar que alguém pudesse ter a si próprio em tão alta conta? Pois é. Aprendi com Joyce, faz pouco tempo. E a ninguém interessa se esta onda indomável de sou-mais-eu reflete, simplesmente, um interior em conflito — uma incurável e contagiosa mania de ser humilde —, que nega teimoso tudo isso. Vale mesmo o que está escrito. Vou ter vergonha de quê? De quem? Pra quê?

Leia online: Crônicas irônicas de Ulysses

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Nunc et in hora

Não sei não. Faz tempo que tenho sentido o maior medo de prazos e falsas esperanças do tipo "agora vai". Já vi muita gente boa sucumbir por causa disso. Mas lendo a revista do Globo neste domingo, fica difícil evitar um vigoroso "agora vai" rugindo de dentro do velho peito, gerado na mágica década de 1950 e já paralá de caído. Quando o mundo já esperava que a gente de vez desistisse, ou se aposentasse, desse vez a quem de direito, não sei não: olha nóis ai ôtra veiz. Ficou difícil.
Me lembro de um comentário esnobe de S.Z., meu então assessor de imprensa, impressionado com minha decisão pospólen de trabalhar em casa, atitude vanguardeira que na época significava: desempregada. fodida. desamparada. Pois na Revista de hoje reportagem nobre retrata projetos de escritório doméstico para quem... decide trabalhar em casa, ô mulher posmoderna, sô. Inda que tardia.
Inda que tardio também o renascimento de gente que fez história enquanto eu tentava fazer uma história, muitas vezes, dando uma mão a eles, ou pegando carona pela mão deles, como na expo de jóias na late Mr. Maravilhoso do paugrandense Luis de Freitas, nos idos de 1987, lá se vão vintinho. Ou fazendo do Cochrane's Crocker meu então escritório noturno, ah, tá bom: todo mundo que freqüentava aquele bar vinha com essa entre um uísque e outro, e curioso ou não, coincidência ou não, andei escrevendo sobre o Crocker's Cochrane's ontem mesmo, a lembrança avivada pela visita do Dr. João* — a.k.a. barman Johnny — aqui em casa, quando falamos do "falecido De Gang", é sério: houve quem pensasse (não eu) que ele houvesse morrido.
Enfim. Lá vou eu de novo tentando a minha casquinha na lasquinha tardia de notoriedade que espicaça meus companheiros da então estrada, ou, pelo menos, meus contemporâneos na falta almejada de fama. Vai chegando a nossa vez tardia no bloco pós-carnavalesco "A Fila Anda". AFE.
Vocês eu não sei, mas tenho me sentido cheia de energia. Isso porque, provavelmente, depois de anos funcionando com dois cérebros disfuncionais — o de mamãe senil e o meu — finalmente substituí um deles por um mais produtivo, canalizando mensagens literais de James Joyce, eita centro de mesa bom esse!, quer dizer, centro espírita de mesa, daqueles que Joyce tão jocosamente descreve no Ulisses, ao transmitir mensagens de mortos sobre sapatos perdidos: pra levantar moral de escritor fracassado não tem encosto melhor, fala sério. Mesmo que o texto psicografado fique a anos-luz do original canalizado, dá assim, digamos, uma pontinha de esperança. Um gosto amargo e doce de ilusão porética à la Stephen Dedalus: "E minha vez? Quando?"
Pois é, gente. Junto com essa meia dúzia de três ou quatro que anda tentando se levantar dos mortos consta essa que vos fala, antiga designer, antiga metida, antiga vanguardinha do Brasil hoje metida a escritora, é, gente: antes fosse namoradinha, mas como se diz... nunca é tarde para...
Nem que seja na hora da morte, é, tradução literal da oração latina aí de cima, puro equívoco católico apostólico que eu pensei que dizia: antes tarde do que nunca, ah, bom: nunc em latim quer dizer "agora": antes agora do que nunca, não é mesmo? Ops: na hora da morte amém.

* atual doutorando em cinema pela Sorbonne, que fique bem claro: tem gente que consegue meesmo dar a volta por cima

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

O paraíso é uma droga

Minha tia octogenária, tadinha, avessa a médicos desde criancinha, amanheceu no outro dia doentinha: não deu mais pra escapar deles. Convocado, o doutor respondeu ao chamado com um coquetel formado de sete pilula(s?)zinhas de cores sortidas, entre elas o famoso e inevitável antidepressivo.
Por um lado aplaudi: titia anda mesmo muito deprimida. Mas, por outro, me preocupei. O tal do remédio tinha feito parte do repertório inicial de drogas que fez bom coro à ruina humana em que mamãe se transformou, tadinha, e acabei desistindo dele: um bom e eficiente provocador de pesadelos.
Tudo isso teria acabado por aí, fala sério, relegado a assunto irrelevante por esta que vos fala e que prefere se atirar do edifício a botar pra dentro do cérebro um antidepressivo. Mesmo assim sei sim, sei mais ou menos do que estou falando, desde que fui nomeada curadora única e absoluta das receitas controladas da família. Outro dia, na drogaria, a vendedora se espantou com o volume delas que apresentei, é, minha filha, é duro controlar a doença (mental) alheia, é sim.
Mas tudo isso teria acabado por aí, fala sério, se não tivesse seguido por um papo onskype com uma jovem brasileira de nossa boa família, bem criada, bem casada e bem nutrida e mãe de bons filhos, que confessou frente ao contra-entusiasmo da tia que ela mesma consumia o tal remédio há mais de três anos. Espanto. Perplexa. Já tinha ouvido isso antes, me entendam, de ex-marido cavalarmente insensível, como é que você, uma moça normal, de boa família, bem criada e bem nutrida e mãe de filho nenhum tem tantos problemas? Vive tão deprimida? Pois é: me revoltei. Me revoltei e me enfiei por anos na terapia, mas mesmo correndo o risco de parecer antiquada, não boto nem morta pra dentro do cérebro um antidepressivo. Prefiro me atirar do edifício, e de um jeito ou de outro, não acredito mesmo no paraíso.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

"São as convenções de uma sociedade hipócrita"

Quando era criança, minha mãe me ensinou que, por educação, devemos oferecer o que estamos comendo a quem está por perto. Esta é uma daquelas antigas lições de bom comportamento, que faziam nossos pais se incharem de orgulho de nós, filhos muito bem educados: Quando for a casa dos outros, não aceite nada. Se aceitar, não repita. Quando acabar os parabéns, não avance na mesa de doces. Não coma bolo duas vezes. Ofereça o biscoito, meu amor. Tá no finalzinho, quer um pedaço?

Uma amiga do trabalho chama a isso de “convenções de uma sociedade hipócrita”. Ela mesma passou por uma situação extremamente desagradável na infância, em conseqüência do excesso de educação de sua mãe. “Ofereça o picolé, minha filha!” E ela, obediente, e muito educada, estendeu o picolé recém aberto à amiga da mãe que, nada educada, além de aceitar ainda o lambeu por todos os lados. Minha amiga, claro, não aceitou o picolé de volta. Deixou-o e comprou outro.

Venhamos e convenhamos. Nem tudo o que se come se oferece. Como fazer isso com fruta, chocolate, sorvete, salgadinho, picolé, o último ou único biscoito do pacote, qualquer bebida que se bebe em copo ou diretamente na garrafa ou latinha? Sinceramente, não dá. Em alguns casos chega a ser uma maldade. Lembro que quando estava grávida, uma colega me mostrou um pacotinho de papel, me oferecendo cocada. Eu adooooro cocada! Peguei o saquinho, ávida, e quando olhei dentro só havia uma, pequenininha, lá no fundo. Porquê ela ofereceu? Confesso que nesses casos não ofereço. Prefiro ser chamada de mal educada.

Aliás, educação comportamental é algo bastante discutível. Mamãe e papai nos passam esses ensinamentos que quando adultos descobrimos não servirem para muita coisa. Por outro lado, há algumas orientações básicas, que deveriam ser dadas em casa, desde muito cedo e, pelo que vejo por aí, não é bem assim que acontece. Ou então a maioria das pessoas desobedece pai e mãe. O que dizer, por exemplo, de um cartaz num banheiro feminino onde se lê: “Favor não jogar papel no chão.”? Aprendi em casa, muitos anos atrás (nem tantos) que não se joga papel no chão, em nenhum lugar. Sinceramente (de novo) não consigo conceber tal solicitação. É muito lógico que não se jogue papel em outro local senão o cesto de lixo. Portanto, é no mínimo vergonhoso que se necessite de um cartaz pedindo para mulheres adultas, que freqüentaram escola, que vivem em área urbana não dispensarem seus papéis higiênicos usados no piso do banheiro.

Parece chocante dito assim, mas é a mais pura realidade. Quem já não viu um cartazinho desses em banheiro de restaurante, de bar e até mesmo de faculdade? Pior é quando há uma lista de solicitações, tipo: não jogue absorvente dentro do vaso sanitário, dê descarga após o uso, feche a torneira, apague a luz ao sair, mantenha esse local limpo. Sinto vergonha alheia quando vejo, só de pensar que alguém que não respeite regrinhas básicas de educação. Fico paralisada em imaginar uma mulher dispensando um absorvente dentro do vaso; pior ainda é imaginar a servente que vai recolhê-lo depois. Uma desconsideração com o semelhante.

Daí vamos direto para a mídia, que todo dia despeja na cara da gente o aquecimento global, as necessidades urgentes de fazer alguma coisa pelo planeta, que cada um deve fazer a sua parte, dicas para você mudar seus hábitos no dia-a-dia. Diariamente os Bonners, Fátimas, Sandras, Nascimentos, Mônicas, PHs e outros tantos denunciam o alto percentual de desmatamento na Amazônia, os índices alarmantes de poluição em países como Estados Unidos e Índia, a água que está acabando. Como é que esse tipo de informação entra na cabeça de alguém que, naturalmente, joga seu papel higiênico usado no chão? Que fuma dentro do banheiro?

Dia desses, na escola do meu filho, um garoto de cerca de dez anos saiu da cantina com uma bala na mão. Foi caminhando em direção à quadra de esportes, ao mesmo tempo em que a desembrulhava. Tirou-a, meteu-a na boca e atirou o papel para cima, deixando-o cair devagar. Ficou olhando a cena até o papel repousar no chão, virou as costas e seguiu em frente. Fiquei curiosa em saber se a mãe daquele menino o obriga a oferecer o que está comendo.
.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

cabaré

Pensando em cabaret botou sapatos de tira pelo peito do pe e saia levemente rodada na ponta. Porque deveria rodar, rodar, rodar, rodar, rodar ate que cambaleante pudesse voltar. Rodar é um meio de trazer a consciência possível entre outros efeitos do salão – torcer um pé, arrumar um par sem valsa, ficar na cadeira, se entorpecer da luz. Trazendo aos poucos o rebolado pra festa que, dormiu um tempo, mas sempre esteve ali, caldalosa ocupando um certo reguinho do peito que a qualquer nota menos estridente romperia da mais pura alegria. Moça de baile dá no pé antes, garantindo o gosto de confete fresco no travesseiro.

O Rio Tá Bombando, Meu Brother!

De Simone Silveira Kaplan

Mais uma viagem ao Brasil e me dou conta o quanto o carioca é inventivo no que diz respeito à linguagem. A gíria está no ar, a gente respira sem opção e logo, bumba! Lá vem ela, toda cheia de graça.

“Vai bombar, Simone. O Ano Novo vai bombar,” meu querido companheiro literário Bruno Vaks afirma entusiasmado, entre uma garfada do cabrito bem assado no Nova Capela, restaurante cheio charme no coração da Lapa, e uma golada no chope estupidamente gelado.

Eu por outro lado, entre tantas gírias passageiras que tento aprender às pressas para não ficar demode, Desta vez assumi a cafonice. Já aderi ao “ninguém merece”, ao “tá de brincadeira”, mas ao “bombar…” Sei não, soa à violência.

Noite seguinte, resolvo ir balançar o esqueleto lá no Carioca da Gema, outro “point” legal da Lapa. Um amigo, possivelmente entediado, sugere a Quadra de Samba da Mangueira. “Uma e trinta da manhã, Já deve está bombando por lá, está afim?” diz ele. Claramente não estava pois não movi um dedo em direção à Estação Primeira. Além do mais, a cantora do Carioca começava os primeiros acordes de “Roda Viva,” do Chico Buarque. Arrastei a saia, gritei o hino e até me dei conta, espremida entre tantos corpos suados que a música fizera meus pêlos se arrepiarem. “Ô coisa boa,” pensei, “ainda sou brasileira da gema. Daqui ninguém me tira!”, declarei triunfante.


(Rio ignorado pelas autoridades máximas do Brasil. Rio vomitando violência que já não habita só as favelas com suas ruas nuas, população sem lenço e sem documento. O sol é tão bonito e ainda se reparte em crimes já banalizados pela ocorrência cotidiana, agora no morro e fora dele. O Rio é um só, o povo também. Quando a violência vira moda, é hora de parar e se perguntar— Que país é este? E agir.)


sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

e no meio dos desvãos das possibilidades

aconteceu de novo, amor. eu vinha aflita, elétrica, aos prantos, o mundo girando aqui dentro num desenfreado absurdo. eu só pensava na chuva que não cai e por isso não encharca minha pele. o sol indo embora na avenida que divide os perímetros duma cidade e no meio dos desvãos das possibilidades eu sou apenas mais um corpo estendido ao solo.
as cilindradas da moto alcançam a absurda velocidade de frear meus pensamentos. acertada em cheio na perna e na pele, os fragmentos estilhaçados da pseudo-construção de um ser-alicerce: tudo ao chão.
estancou a moto, disparou o sangue. o arroxeado na perna direita, as mãos em carne-viva e a menina de água-viva deixa-se ferir por nada.
levanta do solo, pés andantes na flutuação estelar. uma hora cicatriza, eu sei. respiro fundo e caminho outro passo. ainda preciso atravessar a avenida e te encontrar, amor.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

O ano do Sim

Não gosto de barulho. Nem de ruídos incômodos. Amigos mais próximos chamam a isso de idade avançada. Pode ser, mas há tipos de sons que sinceramente me fazem mal. Buzina nervosa e insistente; televisão alta na casa do vizinho de madrugada; funk e pagode em qualquer situação; água pingando; choro de criança fazendo pirraça; conversa em ônibus; telefone que toca quando estou trabalhando. Argh! Tudo isso me tira do sério.

E diante de tanta coisa desagradável que se ouve no dia-a-dia, enfim a salvação. Meus ouvidos se sentiram plenos de felicidade ao conhecer o CD Sim, de Vanessa da Mata. Sim, simplesmente irreparável. 2007 pra mim foi embalado por essa voz melódica, suave, delicada, porém vibrante, num disco que marcou definitivamente a carreira dessa mato-grossense que aos 15 anos já cantava em bares de Uberlândia, em Minas Gerais.

Conheci no início do ano a música “Boa Sorte/Good Luck” – num vídeo clip exibido pelo Fantástico. Nela, Vanessa canta com Ben Harper o fim de uma relação regada a expectativas desleais. Admiradora de Vanessa desde o primeiro CD, lançado em 2002, curti muito o samba “Não me deixe só”, que virou hit nas pistas de dança, após uma remixagem de Ramilson Maia. Não esperava menos.

Vanessa da Mata chegou ao topo devagar, mas sem rodeios. Disse logo a que veio quando conheceu Chico César, em 1997, e com ele compôs “A força que nunca seca”, sucesso na voz de Maria Bethânia. Depois disso, teve várias outras composições gravadas, até estar pronta para encarar a carreira solo. Ainda bem que não demorou. Fazem muito bem aos ouvidos e para a cultura brasileira essas descobertas de talentos tão raros em tempos de música comercial, fabricada para fazer muito barulho e rebolar bundas país afora.

Sim é uma produção super madura. Assinado por Mário Caldato e Kassin, foi gravado entre a Jamaica e o Brasil. Das 13 faixas, cinco tem a participação de Sly & Robbie, dois ícones da música jamaicana. Além de Ben Harper na faixa “Boa sorte”, conta também com as participações ilustres de João Donato, Wilson das Neves, Don Chacal e uma turma de gente jovem muito boa, como o baterista Pupillo (Nação Zumbi) e os guitarristas Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Pedro Sá e Davi Moraes.

Enquanto escrevo ouço a faixa “Meu Deus”. Não é por nada, mas penso que somente uma mulher conseguiria compor algo com esse sentido. Um homem bonito assim/O que quer de mim/O que ele fará comigo/(...)/Meu Deus!/ Ave Maria!/ Se ele não é um dos seus/Ninguém mais seria. Só ouvindo, de preferência sozinha e com o volume bem alto, é possível sentir nota a nota, verso a verso, o que diz a alma feminina.

Já “Você vai me destruir” lembra os bolerões eternizados por Ângela Maria. Aqueles que cantam histórias de amor mal acabadas e muito, muito sofridas. Está acabando o amor/Você ainda não veio/Não disse não ligou/Se vem viver comigo/(...)/Você vai me destruir/Como uma faca cortando as etapas/Furando ao redor/Me indignando me enchendo de tédio/Roubando meu ar/Me deixa só e depois não consegue/Não me satisfaz. Os que consideram o estilo Ângela brega, taí a Vanessa cantando a mesma dor de cotovelo, com uma roupagem moderníssima.

Mas os versos mais marcantes de todas as composições de Vanessa nesse CD, pra mim, foi Tudo o que quer de mim/Irreais expectativas desleais. O que na música trata-se do fim de uma relação, no meu dia-a-dia e no de muita gente pode ser coisa pra lá de comum. É só pensar um pouquinho e a gente percebe um monte de conviventes cheios de expectativas desleais a nossa volta. Pensa aí. É da vida, é rotineiro, e ninguém nunca cantou, não como Vanessa da Mata.

Enfim, corre 2008 e estou aqui falando do já longínquo 2007. Sabe porquê? Esperança de que nos próximos 12 meses muitas outras Vanessas sejam descobertas nesse cenário enorme, nesse Brasil cheio de talentos sufocados ou escondidos pela música fabricada apenas para vender barulho em mega shows mega produzidos. Vanessa, Sim, faz bem aos ouvidos. Simplesmente.
.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Descacetamento de cabeça

???????
Não entendeu? Pois é isso mesmo. Descacetamento. Não está no Aurélio e nem em qualquer outro dicionário, por enquanto. A expressão já existe e tem sido largamente utilizada por ... uma pessoa. Mais precisamente uma professora. Agora você deve estar achando tudo isso ainda mais esquisito.

Tentando falar sério, ouvi essa expressão poucos dias atrás e desde então decidi que escreveria a respeito. Na primeira vez ri muito, principalmente porque a única pessoa que usa essa expressão é meio assim... descacetada da cabeça. Logo em seguida começaram a me chegar na lembrança dezenas de pessoas que conheço e que têm a cabeça descacetada e achei que isso poderia nem ser tão engraçado.

Descobri que um conhecido mata filhotes de gatos a pauladas; gente que ainda continua vendendo a alma ao diabo para se dar bem na vida; mulheres que freqüentam o banheiro da empresa e não se dão ao trabalho de trocar o rolo de papel higiênico; vereador eleito com o voto do povo e que vai trabalhar fora da cidade; gente que ainda joga lixo em rio; vizinho que toma conta da vida do outro; casamento em igreja e com festa em grande estilo, só para dar satisfação aos amigos e parentes; o ex-marido de uma amiga vai se casar pela quinta vez (minha amiga foi a quarta).

Também passaram por mim pessoas que nos dias de hoje ainda acreditam que aparecer é tudo na vida, aparecem demais, se tornam chatas, delicadas e educadas de menos e, portanto, indesejadas. Aparecem sempre nas fotos ao lado de celebridades, conhecem todos os famosos e até mentem para garantir essas 'amizades', estão em todos os eventos da alta sociedade (minha cidade tem isso?). Também houve as que eu consideraria realmente descacetadas da cabeça ou piradas, triloucas. Falam e depois dizem que não falaram; fazem e em seguida juram de pés juntos que não fizeram. Prometem e logo sofrem uma amnésia repentina.

E do jeito que as coisas andaram corridas pra mim nos últimos dias do ano, acabei por me incluir entre elas. Andei, sim, e ainda ando descacetada da cabeça. Me atolei em atividades, mesmo sabendo que não ia dar conta, mas preferi arriscar. Resultado: cheguei ao final do ano com problemas na coluna, uma sinusite aguda em pleno início de verão e até um pico de pressão alta me pegou de surpresa. Se tanta costura, como costumam dizer, já me deixariam naturalmente descacetada da cabeça, imagine com esse monte de doença sintomatizada junta. Cruz credo! Isso descaceta a cabeça de qualquer indivíduo física e mentalmente são.

Cheguei ao fim de dezembro com aquela sensação comum a todo ser humano: querendo que o ano terminasse logo para renovar as energias e as esperanças. Parece piegas? É, parece, mas é assim que todo mundo se sente. Cansado. Do trabalho, da faculdade, dos amigos, dos pouco afetos, dos maridos, das esposas, do chefe, da mãe, do vizinho, do carro velho, dos (des)governos, da falta de grana que está ali, doendo no bolso, ano após ano. “Espero que mude no ano que vem”, torcemos, num processo natural de auto-motivação para fugir do descacetamento de cabeça que nos acomete no décimo segundo mês.

Enfim, o ano terminou, me liberei dos inúmeros compromissos de trabalho, festas de confraternização entre amigos, colegas e família, desde as mais leves e descompromissadas às chatíssimas. Nos momentos finais tive o Réveillon que precisava. Cercada de amor, de amizade, que me proporcionaram momentos de paz, sossego, pouca gente, sem aquela musiquinha infernal nos ouvidos (“Adeus ano veelhooo!”) e um monte de gente em volta dando banho de champanhe em todo mundo. Valeu. Foi um encontro perfeito para descacetar a cabeça, pelo menos para iniciar o novo ano mais leve, com o HD reorganizado.

.
.