quinta-feira, 6 de março de 2008

Carta de Havana




“Este país não se chama Cuba, se chama Paradoxo. País muito curioso para nativos e estrangeiros, aqui se juntam os imigrantes europeus mais vis com os escravos negros vindos da África, com os chineses arrancados do formigueiro asiático, mais os aventureiros e falsos idealistas que vêm em Paradoxo uma droga, um alívio para suas frustrações”. O primeiro parágrafo de “La Visita De La Infanta”, do escritor cubano Reinaldo Montero, é meu ponto de partida. Montero me leva gentilmente ao bairro chinês de Havana, onde há uma foto de Fidel Castro na parede, comendo de palitos, diante de uma garrafa de Coca-Cola daquela mais redonda e tradicional. O registro precioso foi a única foto que sumiu na volta da viagem. Mistério. O bairro chinês está em Havana Velha, uma convulsão arquitetônica mais a sensação de que teria sido bombardeada na noite anterior.
A decoração é um kitsch sem tamanho. Ao meu redor, nenhum estrangeiro. Um privilégio num país em que há uma moeda para os nativos e outra para os gringos. A fila para o famoso sorvete Copelia dobra os quarteirões se o pagamento for em pesos cubanos. Nós pagamos em pesos conversíveis – o dólar desmascarado – e saímos chupando sorvete em frente a dezenas de pessoas na outra fila.
Para o ídolo-herói-poeta José Marti, a alma cubana é uma senhora velha que todos os dias faz a mesma coisa, e do minguado salário tira quatro partes iguais para parentes distantes. Um alívio que não sejam mencionados salsa, rum ou chicas. Nem se pode atestar oficialmente – estatísticas não existem em Cuba – mas o busto de José Marti é a imagem mais reproduzida naquele país. Em cada escola, José Martí recepciona as crianças do lado de foram, normalmente um busto em gesso. Tal como em tempos de campeonato, só se fala em beisebol, só se joga beisebol.
Amargura é o nome da rua que leva até a praça onde a ONU tenta restaurar as fachadas de casas cubanas para os turistas. O sonho de Juan é conhecer o Rio de Janeiro. Mas sou alertada que se eu fosse francesa, Paris seria o alvo. Ensolarada, Havana é Paris tomada, enfim, pelos imigrantes, canta um poeta local. Enca, com medo, segue lendo livros que lhe presenteiam os turistas espanhóis. “Alugar o quarto da minha casa é uma universidade”. Varadero não é Cuba, para o professor de Matemática Tony. “As vezes corro, corro 14 km e sinto que estou preso”. Tony mantém um celeiro no quintal de casa. No lugar de milho, livros proibidos pelo regime e charutos dados pelos amigos que trabalham nas fábricas.
Alfredo interpreta Xangô num show musical para turistas e nem se importa com o número de horas do discurso de Fidel Castro. “Ele sempre tem alguma coisa importante a dizer, normalmente no final”.
Os meninos atravessam correndo a via mais movimentada de Havana, pulam sobre a mureta do Malécon e se atiram, de cabeça, num quadrado de água do mar entre rochas pontiagudas. O exercício de precisão resulta em palmas da platéia familiar, sob um sol fortíssimo, ainda que tecnicamente, seja inverno. Amarelo, azul e rosa. Ao final do dia, a vontade é entrar numa caverna.