De Simone Silveira, Agosto 2007Texto dedicado à Noga SklarTrês horas da tarde de ontem, o carteiro me entregou um papel cartão rosa choque. Era uma comunicação de comparecimento ao correio. Corri. Há um bom tempo que não recebo cartas tão importantes. Julgo-as, inocentemente por opção, de valor elevado por serem registradas.
Há de se levar em consideração o cuidado extra do remetente pois não quer que seu leitor fique a ver navios e sua obra caia em mãos desafortunadas que jamais apreciarão a dedicação de se escrever uma carta, levá-la ao correio, dá-lhe tratamento VIP, e com coragem, tirar aqueles reais extras do bolso, ignorando a insistente pulguinha atrás da orelha que sussurra— e aí, boboca, palhaço, vai pagar mais? E se a carta acabar chegando de qualquer forma? Nunca se sabe, meu chapa... Você perde, mané.
A pulguinha pára para se coçar e então aquela cena da multa presa no pára-brisas lhe vem à cabeça. Multa, eu? Falta a humildade de colocar aquela moedinha na máquina, ou pagar aquela gorjeta extra pro flanelinha. Tudo pra driblar o sistema e brincar com a sorte. Como é bom a adrenalina correndo pelas veias, meu caro. O jogo vira. Vez ou outra, mais cedo ou mais tarde, ele sempre vira. E a multa está lá, brincando contra o vento que te irrita ainda mais. Não seria melhor ter colocado a moeda, ou mesmo duas só pra garantir a paz de espírito. Há os que cumprem, não são jogadores. Melhor comprar mais selos, registrar a carta e ter a certeza que é tudo pela felicidade geral do leitor!
Ainda me lembro do tempo, há uns dez anos atrás, antes da internet e dos emails, como me extasiava com a chegada de cartas. Nunca deixei de prestar a atenção ao horário de entrega das correspondências. Hábito. Aprendi bem aquele prazer.
Digo mesmo que foram as cartas e a certeza da chegada delas que me salvaram da depressão e da falta da pátria quando aterrizei nos EUA. Estava, como se diz aqui, homesick. Fechava os olhos e sentia o gosto do sal da água do Arpoador, o gosto do milho carregado na manteiga do ambulante em frente ao Canecão, das ladeiras da Lapa, do carnaval, me via atrás do Suvaco do Cristo e do Simpatia, blocos carnavalescos inesquecíveis— o carnaval havia acabado de acabar e eu partira. As lembranças eram ainda latentes, o Baixo Gávea e seu bafo que não deixava de ouvir até quando dormia, janela virada para os braços do Cristo abertos para mim, o meu namorado de então, o Jardim Botânico e o jardim da escola de teatro da Uni-Rio, na Praia Vermelha. Saudades do palco do teatro Lucinda e de alguns malucos do grupo de teatro Os Fodidos Privilegiados, Dirigido por Antônio Abjamra e João Fonseca. Os Privilegiados foi a minha casa e minha família por um ano e meio.
1996, A companhia havia acabado de se reunificar depois de alguns anos parada. Cara nova, grupo novo, tudo muito frágil. Explico: a dedicação do grupo ao espetáculo e companhia era intensa e inevitável. Precisava de uma reestruturação. Éramos muitos, o grupo era de alguma forma "democrático." Entrava qualquer um, desde que fosse comprovado que o teatro era uma escolha profissional do artista (carteirinhas do sindicato dos artistas, ainda me lembro. Quem não tinha, acabou ganhando). O espetáculo foi O Que É Bom em Segredo É Melhor em Público.
O diretor, Antônio Abujamra, juntamente com João Fonseca, tinha tido uma idéia brilhante no início do processo, que ele mesmo não participou pois estava dirigindo novela em São Paulo e vinha a cada duas ou três semanas para dar forma à peça. O homenageado seria o Nelson Rodrigues. Montaríamos O que é Bom em três atos baseados na adaptação do folhetim O Homem Proibido e rechearíamos os entreatos com cenas baseadas nas crônicas do Nelson. O entreato era a genialidade da montagem.
Eu gostava de chamar o grupo de Fodidos, como o Abujamra. Fodidos porque até os nossos figurinos eram pagos por nós. Não se fazia dinheiro lá. Patrocínio mesmo só alimentício. A nossa fome era religiosamente saciada nos intervalos dos ensaios à base de kani, aquela carne imitação grotesca de siri parecendo cigarrilha. O kani chegava aos montes durante os ensaios e apresentação. O significado mais profundo da palavra Fodidos, era a analogia direta e intrínseca à nossa condição de artista no Brasil. Éramos todos jovens, sonhadores e estávamos fazendo arte em um país que até hoje não acredita na educação, na classe artística e seu ofício, na política limpa como forma de evolução de um país e seu povo.
O Que É Bom em Segredo É Melhor em Público, estreou aos trancos e barrancos para os atores. O ilustre Abujamra, apesar de ser um diretor excepcional, mostrou um lado anti-ético decepcionante. Cortou 2/3 do espetáculo dois dias antes da estréia, deixando assim, não mão, mais da metade do elenco, me incluo nesta leva, depois de um ano de pesquisa intensa. Aprendi ali a minha primeira grande lição de desrespeito ao artista. Talvez a mais dolorida de todas pois se deu dentro de casa.
O processo de trabalho, começou com visitas semanais à Biblioteca Nacional para fotografar páginas dos jornais onde o Nelson havia escrito suas crônicas. Naquele tempo não havia quase nada da obra jornalística dele publicada em livro. Quando vi os inúmeros livros de crônicas sendo vendidos na FLIP—Festa Literária de Paraty, quase tive um enfarto. Tudo lá, prontinho pra levar para casa. Trouxe. Progresso gigantesco na literatura brasileira. Depois das visitas à biblioteca e dinheiro suado gasto para a xerox e passagem do próprio bolso, foi a vez das leituras e mais leituras— peças, romances e textos. Palestras. Começamos aliás, no Joquey Clube, na Gávea, até conseguirmos o espaço do Lucinda, na Cinelãndia. As noites acabavam ao lado, em brahma e batata frita no Amarelinho. Mesas de discussão, dentro e fora do teatro. Entre a aparição da Camila Pitanga, dando o ar da graça e de sua presença marcante por duas semanas, provando que nem todo global é, aliás insuportável e a saída dela, muito sangue rolou naquele grupo e naquele teatro, que diz a lenda ser mal assombrado (assombrado mesmo, era para mim voltar pra casa cruzando a Cinelândia à uma da manhã em dia de semana).
Camila era, penso ainda ser, simpática. Falava com todo mundo. Dizia estar em busca de uma experiência teatral. Trocamos até telefone. Iríamos tentar trazer meu ex professor da Uni-Rio, Léo Jusi, pra falar do Nelson pro grupo. Daí veio convite melhor, e ela cheia de ginga, partiu. Não sem antes deixar para trás um rastro da sua beleza latina da mistura das raças e da sua bunda perfeita e redonda, segunda a própria Pitanga, eleita naquele ano, a melhor da rede globo de televisão (perdão Camila, prometi confidência. Mas não fiquei famosa e duvido que ainda se lembre de mim. A verdade, mais cedo ou mais tarde sempre vem à tona. E hoje, quem se importa? Queria eu ter a sua bunda. ).
Os problemas daquele ano continuaram. Talvez não tão para a parte privilegiada do grupo. Quem faria o papel principal ? Era a nova questão. Uma outra mocinha, selecionada para o papel principal, durou poucos ensaios, foi selecionada para um gig melhor, novela no SBT e partiu para Sampa. O negócio é esquecer gente famosa e lançar sangue novo e ambicioso, como foi com a Cláudia Abreu no papel de Hamlet da memorável montagem a seguir premiada de Abujanra de Um certo Hamlet, em 1991, só com mulheres. Foi nesta montagem, que decidi ser atriz profissional, estudar teatro pra valer na universidade. Ainda trabalho com este cara, pensei, então, no auge dos meus dezesseis anos.
Quem? Quem? Quem? Põe a Guta Strauss, que acaba de chegar do Sul, de Curitiba. Guta tinha alguns conhecidos que já trabalhavam com o Abu há algum tempo, foi recebida com carinho extra. E por que não? E lá entrou a Guta. Menina cheia de energia, determinação. Ambiciosa. Tinha mesmo uma fisionomia rodriguiana, misteriosa, quase macabra. Ela era despachada. Sem medo. Repito, aquela menina não tinha medo de nada, do palco, de gente, do diretor, das luzes, dos erros, nada, absolutamente nada. Era impressionante. Eu a detestava como atriz, meu santo não batia com o dela fora dos palcos, mas admirava o profissionalismo e a eficiência. Guta aprendia tudo numa rapidez, marcação, fala, tudo. Assim foi. Papel escolhido é a vez de ensaiar. Era necessário colocar o volume exacerbado de informação coletada pelo grupo numa forma simples e atingível ao público. Paralelamente começou a ser produzido um outro espetáculo de Nelson Rodrigues, a adaptação de Abujamra e João Fonseca, assinando também a direção, para o romance O Casamento, Guta assumiu aquele desafio também.
A minha casa virou um antro rodriguiano na época dos ensaios. Arrastava móvel pra cá, levava a reck da televisão para lá. O meu namorado, que odiava gente em casa, estava à beira de um ataque de nervos. E eu decorava as frases da Engraçadinha e Seus Pecados e procurava alucinadamente apagar o naturalismo da sua imagem de seriado global. Expressionismo. Era só o que ecoava naqueles dias. Precisávamos de espaço. O Dulcinda, na reta final, estava mais ocupado com os ensaios de O Homem Proibido e O casamento. As cenas rodriguianas que conectavam a trama tinham que se virar para sair do papel. A gente ensaiava em qualquer lugar. Ano louco aquele. Peça pronta, ensaio geral. Chega o diretor de Sampa. Passamos a peça. Abu só balançava a cabeça. Muito longo, três horas e meia de espetáculo, dizia ele, o público vai dormir. Medo da Bárbara Heliodora sentada na primeira fila no dia da estréia? E não é que ela malhou mesmo? Detestou tudo. Temos que enxugar, concluiu.
O Ducinda quase veio abaixo. Cabeças rolaram, obviamente. Foi um deus nos acuda nos bastidores, novatos à beira do pranto. Depois do corte, lá se foram quase todas as cenas do entreatos, dois dias antes da estréia. Depois do choro, o boato—Tudo pelo processo. Não é esta a desculpa dita preferida aos que vivem pela arte no Brasil, principalmente aos que sonham em acontecer?
Peça enxuta, o resto do povo, virou mesmo, obviamente, povo, plebe, coro, no fundo do palco, cinqüenta atores da companhia, sentados em cadeiras duras durante duas horas e meia no fundo do palco do Teatro Lucinda. Imóveis. Mão nos joelhos. Só podiam piscar. É yoga. O negócio é dar vida aos olhos. Aos olhos, pupilas e cílios. Sobrancelhas, jamais! Juro ter sido esta a mais dolorida temporada teatral de todos os tempos. Tudo pelo teatro, era assim para muita gente ali— O tempo, o dinheiro dos pais, o próprio vindo dos salgadinhos, langeries e produtos da Natura vendidos no intervalos. Eu só pensava nas três classes que havia trancado na Uni-Rio, no meu dinheirinho suado de vendas de bombons e jóias entre uma matéria e outra na faculdade. Tudo em vão. Tudo? Claro que não. Pois não estou aqui hoje recordando com saudade, e digo mais, até com um certo prazer daquela experiência? Foi uma escola. Certamente. Verdade que não esqueço o desrespeito do mestre às suas próprias crias. Abraão sacrificando seu próprio filho para adorar a seu deus.
Tudo pela arte. Abú cortou muito. Resolveu eliminar os figurinos de quem não era elenco principal, vestíamos camisolas sexy preta. Nem deu pra salvá-las porque ele as detestou. Na tentativa final, quis que fossem cobertas em renda dourada. Passei uma noite com a figurinista e uma latinha de spray nas mãos tirando o negativo da renda sobre a camisola de laicra barata. Camisola rendada, cortada da peça também. Dezenas e dezenas, lixo. Nem deu pra levar pra casa a peça que me custou, ainda me lembro trinta reais. Elenco de apoio, sim viramos apoio dois dias antes da estréia, entra em roupa cotidiana—calça jeans e camiseta, resolveu o mestre. Ponto. Do pouco que restou da extraordinária obra do Nelson baseada nas crônicas e engavetada na Biblioteca nacional, que garimpamos e adaptamos, foi a dispensável mini cena com a loirinha linda de desessete aninhos. Era ligada ao Glauber Rocha, tinha o sangue do mundo do cinema. A loura não hesitou em ter uma cena de um minuto completamente nua, à meia luz. Era a sua única e primeira aparição nos palcos brasileiros. Abu entendia, a platéia também. Era Nelson Rodrigues.
Ao imigrar para os EUA, o teatro, foi o que mais me trouxe sofrimento e gerou saudades. Traidora dele no seu conceito e princípio mais puro. Carreguei esta sensação e culpa por anos. Tudo pela arte? Tudo mesmo? Eu falhei no meu próprio país. Léo Jusi escreveu no quadro negro da Uni-Rio em uma aula de Direção Teatral —você quer o teatro, e o teatro, te quer? Ali ele deve ter tirado metade da turma do trilho. Jamais esqueci aquela colocação. Exílio para mim aos vinte e dois anos. Meu exílio foi espontâneo, necessário, para esquecer os amores deixados para trás. E as cartas, as cartas me salvaram. Telefone era muito caro, ninguém ligava mesmo e eu não ligava de volta. Não sabia dos cartões telefônicos. Nem sei se tinham. Além do mais, sempre detestei falar pelo telefone.
As Cartas eram conforto, entre elas as de Rosa, minha grande amiga, irmã de alma, chegando semanalmente e sendo respondidas prontamente. Lia uma e a saudade era saciada. Nas respostas que lhe enviava, contava sobre a América, e assim eu ia me entusiasmando com tudo que era novo, com as minhas próprias impressões da realidade observada e vivenciada. Até que fiquei, fiquei mesmo, namorei, casei, tive filhos, jurei à bandeira, virei cidadã, estou voltando às artes— ao teatro, à costura, à leitura, à escrita. Tudo sendo feito novamente. Bem feito. Com amor. Dedicação e retorno. Há coisas que não mudam. Adormecem. De tanto cansaço. Ainda bem. Alívio. Há outras que evoluem muito rápidas, como a comunicação, o surgimento dos emails, chatrooms, msn, skype, e outras maravilhas do mundo moderno, que estou aos poucos me simpatizando.
Mais cedo ou mais tarde, eu me modernizo, me atualizo, I will catch up, I will be on the ball, o leite jamais ferverá e transbordará, não perderei o trem das onze, e vou parando aqui para não perder a originalidade do texto. Longe de plagiar o mestre Joaquim Ferreira dos Santos e suas expressões ressuscitadas do limbo, da lama, do escuro amedrontador do esquecimento. Esquecimento, que um dia, mais cedo ou mais tarde, cairemos todos, a maioria. Não cairemos, despencaremos, como fruta amadurecida, amarelada, murcha, manchada, bichada, flácida, seca, sem vida, sem suco. Inevitavelmente, desprevenidamente, assim sem mais nem menos, num dia quente de verão, ou mesmo por uma chuva forte, quem sabe pela força delicada da leve brisa interrompendo a natureza caridosa que ainda permite o fruto gozar do seu último gole de seiva.
Quando eu, você e o próximo cairmos, de verdade, ou no esquecimento, não restará muito, cartas, quase impossível. Emails salvos no hard drive, talvez. Mais cedo ou mais tarde se apaga tudo para não sofrer. São elas, as cartas, objetos de afeição quase perdidas, quase esquecidas pelo desuso, pela evolução da humanidade, como o latim, que pena, como uma lembrança vaga, um beijo de outrora. Eu gosto mesmo delas, de verdade. Sou tão obsoleta, fora de moda. Então, pedi perdão ao santo padroeiro das mães, coloquei os filhos na frente da televisão, gritei pro marido trabalhando no quarto ao lado que iria dar uma saidinha por quinze minutos. Fui ao correio buscar a minha carta. Há anos não recebo uma.
Não era. De dentro do envelope, puxei o conteúdo. Li Hierosgamos—Diário de uma Sedução, de Noga Lubicz Sklar.
Minha querida amiga de Oficina Literária de Paraty colocou dedicatória no seu livro capa rosa choque. Coincidência gostosa. Tem dedicatória, pensei, pode se dizer que é carta. E assim foi para mim. Fiquei feliz, ganhei meu dia! Carta longa é este livro. Noga, vou ler sua obra como se estivesse me escrito e contado um segredo seu, sagrado. Prometo te enviar uma carta de volta com comentários ao término da leitura. O meu obrigado é esta crônica que dedico agora, neste exato momento, à você.