segunda-feira, 30 de julho de 2007

PAN 2007 x TAM 3054




É como se São Paulo, sentindo-se enciumada por todos os holofotes estarem voltados para o Rio de Janeiro-sede dos jogos Pan-americanos, para o Rio de Janeiro-sede de uma das sete novas maravilhas do mundo, tentasse a qualquer custo roubar a cena da sua lendária rival. Em tal disputa virtual a essência histórica de cada cidade aflora como um fatal golpe do destino, que ao longo de mais de quatro séculos lapidou as diferenças, mas não as aboliu: São Paulo cidade-empresa de homens, historicamente alicerçada e construída sob as ações da iniciativa privada – Indivíduo; Rio de Janeiro cidade-sede da coroa portuguesa no Brasil, remotamente instaurada e constituída sob as diligências do poder público – Estado.

Agora, como que num protesto secularmente tramado, quando mais uma vez o Rio de Janeiro recupera o saudoso título de capital do País, e se torna não o centro nacional, mas a sede nas Américas dos jogos Pan-americanos (pelo menos durante os 16 dias de duração do evento), São Paulo parece dizer não. Parece dizer não, não, São Paulo diz não, com todas as letras: diz NÃO em letras colossais e iluminadas por gás neon. Diz não à cidade Pan-americana, que após a realização dos jogos será destinada aos consumidores da classe média; diz não aos mais de dois bilhões de reais destinados à construção de estádios, piscinas, quadras e ginásios, enquanto uma população inteira de miseráveis subsiste e morre em favelas e cortiços; diz não à violência avassaladora que dizima infâncias, famílias e proíbe crianças de ter acesso a escolas; diz não às 41 modalidades de esportes apresentadas e disputadas nos Pan, das quais menos de 10 podem ser praticadas pelo povo brasileiro (o povo de verdade, aquele pobre); diz não à tradição do pão e circo; diz não à crença de que o Estado pode tudo, inclusive roubar, corromper e matar. São Paulo diz não como se fosse um exemplo a ser seguido – não é, mas diz não mesmo assim. São Paulo usa chumbo grosso e diz não ao espetáculo carioca com um show sinistro que lhe custa quase duas centenas de vidas. E dizer não ao Rio de Janeiro, todos sabem, sempre foi uma facilidade para São Paulo, e vice-versa. Mas neste momento, o Rio com suas favelas, sua vila pan-americana (condomínio de luxo), sua violência, suas praias, seus ricos e seus miseráveis, é apenas uma metáfora, uma metáfora do bom e velho Brasil conhecido por todos nós – mas sempre a metáfora predileta de São Paulo.

São Paulo faz da sua tragédia o mais autêntico espetáculo brasileiro, a mais original manifestação cultural do nosso povo, a que nos imortalizaria no Olimpo, a que nos deixaria no mais alto degrau de todos os pódios universais, a nossa única e verdadeira maravilha: a corrupção. A corrupção é o motor de uma e de outra cidade, de todas as cidades brasileiras, de um micro povoado às grandes metrópoles. É ela que explica tanto a tragédia paulista quanto a comédia carioca – uma faz sorrir e a outra, chorar. E entre as duas vamos sendo obrigados a lamentar nossas incapacidades e desgraças pessoais.

Sem parte do ranço da burocracia que caracteriza a ação do Estado no Brasil, herança colonial, a tragédia autônoma de São Paulo não precisou mais do que 20 segundos (apenas vinte segundos) para interromper a orgia desportiva carioca minuciosamente concebida e planejada há mais de dois anos pelo poder público. Apenas interromper, era este o objetivo, o duro golpe do destino. Interromper para gritar, em forma de explosão, para todo o planeta que temos corrupção para dar e vender, que a mesma corrupção que superfatura a construção de complexos esportivos para encher os olhos do mundo, é a mesma que subfatura e negligencia os serviços básicos prestados à população: transporte, saúde, educação, segurança. Mas interromper para pegar uma mera carona na divulgação do mega-evento esportivo não combina com a personalidade da capital paulista. São Paulo quer mais, megalomaníaca que é, não basta a cobertura jornalística dos vizinhos continentais, isso é pouco, a Selva de Pedra do terceiro mundo quer ser notícia entre os grandes, quer ser fato na Inglaterra, na França, na Rússia, na Finlândia, na Coréia, na Itália, no Japão. E para alcançar este objetivo não faz mais do que seguir, ou subverter, as velhas e conhecidas regras do jogo-sujo da corrupção – este sim é o esporte nacional. E tudo acontece como se fosse um enorme erro, um descuido, um grave acidente, uma inesperada surpresa. Mas está tudo errado e muitos, muitos sabem disso.

Sempre, em qualquer multidão, comício ou arquibancada, somos apenas um. O que caiu e explodiu em São Paulo foi um avião carregado de pessoas, de individualidades – pai, mãe, filha, neto, marido, esposa, avó, avô, prima, sobrinho, amigo. Entre os destroços sob chamas indomáveis, a fumaça negra dos corpos carbonizados escalava o céu choroso da noite paulista até atingir altura suficiente para ser vista de Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Teresina ou Manaus; e lá no alto escrevia a sua mensagem: o mundo é feito pessoas, de indivíduos, mesmo um circo ou um estádio lotado é composto de cada um. Somos uma multidão e somos cada um, e quem grita na hora do gol em uníssono até parece ser a boca gigante da torcida, mas é a vibração das cordas vocais de cada torcedor que produz o som estarrecedor. Somos todos, mas somos só um, e desse um é impossível abrir mão.

Não adianta tratar desse público-coletivo, enquanto o público-individual estiver às moscas, desamparado, ignorado. Quem terá orgulho de estádios ou ginásios de última geração, quando faltam hospitais, escolas, segurança, comida, emprego, e, quem diria, até aeroportos?

Perto só dos números físicos do Pan-carioca (sem entrar na estratosfera das cifras) – 5662 atletas participantes, 42 países das Américas reunidos, 16 dias de competição – e da exuberante natureza da cidade maravilhosa, São Paulo dificilmente conseguiria sair da bruma cinza do seu concreto. Mas apesar de modestos, os números paulistas são fatais. Trazem em cada algarismo sentimentos e sentenças irreversíveis, inapeláveis: compaixão em vez de competição, o trabalho árduo de bombeiros em vez do de árbitros, desastre em vez de combate, o calor destruidor do fogo em vez da brandura da chama olímpica, luto em vez de luta, pesadelo em vez de sonho, o extermínio de pessoas em vez do patrocínio de atletas, e a escuridão de caixões às desejadas luzes do pódio – e no seu bojo, o cortejo de velórios, e não de torcidas.

E, mais uma vez, a individualidade ancestral dos valentes bandeirantes que habitaram a Terra da Garoa testa a coragem e a força de seus descendentes (todos aqui são bandeirantes); enquanto no Rio 40º uns buscam a deificação de seus corpos, aqui pais e familiares são obrigados à tarefa pessoal, intransferível e dolorosa de fazerem a identificação dos corpos de seus entes queridos. Lá, enquanto uns poucos sonham em entrar para a história através da quebra de um recorde pan-americano, aqui muitos sofrem o seqüestro ignominioso não só da história como da própria vida.

São Paulo precisava de uma única medalha para suplantar todas as medalhas de ouro conquistadas na outra ponta da via Dutra, uma só medalha mas de substância mais valiosa que o ouro. Sem heroísmo nenhum, mas numa única prova conseguiu quase 200 medalhas de uma só vez – dolorosas 200 medalhas de sangue. A cidade cinza espalhou seu luto sobre todo o Brasil. Em todas as vilas e cidades, reais e imaginárias, bandeiras foram hasteadas a meio mastro e até o final dos jogos Pan-americanos todos os sorrisos inteiros estão proibidos, todos devem engolir a alegria verdadeira da conquista de qualquer medalha. Com as medalhas de sangue conquistadas em tempo recorde por São Paulo, campeões ou perdedores, cariocas e paulistas, brasileiros e estrangeiros, devem manter seus sorrisos à meia boca, como bandeiras a meio pau.

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