quarta-feira, 25 de julho de 2007

O Amor Visto e Imaginado Pelo Buraco da Fechadura

Por Simone Silveira

Me encanto com a frase do Nelson Rodrigues dizendo ser ele um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.

Se o Anjo Pornográfico resolvesse passar uma noite em minha companhia eu abriria uma garrafa da cachaça Santa Isabel trazida esta manhã de Paraty e brindaríamos não às nossas diferenças e sim às nossas semelhanças. Ele esqueceria por algumas horas a sua úlcera latente e tratada a pires de leite. Também lhe estenderia um maço de cigarros: “—tira um, Nelson. Vamos falar de nós dois...”.

Diria a ele que eu também sou uma menina que enxerga o mundo pelo buraco de uma fechadura. Nasci no interior do Espírito Santo e fui levada ao Rio de Janeiro aos nove anos de idade no meio da madrugada. Era abril. Meu pai havia batido na minha mãe. Aquela teria sido a última agressão em um casamento de vinte anos. Entramos no apartamento minúsculo – eu e minhas irmãs – minha mãe disse às três filhas: “— a Tijuca é bairro família.”. Finalmente perguntaria ao Nelson: “—Quando o senhor vê o mundo por um buraco, uma fresta, o senhor se sente um estrangeiro, a clara e não a gema, um sujeito que vive no meio-fio, na borda, no limite, como eu me sinto?”.

Uma e trinta da madrugada e ambos com insônia, acenderíamos mais um cigarro continuando o papo. “—Também enxergo o óbvio”. As pessoas, as coisas, os lugares, tudo à minha volta é um retrato, fotografado pelas minhas pestanas e retinas a todo instante. Eu me tatuo destas imagens.

No meio da conversa lhe diria que fui à Paraty na semana passada e que na entrada da cidade tive que desviar o carro de um cachorro vira-lata atropelado. Tinha as tripas esparramadas pelo chão e o pêlo pardo molhado e tingido de sangue. Fechei a ventilação do carro, o cheiro de carne apodrecida foi insuportável como também a visão de um assaltante morto por um cidadão comum enraivecido dentro do ônibus 173. A cena se passou em frente ao hospital psiquiátrico Pinel há uns doze anos atrás. Eu ia da Gávea à Praia Vermelha, onde cursava teatro na faculdade Uni-Rio. Desci do ônibus, quase tropeçando no corpo caído, engoli a violência com revolta e fui estudar Molière (pausa para mais uma tragada no cigarro). No caso do cachorro, faltou-me a compaixão de outrora ou a do protagonista do filme Mexicano “Amores Perros”. Segui viagem.

Paraty estava em festa. Festa para intelectuais e simpatizantes. Mas nos becos mal iluminados e esquecidos da cidade, o povo ia vivendo o dia como se fosse qualquer outro. Eu lhe contaria estórias do lugar como a dos cinco meninos batendo pelada num terreno baldio. Por um descuido tático, a bola veio em minha direção. Para o delírio da molecada, peguei-a com o pé e a mandei de volta para a roda. “—Aêêê, tia...”. Me perdi por becos e ruas sem saída, e no muro li “Ordem e Progresso”. A palavra progresso escrita só com um “s”. Por mim passou uma mocinha, cabelo bem preto, longo e enrolado. Não dei mais que quinze. Ela andava e rebolava os quadris com a sua calça jeans bem apertadinha. Em cada mão, arrastava uma criança. Seriam as três, irmãs? Mais de perto, a barriga enorme se revelou. Sete meses de gravidez, chutei novamente. A vida como ela é— Paraty, Rio de Janeiro, tanto faz.

Eu também poderia olhar por outras fechaduras. Veria casais batendo boca por causa de um ciúme qualquer, velhos cantando brotinhos de sorrisos brancos como o sorriso escancarado de Aline Yasmim. Por uma porta entreaberta, espiaria um quarto de janelas azuis, uma mesa amarelada pelo sol. Em cima dela, laranjas secando e uma vela solitária (afinal, a cidade ficou às escuras). Veria uma mulher feliz nos braços do seu amante. Nunca é tarde para se redescobrir o amor e o sexo. Fecharia a porta e iria ver os barcos passarem. Do outro lado da margem, descobriria um sujeito enrolado em véu branco boiando nas águas do rio que desemboca na baía. "—Conheço o sujeito, não é ele o Bruno Vaks? Já queria ser famoso e agora conseguiu a façanha."

Se hoje, o Nelson resolvesse ter uma prosa comigo, eu lhe confessaria ter ontem ao entrar no avião para regressar à casa, lágrimas minando dos meus olhos (quem me dera aquilo fosse só um fenômeno físico). Passei pela primeira classe, os ricos e opulentos lançavam olhares curiosos por cima dos saltos. Sentei-me no meu assento, na janela. Cobri o rosto com as minhas mãos tremendo, e soltei um choro forte. O senhor ao meu lado cochichou: “—A gente pensa ter duas pátrias, mas no fundo, não tem nenhuma.”. “—É...”, respondi. Sou mesmo uma estrangeira neste mundo óbvio e ululante, uma menina a olhar o amor pelo buraco da fechadura, pensei.

E o avião decolou.

Um comentário:

Josephine disse...

E não é que esse buraco, o da fechadura, ficou grande?