quinta-feira, 26 de julho de 2007

Esperando o cachorro sair

por Gabriel Brust

Estou na rodoviária do Rio de Janeiro, falta uma hora inteira para o ônibus arrancar rumo a Paraty, tento me entreter com um exemplar d'O Globo do dia quando vejo pela primeira vez a cara mal-humorada da garota escandinava. Seus olhos vidrados estavam alguns centímetros acima da cartola da coluna Gente Boa, mas em segundo plano, claro, na fila de bancos plásticos à minha frente. Hesito por alguns segundos entre as notas da colunista interina e os olhos da garota escandinava, mas acabo grudando a vista naquele ponto distante acima do jornal. Ao redor da loira de rosto mal-humorado, não exatamente bonita, mas, entenda, escandinava, estavam um pai e uma mãe não menos escandinavos. Garotas escandinavas me atraem, garotas acompanhadas pelos pais ainda mais - um espirituoso amigo jornalista que eu encontraria horas mais tarde em Paraty diria que há uma explicação freudiana para essa segunda fixação, mas implorei para que não me contasse qual é. Eu prometo não levar adiante minhas paixões platônicas por garotas acompanhadas pelos pais e tu prometes não me analisar ao longo da viagem, está feito? É um acordo justo, peçamos o próximo chop.

Confesso que este ano fui para Paraty disposto a fazer turismo, ao contrário de outras vezes, quando apenas acompanhava a Flip e ouvia papos distantes sobre supostas ilhas e belezas naturais - parece que até mar tinha lá. Talvez por ter optado por um olhar de turista é que desta vez tenha podido fazer pausas para longos suspiros e farejar de fato o ar das ruas, do mar, dos bairros fora do Centro Histórico. Sabe-se que conhecer uma cidade é flanar por suas ruas e cheirá-las, nem que seja para sentir o aroma fétido das peixarias do centro de Paraty. Foi esse olhar de turista então que me fez reparar e, de certa maneira, tentar me enturmar com as pessoas que pareciam completamente alheias à festa literária. Justamente como ficariam, ao longo dos próximos dias, a garota escandinava e seus pais que - olha só! - embarcaram no mesmo ônibus rumo à Paraty. Desde o encontro na rodoviária, até o final da Flip, percebi que a família fazia um típico programa de turista gringo, sem ter a menor idéia do que se passava na praia carioca. De fato, não há livros pelas ruas da cidade nos dias da Flip. Se houvesse, eles naturalmente denunciariam que um evento de literatura estava ocorrendo ali. Faltam livros na Flip, observou aquele meu amigo que, ainda bem, desistiu de mim e resolveu analisar o evento. Deve haver uma explicação freudiana para um evento literário em que se vê poucos livros. Próximo chop.

Os bairros de Paraty fora do Centro Histórico revelam uma cidade feia, caótica e vítima de um prefeito ignorante como qualquer outro município litorâneo brasileiro. A população local, na certa, nem imagina o que se passa nas tendas da Flip, mas sabe que pode vender panos de prato para os gringos que caminham lá dentro. A garota escandinava é abordada por um deles no restaurante Casa Velha, "frutos do mar requintados", e eu não posso crer que logo na minha primeira janta fui cair exatamente no mesmo restaurante escolhido pela família. Pior: não há ninguém mais desfrutando do ar decadente do Casa Velha além de mim e dos escandinavos, localizados a duas mesas de distância. Ela olha para trás pela primeira vez, em minha direção, e eu engasgo o pescado ao molho de camarão. Apavorado, começo a folhear o completo material para a imprensa preparado pela assessoria da Flip. Tento iniciar pela terceira vez a leitura do resumo sobre José Eduardo Agualusa, sem conseguir me concentrar. Olho por cima do catálogo, assim como fiz sobre O Globo, lá na rodoviária, e ela vira para trás e me fita com a cara bela e mal-humorada mais uma vez. É o suficiente para eu acertar uma livrada na garrafa de cerveja, dar um banho em mim, na mesa, no pescado e no catálogo e, humilhado, pedir a conta com urgência. "Tenho que acompanhar um debate da Flip em cinco minutos", aleguei ao garçom. "Mas, senhor, hoje ainda é terça, a Flip só começa amanhã", respondeu o homem. Segunda humilhação completa, próximo chop, por favor, mas para levar.

Passei os dias seguintes caminhando pelas ruas de Paraty acompanhado por um sentimento duplo implacável: querendo e, ao mesmo tempo, apavorado com a possibilidade de cruzar pela garota escandinava e seus tutores - a família era estranha, falava pouco e não sorria nunca. Freqüentei alguns debates literários com quase nenhum interesse. A miséria dos paratienses que viviam no centrão, único local em que consegui uma pousada vaga, povoava meus pensamentos na maior parte do tempo. No sábado, me surpreendi de ver o dono do churrasquinho da esquina do meu hotel longe da fumaça e da carne, mas na entrada do Centro Histórico, empunhando uma faixa de protesto. A manifestação pedia energia elétrica para alguns bairros, entre outras melhorias básicas para o município, prometidas pelo prefeito, mas, claro, jamais executadas. Observei por alguns segundos e atravessei a pequena multidão rumo à minha última tarde na praia, que não poderia acontecer sem que eu encontrasse, também pela última vez, a garota escandinava. Continuava com a cara mal humorada, continuava acompanhada pelos pais silenciosos, continuava bela, mas agora de biquíni.

O biquíni eu apenas imaginei, havia uma blusa longa e larga por cima da roupa de banho. Passou sem olhar para os lados pela mesa em que eu e meu amigo freudiano bebíamos com solenidade a última cerveja da viagem. Passo firme, rumou até a beira do mar, estendeu uma toalha, sentou. Sentaram, os três. A presença dos pais não me incomoda, já expliquei. Os escandinavos tentavam aproveitar os últimos e fracos raios de sol do inverno carioca, o que para eles parecia um verão senegalês. Era o momento. Deitada, ela começava a tirar a blusa. Eu me preparava para cegar diante daquele corpo alvo que, nu, devia refletir mais luz do que uma geleira antártica. Tirei os óculos escuros, pelo menos 30 metros me separavam da cena, era preciso aguçar a visão. Olhei rapidamente para o freudiano, que subestimava minha estupefação - "então é essa a tal escandinava?". A blusa começava a se desenrolar devagar, revelando o cóxis, quando um cão vira-latas paratiense, preto como carvão, resolve se prostrar exatamente atrás da garota escandinava. Sentado, com ar blasé, olhava para o mar. Atrás dele, eu via os cabelos dourados soprando com o vento, mas nem um milímetro do corpo, completamente encoberto pelo vagabundo que, não contente em ficar sentado, deitou para refrescar a barriga no exato momento em que a garota também deitou. Foi um movimento coordenado inacreditável, digno de uma seleção de nado sincronizado. Há muitos vira-latas em Paraty, mas logo este resolveu virar o guardião da moral e da honra da família escandinava. Meu amigo freudiano, sem constrangimento, fingiu ir molhar o pé no mar para poder avaliar a garota por trás do cachorro. "Não é isso tudo", me disse, insolente, ao retornar à mesa. Pois eu me recusei a imitá-lo. Como os moradores de Paraty, que esperam a vida toda pela energia elétrica ou pela rede de esgoto, eu esperaria. "Me traz outro chop", bati na mesa. "Não saio daqui antes dela ou do cachorro!". O cotidiano não tem o direito de zombar da gente dessa maneira.

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