por Ana Beatriz GuerraToda viagem significa deixar um pouco de lado nossa vida e passar algum tempo determinado vivendo uma outra. Toda viagem significa deixar em suspenso os problemas do cotidiano, os complexos freudianos e os desejos não realizados para dar asas a alguma parte de nós que fica dormindo durante os dias.
Quando viajamos e condensamos nosso passado dentro de uma mala, nos servindo do estritamente necessário, somos obrigados a rever alguns conceitos, mesmo sem querer. Viajar é agir de novas maneiras. É abraçar o desconhecido como se ele fosse um velho amigo.
Viajar é um ato muito especial. Se a viagem for a Paraty, é mais especial ainda. Se for durante a Flip então, nem se fala. A cidade ganha uma nova atmosfera, mesmo que artificial, por ser passageira. Ganha uma luz diferente, que só se vê de óculos escuros. Ou com os olhos do coração.
Tem algo de profundo e emocionante em juntar-se àqueles milhares de pessoas que se reúnem para ouvir idéias, porque se alimentam delas e sabem que elas são a verdadeira matéria do mundo.
Estar em Paraty é como voltar à infância e ouvir histórias da carochinha atuais, histórias para dormir, histórias do boi da cara preta narradas pelas mesmas pessoas que as inventaram. Ouvir as vozes, as línguas, os sotaques, viver na Babel é sentir-se ninado.
Anedotas, poesias, observações, lamentos: é impossível retornar a Paraty sem voltar um pouco para casa, sem atravessar os séculos e o tempo da vida. Passear por suas ruas é dar uma volta com quem você foi e vislumbrar um pouco quem você vai ser. Porque é fisicamente impossível caminhar pelas pedras pé-de-moleque sem lembrar do doce, sem estar no tempo presente, sem olhar para o chão, sem ter vontade de pular amarelinha.
São os caminhos estreitos que levam sempre à Praça da Matriz, onde somos recebidos por balões de cabaça pendurados nas árvores, pelo sorriso do gato de Alice, pelo Arlequim em retalhos: é chegar um pouco ao Céu e conviver em carne e osso com personagens que a gente achava que existiam só nos sonhos. Vou te contar um segredo: os sonhos viram realidade. Eles estão escondidos em singelos antídotos para eventuais melancolias: tudo passa e, por isso mesmo, merece ser fotografado, exige o exercício do enquadramento.
Eu vejo um homem que materializa flores irreais em papel crepom; outro que mora com as borboletas e deixa que elas beijem sua barba, e, quando vou prestar atenção, eu sou uma das bailarinas que flutuam nas janelas, ou uma das negras que fofocam sobre os passantes, ou um barco, ou um peixe de papel, ou o cais. Quando vou ver, já estou pensando como o mar ou a montanha, ou uma das nebulosas que só puderam ser vistas com o apagão. (Mas há aqueles que não olham para as estrelas nem mesmo na sarjeta.)
É impossível caminhar pelas pedrinhas sem querer que a rua seja minha, que a noite seja minha, que o fogo das lamparinas me consuma. É impossível caminhar pelas pedrinhas sem fazer um mergulho dentro de mim: estar em Paraty é mesmo um convite à introspecção.
E não se iluda quem acha que os fantasmas dos quais fugimos não nos perseguem até lá. Estar em Paraty também é meio take a walk on the wild side, é vestir-se de preto e protestar ao som do Réquiem, é o índio bêbado, a mulher que vende panos de prato, o assédio das esmolas, a boemia pela boemia, o poema que tem o mesmo valor de uma bananada.
É escrever palavras-chave no bloquinho, é voltar grávida de idéias recicladas, é bater palmas pelo reconhecimento, é ouvir um autor rimar amor com dor (mais uma vez!), é fazer a crônica das horas, é sentir que o tempo deveria caber menos nos relógios e mais por entre as esquinas que não se vêem, as paredes brancas, as cores vivas dos umbrais, o véu gigantesco da noiva demoníaca e diáfana.
Estar em Paraty é ser e não ser um pouco mais rodrigueana, é levar a vida dentro do drama e para o drama, é saber que o escritor não pode estar acima, abaixo ou dentro da vida, mas fora dela, para perceber que... Para perceber que a vida do lado de fora é um pouco mais solitária, mais esquizofrênica, mais descontínua, porém mais rica, mais colorida, mais brincalhona.
Os sonhos que viram realidade não podem ser compartilhados. Só podem ser vividos quando permitimos que a loucura que nos habita transborde pelas ruas, alague os rios sólidos por onde passam os leitores que batem palmas silenciosas, que se confundem com os gostos, os cheiros, as unhas vermelhas das mulheres, as sandálias Havaianas, os personagens travestidos de gente.
Os personagens não estão um andar acima das pessoas. A poesia está nas ruas e é vendida por módicos trocados. É comida de gente que não quer só comida. O poeta desconhecido, o palhaço ilustre, a atriz de longos cabelos e olhos grandes, todos estão debaixo do céu de estrelas. Todos acordam para os dias de azul , calor, música francesa, sambinha e marcha fúnebre: Paraty é vida em festa. É cidade que se arruma, se colore mais, se prepara para receber seus visitantes sazonais. Mas o brilho que reflete no espelho do chão está nos olhos de quem vê. Porque é mais fácil enxergar quando se é o estrangeiro, quando a rua não é sua, quando se aceita o convite para olhar para dentro. Existem os que vão a Paraty só de passagem mesmo. Nem todo mundo nasceu para cronista. Nem todo mundo atende ao chamado de "escreva-me". E, se amanhã eu acordar mais um pouco Gregor Samsa, por favor, não estranhe. É o banzo da cidade, é a saudade do charme, é a despedida do inevitável: tento flutuar como as bailarinas pelo maior tempo possível, mesmo sabendo que os encantos da cidade se revelam novos a cada visita.
Pegue um livro e abra em qualquer página: recorte um verbo, grude na sua testa e siga aquele mandamento até o ano seguinte. Escrever é cortar palavras, é passar pela peixaria e achar graça, é caminhar de sapatilhas, é ser um pouco irresponsável sem temer a rainha que mandar cortar a cabeça... O gato sorri. O cachorro vira-lata sorri. A lagartixa sorri. A lagartixa ainda passeia pelas paredes. Ela ainda está lá, que inveja. Eu voltei. Eu voltei com a gravidez de idéias, com os passos de dança, com os sonhos que filtrei. Voltei mais pesada e mais leve. Se for preciso me desfazer de itens desnecessários, rasgarei as páginas para digeri-las. Mas, se não for preciso, gostaria de contar para você agora a história da carochinha. Era uma vez uma cidadezinha no sul fluminense... Onde eu me perdi, eu me achei. Uma parte de mim se desdobra para aquelas esquinas que não se encontram, enquanto a outra parte tenta rememorar o cotidiano com o ritmo de ontem. É. Até ontem eu estava lá. Mas que inveja da lagartixa nas paredes!