terça-feira, 31 de julho de 2007

Não falo sobre o óbvio porque o óbvio não me assalta

Por Elaine Pauvolid*

Paraty vai para muito longe com a FLIP. Isso é óbvio e o óbvio não assalta. Falarei sobre o encanto, sobre o significado especial da cidade de Paraty. Considero-a um lugar mágico assim como Santa Teresa, Lapa ou Parque Lage. São lugares para os quais ou pelos quais preciso passar ou chegar quando estou no Rio de Janeiro. São lugares inexplicáveis. Quem passeia pela Lapa ou Santa Teresa simplesmente há de balançar a cabeça e concordar comigo. Não precisam palavras. É isso. Com o Parque Lage a mesma coisa, talvez, com menos cabeças balançando. Para concordar comigo a pessoa deverá ter o que fazer lá. Ou dar uma esticada nas pernas ou estudar Artes Plásticas, ou seja lá o que for. Se o parque Lage é passagem para alguém, eu diria, que é, eu sei. Há os caminhantes a seguir as trilhas da floresta, mas, ir por este caminho seria desviar do meu ponto de vista. Fico com o reduzido olhar que me cabe ao enxergá-lo necessariamente como um lugar de chegada e ponto.

Já Paraty, eu diria ser óbvio o fato de ser aqui – escrevo do lugar mesmo – o lugar onde prêmios Nobel deveriam tropeçar nas pedras lisas das ruas de pé-de-moleque mais parecidas com fundo de riacho. Deveria ser aqui onde simples mortais esbarrariam com entidades, como Barbara Heliodora, a senhora a teimar em levar à glória ou ao fracasso qualquer peça que lhe passe sob os olhos, a manter-se altiva a despeito dos anos lhe pesando às costas, a vestir-se como uma alemã e a trazer o ar de aluna de um Sacre Coeur, a fazer a lição de casa.Também Paraty seria o único lugar possível para Alice no país das maravilhas vir atuar em seu mais fiel Lewis Carol. Eu esbarraria com ela e a cumprimentaria por legítima força do hábito. Seria possível um Kafka se debatendo em uma cama encardida abaixo de uma amendoeira feliz. E para explicar o inexplicável eu diria que Paraty só poderia ser aqui.

* http://www.elainepauvolid.net/

segunda-feira, 30 de julho de 2007

A D E U S

De simone Silveira


Entre as minhas obsessões, carrego o gosto pelo saudosismo, perda, pela partida. Hoje pensei em todos os adeus—o dito, não dito, dado, recebido ao longo do meu caminho.

E se amanhã tiver eu que dizer um adeus? Como? Qual o adeus entre tantos?

“Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor...” Se eu perder este trem...”. Quem nunca derramou uma lágrima quando a voz falhou? Ou deu um aperto frio de mão quando o desejo era um abraço longo?

Há o adeus que nunca foi dito. A estação vazia, o viajante parte—ele e a sua bagagem.

Há o adeus que já nasce na hora do encontro primeiro. Eles se conhecem, se entrelaçam, se dividem e já estão marcados com o adeus.

Penso naquele dado a quem se ama antes da hora. A vida foi breve. O amor foi breve. A estrada mútua passa a ser de só um. Este eu ainda não vivi.

Macalé já dizia, “Sim, eu estou tão cansado, mas não pra dizer que eu não acredito mais em você... ” Adeus dolorido o cantado pela Gal, rasgando a alma. Este é o adeus dos amaldiçoados, dos que amam obsessivamente e não se entendem, a dor é grande demais, o cansaço é o que resta. O desejo jaz.

Há o adeus que não se quer dar, se empurra para o dia seguinte. A palavra fica ali, dissimulada, nas ligações não feitas, nas cartas não mandadas, nas horas intermináveis de espera de um sinal de vida alheio. E quando o sinal chega, é tão brando, desbotado, que o adeus já nem é necessário. O tempo se encarrega do aceno.

Finalmente há o adeus mudo, daqueles que se calam por si mesmos em solidão plena.

Julho, 2007

Patos

Diante daquele céu desacostumado com olhos tão quentes naquele hotel desabituado com barulhos, uma cortina rosa claro amanhecia nem tão cedo assim. Nadar com patos não era alguma coisa feita com freqüência e lhe parecia o mais provável para aquele dia de sol frágil de verão europeu. O corpo acordava ágil das estripulias da madrugada doce . Ele já bem logo voltaria mas ali estava olhando com ela pela fresta com todo o tempo possível aquele cenário de fabula que logo evaporaria com o álcool. Mas havia alguma tensao sublime naquela companhia mesmo que na banheira sofisticada tivessem se misturado espuma e musica e o dia prometesse boas braçadas junto com os patos. Sentaram na beira do lago meio suburbanos meio turistas meio amantes meio coléricos com o desenrolar daquilo que já se sabia. Nada mais impermanente que a felicidade de uma companhia . Os patos não lhes evitavam, havia um ar seco nas peles, cada cabeça uma sentença. Os olhos pouco se encontravam mas as pernas... Ah, as pernas se trancavam num caminho rápido e a plataforma no meio do lago balançava. Quando ele decidiu pular na água fria um séqüito se formou em volta dela, de brucos, cercada de braçadas de javali, rodeando sua moca que já voltaria pralgum lugar noutra manha, numa cidade que não seria dela, nem sua. Ele apertava o ritmo, pulmões já de um muco levemente desenhado de nicotina, ela torcia pra que ele voltasse, se ele afogasse, se ele afogasse.

PAN 2007 x TAM 3054




É como se São Paulo, sentindo-se enciumada por todos os holofotes estarem voltados para o Rio de Janeiro-sede dos jogos Pan-americanos, para o Rio de Janeiro-sede de uma das sete novas maravilhas do mundo, tentasse a qualquer custo roubar a cena da sua lendária rival. Em tal disputa virtual a essência histórica de cada cidade aflora como um fatal golpe do destino, que ao longo de mais de quatro séculos lapidou as diferenças, mas não as aboliu: São Paulo cidade-empresa de homens, historicamente alicerçada e construída sob as ações da iniciativa privada – Indivíduo; Rio de Janeiro cidade-sede da coroa portuguesa no Brasil, remotamente instaurada e constituída sob as diligências do poder público – Estado.

Agora, como que num protesto secularmente tramado, quando mais uma vez o Rio de Janeiro recupera o saudoso título de capital do País, e se torna não o centro nacional, mas a sede nas Américas dos jogos Pan-americanos (pelo menos durante os 16 dias de duração do evento), São Paulo parece dizer não. Parece dizer não, não, São Paulo diz não, com todas as letras: diz NÃO em letras colossais e iluminadas por gás neon. Diz não à cidade Pan-americana, que após a realização dos jogos será destinada aos consumidores da classe média; diz não aos mais de dois bilhões de reais destinados à construção de estádios, piscinas, quadras e ginásios, enquanto uma população inteira de miseráveis subsiste e morre em favelas e cortiços; diz não à violência avassaladora que dizima infâncias, famílias e proíbe crianças de ter acesso a escolas; diz não às 41 modalidades de esportes apresentadas e disputadas nos Pan, das quais menos de 10 podem ser praticadas pelo povo brasileiro (o povo de verdade, aquele pobre); diz não à tradição do pão e circo; diz não à crença de que o Estado pode tudo, inclusive roubar, corromper e matar. São Paulo diz não como se fosse um exemplo a ser seguido – não é, mas diz não mesmo assim. São Paulo usa chumbo grosso e diz não ao espetáculo carioca com um show sinistro que lhe custa quase duas centenas de vidas. E dizer não ao Rio de Janeiro, todos sabem, sempre foi uma facilidade para São Paulo, e vice-versa. Mas neste momento, o Rio com suas favelas, sua vila pan-americana (condomínio de luxo), sua violência, suas praias, seus ricos e seus miseráveis, é apenas uma metáfora, uma metáfora do bom e velho Brasil conhecido por todos nós – mas sempre a metáfora predileta de São Paulo.

São Paulo faz da sua tragédia o mais autêntico espetáculo brasileiro, a mais original manifestação cultural do nosso povo, a que nos imortalizaria no Olimpo, a que nos deixaria no mais alto degrau de todos os pódios universais, a nossa única e verdadeira maravilha: a corrupção. A corrupção é o motor de uma e de outra cidade, de todas as cidades brasileiras, de um micro povoado às grandes metrópoles. É ela que explica tanto a tragédia paulista quanto a comédia carioca – uma faz sorrir e a outra, chorar. E entre as duas vamos sendo obrigados a lamentar nossas incapacidades e desgraças pessoais.

Sem parte do ranço da burocracia que caracteriza a ação do Estado no Brasil, herança colonial, a tragédia autônoma de São Paulo não precisou mais do que 20 segundos (apenas vinte segundos) para interromper a orgia desportiva carioca minuciosamente concebida e planejada há mais de dois anos pelo poder público. Apenas interromper, era este o objetivo, o duro golpe do destino. Interromper para gritar, em forma de explosão, para todo o planeta que temos corrupção para dar e vender, que a mesma corrupção que superfatura a construção de complexos esportivos para encher os olhos do mundo, é a mesma que subfatura e negligencia os serviços básicos prestados à população: transporte, saúde, educação, segurança. Mas interromper para pegar uma mera carona na divulgação do mega-evento esportivo não combina com a personalidade da capital paulista. São Paulo quer mais, megalomaníaca que é, não basta a cobertura jornalística dos vizinhos continentais, isso é pouco, a Selva de Pedra do terceiro mundo quer ser notícia entre os grandes, quer ser fato na Inglaterra, na França, na Rússia, na Finlândia, na Coréia, na Itália, no Japão. E para alcançar este objetivo não faz mais do que seguir, ou subverter, as velhas e conhecidas regras do jogo-sujo da corrupção – este sim é o esporte nacional. E tudo acontece como se fosse um enorme erro, um descuido, um grave acidente, uma inesperada surpresa. Mas está tudo errado e muitos, muitos sabem disso.

Sempre, em qualquer multidão, comício ou arquibancada, somos apenas um. O que caiu e explodiu em São Paulo foi um avião carregado de pessoas, de individualidades – pai, mãe, filha, neto, marido, esposa, avó, avô, prima, sobrinho, amigo. Entre os destroços sob chamas indomáveis, a fumaça negra dos corpos carbonizados escalava o céu choroso da noite paulista até atingir altura suficiente para ser vista de Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Teresina ou Manaus; e lá no alto escrevia a sua mensagem: o mundo é feito pessoas, de indivíduos, mesmo um circo ou um estádio lotado é composto de cada um. Somos uma multidão e somos cada um, e quem grita na hora do gol em uníssono até parece ser a boca gigante da torcida, mas é a vibração das cordas vocais de cada torcedor que produz o som estarrecedor. Somos todos, mas somos só um, e desse um é impossível abrir mão.

Não adianta tratar desse público-coletivo, enquanto o público-individual estiver às moscas, desamparado, ignorado. Quem terá orgulho de estádios ou ginásios de última geração, quando faltam hospitais, escolas, segurança, comida, emprego, e, quem diria, até aeroportos?

Perto só dos números físicos do Pan-carioca (sem entrar na estratosfera das cifras) – 5662 atletas participantes, 42 países das Américas reunidos, 16 dias de competição – e da exuberante natureza da cidade maravilhosa, São Paulo dificilmente conseguiria sair da bruma cinza do seu concreto. Mas apesar de modestos, os números paulistas são fatais. Trazem em cada algarismo sentimentos e sentenças irreversíveis, inapeláveis: compaixão em vez de competição, o trabalho árduo de bombeiros em vez do de árbitros, desastre em vez de combate, o calor destruidor do fogo em vez da brandura da chama olímpica, luto em vez de luta, pesadelo em vez de sonho, o extermínio de pessoas em vez do patrocínio de atletas, e a escuridão de caixões às desejadas luzes do pódio – e no seu bojo, o cortejo de velórios, e não de torcidas.

E, mais uma vez, a individualidade ancestral dos valentes bandeirantes que habitaram a Terra da Garoa testa a coragem e a força de seus descendentes (todos aqui são bandeirantes); enquanto no Rio 40º uns buscam a deificação de seus corpos, aqui pais e familiares são obrigados à tarefa pessoal, intransferível e dolorosa de fazerem a identificação dos corpos de seus entes queridos. Lá, enquanto uns poucos sonham em entrar para a história através da quebra de um recorde pan-americano, aqui muitos sofrem o seqüestro ignominioso não só da história como da própria vida.

São Paulo precisava de uma única medalha para suplantar todas as medalhas de ouro conquistadas na outra ponta da via Dutra, uma só medalha mas de substância mais valiosa que o ouro. Sem heroísmo nenhum, mas numa única prova conseguiu quase 200 medalhas de uma só vez – dolorosas 200 medalhas de sangue. A cidade cinza espalhou seu luto sobre todo o Brasil. Em todas as vilas e cidades, reais e imaginárias, bandeiras foram hasteadas a meio mastro e até o final dos jogos Pan-americanos todos os sorrisos inteiros estão proibidos, todos devem engolir a alegria verdadeira da conquista de qualquer medalha. Com as medalhas de sangue conquistadas em tempo recorde por São Paulo, campeões ou perdedores, cariocas e paulistas, brasileiros e estrangeiros, devem manter seus sorrisos à meia boca, como bandeiras a meio pau.

sábado, 28 de julho de 2007

A Casa da Mãe

Logo que chego na rua é delírio. Todos cumprimentam sem formalidades. Tá ficando velho!? E aí cabeça! Quanto tempo! Os pés me levam até a velha casa no centro da rua. Uma calçada, que papai sempre prometeu colocar piso, mas ainda se reveste de cimento. Gasto. Como o portão, enferrujado, que ainda treme pelas batidas da bola do Três dentro três fora.

Tenho a chave, como um porto seguro, para uma saída pela esquerda no caso de aperto. Mas não é só chegar abrindo, tem as duas voltinhas especiais na fechadura. Que só quem é de casa conhece.

O quintal de piso. Muito longe daqueles quintais com jardins e plantas. Aqui, no máximo, a presença de uma Samambaia no canto, isolada, seca, há muito morta. Entro, desviando do cocô da terceira geração da Preta, Bumer. Que insatisfeito por eu não ter pisado em alguma mina, pula nos meus braços, me lambe, com seu carinho sujo.

Deixo o canino para traz. Pelo amor de Deus não me deixa esse infeliz entrar. Sala. O coração do lar. Que até bate mais rápido pela minha chegada. Na Tv passam novelas reprisadas, no rádio músicas já dançadas. Nada de piano! Nem caberia. Contudo, um pandeiro e um violão no canto, ao lado da estante, relembra as noites de folia.

O cheiro do café me chama lá da cozinha, junto com aquela voz de mãe. Entra logo, mas com cuidado, acabei de passar cera. Cera vermelha. Há muito comprada no carro de produtos de limpeza, que passa religiosamente toda semana. Sabão de coco! Cera liquida! Pasta para dar brilho em alumínio!...

Sigo pelo corredor, velhos quadros. Cópias de grandes mestres da pintura, mostram que na simplicidade lá de casa, existe um certo eruditismo, frescura. Junto aos mestres: fotos. Almas congeladas, algumas há muito elevadas aos céus das lembranças, outras, há muito não se conversam. Falta de tempo. Desavenças. Nem quero saber.

Nossa Senhora Aparecida de sentinela evita a briga até entre os quadros.

Passo pelo banheiro. Entro. Cheiro de lavanda. Levanto a tampa. Tiro água do joelho. De porta aberta. Como é bom estar em casa. Abaixo a tampa. Não dou descarga. Lavo a mão, abro a porta espelhada do armário. Velhas escovas riem pra mim, e a minha própria, deixa escorrer lágrimas de saudade.

Corredor. Passo ao lado da escada que sobe para o andar do descanso. Como que detectando: Se for subir tira o sapato, limpei o carpete. Desisto. Mas me basta fechar os olhos para ver a velha mobília, a cama talvez com a colcha que ganhou no casamento.

Cozinha. Lá está Ela. Tão linda. Com um lenço cobrindo os fios brancos da experiência. Avental protegendo a roupa dos respingos de café. Café que está no coador, acompanhando o leite que, já, já, ferverá no fogão, mas não vai transbordar, com ela, isso nunca acontece. Cheiro de fubá no forno.

Recebo um abraço. Um selinho de amor. Segura-me e olha nos meus olhos. Tá magro, anda comendo direito? Tô com pressa. Só passei pra ver como estão as coisas. Palavras, frases feitas na rotina de anos, ditas, outras não, mas entendidas mesmo assim. O amor não precisa de muitas formalidades, e até falar é formal para os que amam.

Tá tudo bem. Como Deus manda. Sento na cadeira que fica na cabeceira da mesa redonda. Todos aqui são iguais, mesa quadrada é muito hierárquica, aqui se preserva a cumplicidade da redonda. Minha caneca logo se enche de café com leite. Dois pedaços de bolo. Cremoso. Quando toca em meus lábios, faz-me ouvir os sorrisos de outras épocas, a gente brincando de pega. Não é pra correr dentro de casa! Aí meu Deus! Gargalhadas. Ainda mato um!

Devaneios. Por um segundo vejo a mesa cheia. Mãozinhas que esperam o pão com Manteiga, pra molhar na xícara de café e leite, num ritual saboroso. Acho, que até Preta, mais esperta que Bumer, vem subir na minha perna, pedindo um afago e um pedaço do pão, mesmo seco, não tem problema não!

Tudo passa assim, junto com o sabor do fubá com raspinha de limão. Entra dentro de mim. Olho nos olhos dela que sorri em cumplicidade.

Sinto então, no meu ombro esquerdo, lado do amor, uma mão com calos de uma vida de luta, que me aperta num afago paternal. Cheiro de loção pós-barba. Respiração forte. Vem comer conosco! Ele não pode, tem que regar a samambaia.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

A vida como ela é

- Ele tem uma amante.
O caminho de São Paulo à Parati é longo. A paisagem da estrada compensa as intermináveis horas dentro de um ônibus de viagem. O ar condicionado gelado não condizia com o sol lá fora da janela. Na televisão, um filme antigo que eu já assistira diversas vezes na Sessão da Tarde.
Um colega dorme ao meu lado. Como eu queria compartilhar de seu sono! Mas a agitação e ansiedade de chegar a Parati era tão grande que só restou olhar a paisagem verde da estrada tortuosa e, bem, ouvir histórias alheias.
- Ele tem uma amante- disse a senhora de óculos.
- Você tem certeza? Pode ser apenas uma desconfiança boba.
A amiga, tentava consolar.
- Que nada! Tenho provas. Contratei um detetive particular que tirou fotos e me fez um dossiê completo. Até tentei uma terapia de casal, mas não consigo mais nem olhar para a cara do canalha.
A conversa de duas senhoras distintas atrás de mim tornou-se mais interessante do que as árvores, as vacas pastando ou as nuvens que faziam desenhos no céu azul.
- Meu filho não aceitou o divórcio. Entrou em depressão, está com problemas na escola. Entra em casa e se tranca no quarto, sem sair mais dali. Achei que tê-lo trocado de colégio melhoraria as coisas, mas, de nada adiantou.
- E seu marido, o que faz em relação á isso?
- Meu Ex-marido, você quer dizer? Trepa loucamente com uma loura vadia, com um corpinho de sereia e 20 anos a menos do que eu.
A mulher com ares de professora, rumo a Parati, aproveitaria a FLIP. Compraria livros, tomaria café em uma casa colonial e beberia pinga em um boteco na praça da matriz. Arranjaria uma transa casual para esquecer os problemas. Era eu, imaginando a história que as duas teriam para contar na viagem de volta.
O ônibus fez uma parada na estrada e a história com a qual meus ouvidos se deliciavam, acabou. Virei de lado e tentei dormir. Fechar os olhos e se desligar do mundo era o melhor que eu poderia fazer naquele momento. O caminho era apenas mato. O destino, Parati. O objetivo era literatura. E o homenageado, Nelson Rodrigues. E tudo a minha volta já parecia ter entrado no tal clima Nelson Rodrigueano.

é que não sei escrever direito. ainda.

minha escrita é miúda, é erro feito propositadamente. é como uma linguagem nova, virtualidades, contemporaneidades, efemeridades. construo e desconstruo. reestruturo. é quase um sussurro. uma conversa-fala com a calma dos minutos que antecedem o sono da madrugada. devaneios e observações.minha escrita é forte, firme. aperto o lápis contra o papel, deixo marcas. desde pequena, o calo delata a fúria para com o papel. as palavras me açoitam… gosto de, depois de apagar o mal-escrito, re-escrever. o grafite ressalta a cor escura. o erro se esconde no invisível, mas está lá. negro em grafite. o conserto sobressai. ……………………………………………………………………..se foi consertado porque se falhou.a caneta nunca falha.é que não sei escrever direito. ainda.
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...............................................................annak

Festiva de Literatura em Parati

Perto da pousada onde estou existem alguns terrenos baldios. Tijolos e vigas ocupam os espaços esperando a mão-de-obra para confeccionar as novas pousadas. Coisas da prosperidade flipiana. Pelo menos deste lado do rio. Bem, o tema aqui é outro. Deixemos os preâmbulos. Octávio Cariello diz que eu sou muito preambuleiro. Eu não sei se sou, mas estou sendo aqui.

Eu dizia, perto da minha pousada tem os baldios. Ontem eu caminhava sintomático, porque não achava os assuntos rodriguianos que Arthur Dapieve e Joaquim Ferreira haviam pedido na oficina de crônica para encontrarmos em meio à FLIP. Não achava mesmo. Então fui ao baldio. Olhei para o escuro e lembrei da pergunta de um menino à mãe em uma das tendas.

- Nelson Rodrigues já morreu mamãe?

Eu tenho pensado muito em morte. Nada profundo, ou filosófico. Algo mais simples, fático. Encontro com alguém e logo penso, esse vai morrer. Alguém conta uma piada e pondero, dia destes um humorista a menos. Minha mãe desliga o telefone e reflito, vou sentir saudades. Coisas assim. Nesse tom.

Dizem, se a memória do artista persiste ele não morre. Nesse caso a resposta para o menino seria uma repreenda com um digno peteleco.

- Morto o quê!? Falta de respeito!

Eu olhei para o baldio e Ele apareceu. Seus olhos carregados da eternidade maçante. O cigarro na metade. Me encarou sem sorrir.

- Certas verdades, exigem um canalha para dizê-las. Olhe o óbvio.

Voltei pro quarto com o dito lambendo meus ouvidos.
Diabo era essa verdade? O que era óbvio?

Perceber haver ali uma maioria que não lia uma linha o ano todo? E vinha ficar horas, conforme o tamanho do prêmio do autor, na fila da livraria por um autógrafo? Leitores? Turistas! Motivados para alimentar o álbum de seus orkuts, fotologs, etc etc.

Estive na Flip.

Na beira da praia vi duas jovens e uma garotinha. As moças sentaram em algumas pedras.
- Glorinha, vá brincar pra lá.
- Mas mãe...
- Mãe nada. Ali. Brinque por ali.
A menina foi a contragosto. As amigas acenderam um cigarro. Me fez entender a necessidade da distância para a pequena. Eu mesmo fiquei assim, meio alegre. Coisa boa. Conteúdo natural. Todas as vezes que a menina ousava se aproximar a mãe repreendia.
- Brinque aí. Aí mesmo!
Ousadia demais resultava em bofetada. Ela se distanciava em lágrimas. A amiga da mãe tossia. Ria.
Uma garota, os olhos eram só pupilas, me parou com um fanzine na mão. Não era a primeira, mas esta beirava o over. Os olhos tinham grande dificuldade de se manterem abertos. Ela dizia coisas sobre sua poesia e dinheiro para ficar em Parati e, acho, murmurou algo como rodrigueana. Olhava pro nada. A palma da mão aberta esperando o meu qualquer trocado. Menti não ter. Ela não ouviu. Ficou ali parada esperando que a interferência proveniente de todas as drogas consumidas desse espaço para minha voz, não tenho mesmo. Ela foi. Tempinho passou, me parou de novo. Dei dois contos. Agradeceu e me deu o fanzine. Um bordado de palavras escritas a lápis e recortes de revistas. Cópia amassada, mal-feita. Impedia a leitura do todo. Pouca coisa com sentido. Uma delas me chamou atenção, escrever pra mim é um vício.
Sexo, drogas e literatura? Cada mergulho é um flash! E o escritor é o astro. Celebridade. Quanto mais premiado melhor. Filas apocalípticas por um autógrafo. Eu li todos os seu livros. Cresci com suas histórias. Emoção. Furor. Coma alcoólico.
É óbvio? Não nesse caso. Para muitos a Flip não é qualquer lugar onde pessoas imperfeitas se encontram para curtir. O recorte das câmeras a veste como um reduto idílico aos escritos. O contato com o autor. Que contato? Filas empurradas com seguranças de rédeas curtas? A Flipinha, fantástica, até geograficamente está no canto.
Uma senhora, conhecida socialite carioca, me diz depois de um papo sobre centros culturais e lei Rouanet.
- Isso é dito para ser entendido entre nós, aqui. Gente como a gente. Freqüentadores de momentos como este. Não por esse povo que recebe o Renda Mínima. Eles ouviriam e iriam para o boteco beber, sem pensar em nada.
Não percebeu ela que a verdadeira Flip está nos botecos?
Tietagem. Consumismo desvairado. Superficialidade. Pop.
E como todo o bom pop atrai todos os holofotes. Luzes demais geram sombras e Parati está imersa nelas. Amor à leitura? Bah! É mais um relacionamento falso. Sem amor. E por isso da certo, só os casamentos onde não há amor dão certo, não é Nelson?

Claudio Brites
7.7.o7

Nos bastidores sexuais da linguagem

Para os desavisados, soa apenas como mais uma crônica gastronômica de Deise Novakoski, e com um leve toque a mais de humor. Mas pra quem presta atenção na linguagem das ruas através dos tempos, e guarda delas um abrangente glossário mental, o artigo de hoje no Rio Show está digno da ironia cortante de um George Carlin, pra não arriscar um conterrâneo Joaquim Ferreira dos Santos, que pelo menos no Gente Boa adora um assunto desses. Fala sério. Um bom cronista não poderia passar por essa. Ou será...? Que ela teve mesmo a intenção velada?
Já começa pelo título: "ralando o coco de costas". No primeiro parágrafo: Helô Sampaio... lançou o livro "Bem comida - crônicas e delícias da Bahia". E passa sem pudor nenhum para uma discussão sobre ralar o coco de costas e ralar o coco de frente. Uai, gente. Não tenho muita prática no assunto, mas sempre achei que de frente era melhor, né não? A conversa prossegue quando Helô explica a Deise, a quem carinhosamente chama de "minha polaca querida": "não é tu que fica de costas; é o coco". E a cronista não pára aí: relata um caso de amor à primeira vista com a batida de coco, chega ao ponto de confessar que rala o coco de joelhos e, justificando o ato falho com um pileque homérico, acaba deixando o coco rolar. Ops. Ralar.
Ah, gente: entendi. O nome da coluna dela é "Três Doses Acima", ponto pra Deise que hoje passou de cinco. Eu mesma, pra ralar o coco uma única vez, precisei de bem mais que isso: um vasto porre de sangria em Madri. Quanto à Deise, continua sem saber se é melhor ralar o coco de frente ou de costas e acha que tem alguma coisa cabalística nisso: um mistério que só as iniciadas no assunto têm o poder de elucidar. Cartas para a redação de O Globo.

PS. tá bom, tá bom: pra quem não tem idade pra entender nadinha do que escrevi aí em cima, "polaca", numa gíria antiga pacas, queria dizer "prostituta". quanto ao rala-coco, gente, deixa pra lá. não é mesmo a minha praia, as companheiras que me desculpem, mas como cronista, eu não podia deixar passar.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Peso de papel

por Ana Beatriz Guerra

Toda viagem significa deixar um pouco de lado nossa vida e passar algum tempo determinado vivendo uma outra. Toda viagem significa deixar em suspenso os problemas do cotidiano, os complexos freudianos e os desejos não realizados para dar asas a alguma parte de nós que fica dormindo durante os dias.

Quando viajamos e condensamos nosso passado dentro de uma mala, nos servindo do estritamente necessário, somos obrigados a rever alguns conceitos, mesmo sem querer. Viajar é agir de novas maneiras. É abraçar o desconhecido como se ele fosse um velho amigo.

Viajar é um ato muito especial. Se a viagem for a Paraty, é mais especial ainda. Se for durante a Flip então, nem se fala. A cidade ganha uma nova atmosfera, mesmo que artificial, por ser passageira. Ganha uma luz diferente, que só se vê de óculos escuros. Ou com os olhos do coração.

Tem algo de profundo e emocionante em juntar-se àqueles milhares de pessoas que se reúnem para ouvir idéias, porque se alimentam delas e sabem que elas são a verdadeira matéria do mundo.

Estar em Paraty é como voltar à infância e ouvir histórias da carochinha atuais, histórias para dormir, histórias do boi da cara preta narradas pelas mesmas pessoas que as inventaram. Ouvir as vozes, as línguas, os sotaques, viver na Babel é sentir-se ninado.

Anedotas, poesias, observações, lamentos: é impossível retornar a Paraty sem voltar um pouco para casa, sem atravessar os séculos e o tempo da vida. Passear por suas ruas é dar uma volta com quem você foi e vislumbrar um pouco quem você vai ser. Porque é fisicamente impossível caminhar pelas pedras pé-de-moleque sem lembrar do doce, sem estar no tempo presente, sem olhar para o chão, sem ter vontade de pular amarelinha.

São os caminhos estreitos que levam sempre à Praça da Matriz, onde somos recebidos por balões de cabaça pendurados nas árvores, pelo sorriso do gato de Alice, pelo Arlequim em retalhos: é chegar um pouco ao Céu e conviver em carne e osso com personagens que a gente achava que existiam só nos sonhos. Vou te contar um segredo: os sonhos viram realidade. Eles estão escondidos em singelos antídotos para eventuais melancolias: tudo passa e, por isso mesmo, merece ser fotografado, exige o exercício do enquadramento.

Eu vejo um homem que materializa flores irreais em papel crepom; outro que mora com as borboletas e deixa que elas beijem sua barba, e, quando vou prestar atenção, eu sou uma das bailarinas que flutuam nas janelas, ou uma das negras que fofocam sobre os passantes, ou um barco, ou um peixe de papel, ou o cais. Quando vou ver, já estou pensando como o mar ou a montanha, ou uma das nebulosas que só puderam ser vistas com o apagão. (Mas há aqueles que não olham para as estrelas nem mesmo na sarjeta.)

É impossível caminhar pelas pedrinhas sem querer que a rua seja minha, que a noite seja minha, que o fogo das lamparinas me consuma. É impossível caminhar pelas pedrinhas sem fazer um mergulho dentro de mim: estar em Paraty é mesmo um convite à introspecção.

E não se iluda quem acha que os fantasmas dos quais fugimos não nos perseguem até lá. Estar em Paraty também é meio take a walk on the wild side, é vestir-se de preto e protestar ao som do Réquiem, é o índio bêbado, a mulher que vende panos de prato, o assédio das esmolas, a boemia pela boemia, o poema que tem o mesmo valor de uma bananada.

É escrever palavras-chave no bloquinho, é voltar grávida de idéias recicladas, é bater palmas pelo reconhecimento, é ouvir um autor rimar amor com dor (mais uma vez!), é fazer a crônica das horas, é sentir que o tempo deveria caber menos nos relógios e mais por entre as esquinas que não se vêem, as paredes brancas, as cores vivas dos umbrais, o véu gigantesco da noiva demoníaca e diáfana.

Estar em Paraty é ser e não ser um pouco mais rodrigueana, é levar a vida dentro do drama e para o drama, é saber que o escritor não pode estar acima, abaixo ou dentro da vida, mas fora dela, para perceber que... Para perceber que a vida do lado de fora é um pouco mais solitária, mais esquizofrênica, mais descontínua, porém mais rica, mais colorida, mais brincalhona.

Os sonhos que viram realidade não podem ser compartilhados. Só podem ser vividos quando permitimos que a loucura que nos habita transborde pelas ruas, alague os rios sólidos por onde passam os leitores que batem palmas silenciosas, que se confundem com os gostos, os cheiros, as unhas vermelhas das mulheres, as sandálias Havaianas, os personagens travestidos de gente.

Os personagens não estão um andar acima das pessoas. A poesia está nas ruas e é vendida por módicos trocados. É comida de gente que não quer só comida. O poeta desconhecido, o palhaço ilustre, a atriz de longos cabelos e olhos grandes, todos estão debaixo do céu de estrelas. Todos acordam para os dias de azul , calor, música francesa, sambinha e marcha fúnebre: Paraty é vida em festa. É cidade que se arruma, se colore mais, se prepara para receber seus visitantes sazonais. Mas o brilho que reflete no espelho do chão está nos olhos de quem vê. Porque é mais fácil enxergar quando se é o estrangeiro, quando a rua não é sua, quando se aceita o convite para olhar para dentro. Existem os que vão a Paraty só de passagem mesmo. Nem todo mundo nasceu para cronista. Nem todo mundo atende ao chamado de "escreva-me". E, se amanhã eu acordar mais um pouco Gregor Samsa, por favor, não estranhe. É o banzo da cidade, é a saudade do charme, é a despedida do inevitável: tento flutuar como as bailarinas pelo maior tempo possível, mesmo sabendo que os encantos da cidade se revelam novos a cada visita.

Pegue um livro e abra em qualquer página: recorte um verbo, grude na sua testa e siga aquele mandamento até o ano seguinte. Escrever é cortar palavras, é passar pela peixaria e achar graça, é caminhar de sapatilhas, é ser um pouco irresponsável sem temer a rainha que mandar cortar a cabeça... O gato sorri. O cachorro vira-lata sorri. A lagartixa sorri. A lagartixa ainda passeia pelas paredes. Ela ainda está lá, que inveja. Eu voltei. Eu voltei com a gravidez de idéias, com os passos de dança, com os sonhos que filtrei. Voltei mais pesada e mais leve. Se for preciso me desfazer de itens desnecessários, rasgarei as páginas para digeri-las. Mas, se não for preciso, gostaria de contar para você agora a história da carochinha. Era uma vez uma cidadezinha no sul fluminense... Onde eu me perdi, eu me achei. Uma parte de mim se desdobra para aquelas esquinas que não se encontram, enquanto a outra parte tenta rememorar o cotidiano com o ritmo de ontem. É. Até ontem eu estava lá. Mas que inveja da lagartixa nas paredes!

Esperando o cachorro sair

por Gabriel Brust

Estou na rodoviária do Rio de Janeiro, falta uma hora inteira para o ônibus arrancar rumo a Paraty, tento me entreter com um exemplar d'O Globo do dia quando vejo pela primeira vez a cara mal-humorada da garota escandinava. Seus olhos vidrados estavam alguns centímetros acima da cartola da coluna Gente Boa, mas em segundo plano, claro, na fila de bancos plásticos à minha frente. Hesito por alguns segundos entre as notas da colunista interina e os olhos da garota escandinava, mas acabo grudando a vista naquele ponto distante acima do jornal. Ao redor da loira de rosto mal-humorado, não exatamente bonita, mas, entenda, escandinava, estavam um pai e uma mãe não menos escandinavos. Garotas escandinavas me atraem, garotas acompanhadas pelos pais ainda mais - um espirituoso amigo jornalista que eu encontraria horas mais tarde em Paraty diria que há uma explicação freudiana para essa segunda fixação, mas implorei para que não me contasse qual é. Eu prometo não levar adiante minhas paixões platônicas por garotas acompanhadas pelos pais e tu prometes não me analisar ao longo da viagem, está feito? É um acordo justo, peçamos o próximo chop.

Confesso que este ano fui para Paraty disposto a fazer turismo, ao contrário de outras vezes, quando apenas acompanhava a Flip e ouvia papos distantes sobre supostas ilhas e belezas naturais - parece que até mar tinha lá. Talvez por ter optado por um olhar de turista é que desta vez tenha podido fazer pausas para longos suspiros e farejar de fato o ar das ruas, do mar, dos bairros fora do Centro Histórico. Sabe-se que conhecer uma cidade é flanar por suas ruas e cheirá-las, nem que seja para sentir o aroma fétido das peixarias do centro de Paraty. Foi esse olhar de turista então que me fez reparar e, de certa maneira, tentar me enturmar com as pessoas que pareciam completamente alheias à festa literária. Justamente como ficariam, ao longo dos próximos dias, a garota escandinava e seus pais que - olha só! - embarcaram no mesmo ônibus rumo à Paraty. Desde o encontro na rodoviária, até o final da Flip, percebi que a família fazia um típico programa de turista gringo, sem ter a menor idéia do que se passava na praia carioca. De fato, não há livros pelas ruas da cidade nos dias da Flip. Se houvesse, eles naturalmente denunciariam que um evento de literatura estava ocorrendo ali. Faltam livros na Flip, observou aquele meu amigo que, ainda bem, desistiu de mim e resolveu analisar o evento. Deve haver uma explicação freudiana para um evento literário em que se vê poucos livros. Próximo chop.

Os bairros de Paraty fora do Centro Histórico revelam uma cidade feia, caótica e vítima de um prefeito ignorante como qualquer outro município litorâneo brasileiro. A população local, na certa, nem imagina o que se passa nas tendas da Flip, mas sabe que pode vender panos de prato para os gringos que caminham lá dentro. A garota escandinava é abordada por um deles no restaurante Casa Velha, "frutos do mar requintados", e eu não posso crer que logo na minha primeira janta fui cair exatamente no mesmo restaurante escolhido pela família. Pior: não há ninguém mais desfrutando do ar decadente do Casa Velha além de mim e dos escandinavos, localizados a duas mesas de distância. Ela olha para trás pela primeira vez, em minha direção, e eu engasgo o pescado ao molho de camarão. Apavorado, começo a folhear o completo material para a imprensa preparado pela assessoria da Flip. Tento iniciar pela terceira vez a leitura do resumo sobre José Eduardo Agualusa, sem conseguir me concentrar. Olho por cima do catálogo, assim como fiz sobre O Globo, lá na rodoviária, e ela vira para trás e me fita com a cara bela e mal-humorada mais uma vez. É o suficiente para eu acertar uma livrada na garrafa de cerveja, dar um banho em mim, na mesa, no pescado e no catálogo e, humilhado, pedir a conta com urgência. "Tenho que acompanhar um debate da Flip em cinco minutos", aleguei ao garçom. "Mas, senhor, hoje ainda é terça, a Flip só começa amanhã", respondeu o homem. Segunda humilhação completa, próximo chop, por favor, mas para levar.

Passei os dias seguintes caminhando pelas ruas de Paraty acompanhado por um sentimento duplo implacável: querendo e, ao mesmo tempo, apavorado com a possibilidade de cruzar pela garota escandinava e seus tutores - a família era estranha, falava pouco e não sorria nunca. Freqüentei alguns debates literários com quase nenhum interesse. A miséria dos paratienses que viviam no centrão, único local em que consegui uma pousada vaga, povoava meus pensamentos na maior parte do tempo. No sábado, me surpreendi de ver o dono do churrasquinho da esquina do meu hotel longe da fumaça e da carne, mas na entrada do Centro Histórico, empunhando uma faixa de protesto. A manifestação pedia energia elétrica para alguns bairros, entre outras melhorias básicas para o município, prometidas pelo prefeito, mas, claro, jamais executadas. Observei por alguns segundos e atravessei a pequena multidão rumo à minha última tarde na praia, que não poderia acontecer sem que eu encontrasse, também pela última vez, a garota escandinava. Continuava com a cara mal humorada, continuava acompanhada pelos pais silenciosos, continuava bela, mas agora de biquíni.

O biquíni eu apenas imaginei, havia uma blusa longa e larga por cima da roupa de banho. Passou sem olhar para os lados pela mesa em que eu e meu amigo freudiano bebíamos com solenidade a última cerveja da viagem. Passo firme, rumou até a beira do mar, estendeu uma toalha, sentou. Sentaram, os três. A presença dos pais não me incomoda, já expliquei. Os escandinavos tentavam aproveitar os últimos e fracos raios de sol do inverno carioca, o que para eles parecia um verão senegalês. Era o momento. Deitada, ela começava a tirar a blusa. Eu me preparava para cegar diante daquele corpo alvo que, nu, devia refletir mais luz do que uma geleira antártica. Tirei os óculos escuros, pelo menos 30 metros me separavam da cena, era preciso aguçar a visão. Olhei rapidamente para o freudiano, que subestimava minha estupefação - "então é essa a tal escandinava?". A blusa começava a se desenrolar devagar, revelando o cóxis, quando um cão vira-latas paratiense, preto como carvão, resolve se prostrar exatamente atrás da garota escandinava. Sentado, com ar blasé, olhava para o mar. Atrás dele, eu via os cabelos dourados soprando com o vento, mas nem um milímetro do corpo, completamente encoberto pelo vagabundo que, não contente em ficar sentado, deitou para refrescar a barriga no exato momento em que a garota também deitou. Foi um movimento coordenado inacreditável, digno de uma seleção de nado sincronizado. Há muitos vira-latas em Paraty, mas logo este resolveu virar o guardião da moral e da honra da família escandinava. Meu amigo freudiano, sem constrangimento, fingiu ir molhar o pé no mar para poder avaliar a garota por trás do cachorro. "Não é isso tudo", me disse, insolente, ao retornar à mesa. Pois eu me recusei a imitá-lo. Como os moradores de Paraty, que esperam a vida toda pela energia elétrica ou pela rede de esgoto, eu esperaria. "Me traz outro chop", bati na mesa. "Não saio daqui antes dela ou do cachorro!". O cotidiano não tem o direito de zombar da gente dessa maneira.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

As grã-finas de Nelson em Paraty

Por Giovana Damaceno

Desde que freqüento Paraty, há quase 20 anos, não dispenso o prazer de caminhar por aquelas ruas de pedras sem rumo, sem hora, de preferência à noite, sozinha ou acompanhada. Acho que é porque não canso de me apaixonar pelo casario colonial, ruazinhas estreitas, escuras, quase becos. Mas nem todo mundo caminha assim pelas ruas de Paraty. Aliás, muita gente vê na cidade apenas o point, a balada, onde podem exibir seus modelitos, incluindo-se aí saltos altos em toda a sua exuberância. Nada contra, mas desde que vi pela primeira vez uma mulher se apoiando no marido para conseguir equilibrar o salto naquelas pedras, pensei: “Nelson Rodrigues adoraria ver isso”.

Tal associação a Nelson me passou pela cabeça por causa das grã-finas citadas com freqüência em suas crônicas. É de fazer rir a forma com que se referia a elas. Dizia que se maquiavam tanto que ficavam todas iguais. A ponto de não identificar a dona da casa em uma festa. “Todas usavam uma hedionda máscara amarela”. Depois de ler isso é impossível não imaginar Nelson a observar o desfile das perseverantes equilibristas nas pedras de Paraty. O que pensaria?

Moralista, talvez discorresse sobre quadris rebolativos, pernas expostas por saias curtas ou grandes fendas nas saias longas, shortinhos. Tudo isso decorado e sustentado por saltos de todos os tamanhos e tipos, que nas pedras de Paraty jogam o charme na lama e fazem uma mulher desengonçada logo no primeiro passo.

Quando me proponho a esta diversão primeiro penso no incômodo de tentar pisar e não conseguir, penso em dores nas pernas e nas coxas, nas costas, no pescoço. Afinal, tudo dói quando não se pisa direito. Sem contar o risco iminente de uma torção. Eu já torci o tornozelo naquelas ruas e estava de tênis. Depois reflito: o que leva uma mulher a achar que consegue caminhar em Paraty de salto agulha? Pode ser desde falta de informação sobre a cidade até uma necessidade patológica de se exibir, que só Freud explicaria. Ou Nelson Rodrigues.

Lembro de um texto dele sobre uma grã-fina que estava lendo Marcuse, filósofo que encantou a rebeldia na década de 60. Ela quer, porque quer uma nota nos jornais sobre seu momento intelectual e consegue pelas mãos de um amigo jornalista influente. “Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, como é, o grã-finismo”, disse Nelson. E percebo que as grã-finas não mudaram a não ser no nome. Hoje são socialites e continuam querendo notas nos jornais, acreditam que podem exibir seus saltos em Paraty e, por algumas que conheço, chegariam à ousadia de querer o asfaltamento do centro histórico. Não duvido dessa possibilidade. Aliás, conheço uma que detesta Paraty justamente porque lá não pode exibir seus saltos. E diz isso com a boca bem aberta, em alto e bom som.

Por isso não duvido que também tentariam usar suas amizades influentes e até artimanhas inconfessáveis para criar um movimento contra as pedras de Paraty, com direito a cobertura da imprensa. E meus colegas fariam a cobertura, mesmo que fosse pelo espanto da iniciativa. Seria hilário. E sem dúvida um prato saboroso para o deleite de Nelson Rodrigues.

Arroz de festa

Jim Dodge e a pseudo-Fup na Pousada do Ouro foto: Noga Lubicz Sklar

Apesar de confundir Modigliani com Magritte, esse Joaquim Ferreira dos Santos é mesmo um grande cronista. Foi o que descobri, com alívio e gosto, refletindo na pousada em Paraty naquele momento único, solitário, logo depois do café: uma espécie de irmão no ofício, na rotina diária, na caprichada ironia cotidiana bordada em preto no vazio da tela. Ah! Escrever às 7 da manhã, sem cigarro, sem uísque ao lado, sem o cálido abrigo da madrugada, é como trepar logo cedo, o corpo e a mente despertos: coisas do puro amor maduro — como diria Antonio Maria —, puro amor pela literatura. Sem meias palavras. Tive a sorte de tê-lo como mestre, o Joaquim, de vê-lo sorrir ao descobrir meu texto, de ouvir minha voz na voz suave dele. Valeu por tudo.
Depois da aula tenho um encontro que não dá muito certo e acaba antes de começar. É quase hora do debate e o lugar vai se enchendo de gente, eu meio perdida, quando adentra o café uma figura suave, diáfana, a pele de porcelana em par perfeito com o cabelo negro e liso, aparado na altura do queixo, um je ne sais quoi que a envolve feito aura enquanto desliza em direção à mesa vaga, bem na beira do rio. Não dá pra sentir daqui, mas desconfio do perfume inebriante dela. De sua importância no meu futuro de escritora sim, tenho a máxima certeza, e em seguida a um breve e ríspido diálogo com a timidez, de livro na mão, me aventuro até ela:
— Mônica?
— Sim?
— Estou lançando o meu romance aqui em Paraty, posso te dar um? — me intrometo entre os amigos dela, esticando oferecida a capa cor de rosa choque.
— Claro — ela sorri, com uma doçura de ambrosia — muito gentil da sua parte.
Eu poderia encerrar assim, com chave de ouro, meu encontro com a celebridade em Paraty, mas longos sessenta minutos me separam do compromisso com o Alan. Me estico preguiçosamente na grama e ligo o meu radar, que não demora um segundo pra revelar o mirradinho Jim Dodge a uns três metros dali, com seu jeito enrustido de animador de patos, o indefectível livrinho cult na mão esquerda e um assustado olhar furtivo, suspeitíssimo. Pois não é que o naturalista, zen, ambientalista e protetor dos pobres de espírito Jim Fup Dodge está... FUMANDO UM CIGARRO?? Gente! This guy is a fucking liar! Escondendo o cigarro aceso no oco da palma da mão pra que ninguém perceba, Jim Dodge é surpreendido no ato infame por um fã todo animado com a presença dele ali, tão perto, tão disponível, tão blasé e ao mesmo tempo tão sedento de reconhecimento: afinal de contas, o cara vive isolado num rancho da Califórnia, se contentando em ser cultuado pelos poucos vizinhos, ahan, vou fingir que acredito. Pra falar a verdade eu até já tinha caído nessa, admirada com aquele avozinho hippie, de fala e olhar mansos, dando entrevista ao Portal Literário no jardim do hotel... Fucking liar, isso sim. Aqui na FLIP virou arroz de festa: foi jantado ao molho pardo por Will Self no palco e acabou tirando fotos ao lado de fãs, dando autógrafo pra meia-dúzia de gatos pingados tendo sempre ao lado a lamentável pata de madeira — que ainda por cima mais parece um ganso —, segundo ele explica uma idéia da editora. Podia ter passado sem essa, sério, e quanto a mim...
Alívio: meu resgate já vem chegando, pra dissolver no abraço essa insanidade toda. Vejo o Alan de longe, atravessando a ponte, e relaxo completamente na cumplicidade amorosa dele, enquanto uma gloriosa Mônica Waldvogel sai do Café da Tenda e atravessa o gramado, com o Hierosgamos bem à mostra, abraçado junto ao peito. Oba. Ganhei o dia.

Sobre tênis, pedras, bolhas e afins

Por Érica Nering

Foto- Érica Nering


Em 18 anos de vida eu ainda não aprendi a fazer malas. Elas deveriam ser pequenas e conter apenas o necessário e suficiente para os dias que pretendo ficar fora. Mas isso já se tornara algo contra a minha natureza. Eu simplesmente não nasci para fazer malas. Elas sempre são bem maiores do que deveriam e eu sempre esqueço alguma coisa importante.
Desta vez estava decidida: a mala seria pequena e tudo seria minimamente planejado, para não faltar nada. O mês é julho, mas o efeito estufa já faz estragos. A previsão do tempo dizia: Sol e calor pela manhã e um friozinho à noite. Tudo pronto. Faltava o tênis. – Pega o menor! Dizia um lado da minha cabeça. – Pega o mais confortável! (esse era o outro lado).
Mas, o menor era aquele meu velho All Star que eu gostava tanto e que ainda sobrevive, apesar de minha mãe já ter tentado se livrar dele diversas vezes. Mas All Star que é All Star tem que ser velho e detonado. Sem falar que o clima alternativo de Parati era propício para meu xodozinho de lona. E assim, também, sobraria espaço para mais umas blusinhas. Essenciais. Fui para Parati certa de que tinha feito a melhor escolha.
Na chegada, era hora de conhecer a cidade. Assistir ao show da Orquestra Imperial e se acostumar com aquele clima literário que já começava a aflorar. E com as ruas de pedra. Lindas! Era isso que dava o charme da cidade histórica. Logo me adaptei à rotina (ou à falta dela) entre as mesas de debates, leituras de poesia nas ruas e muitas, eu disse MUITAS andanças.
E a lona do meu velho All Star já não parecia mais tão cool. Bolhas enormes começavam a se formar em todos os dez dedos que eu contabilizava em meus pés. Odiava aqueles tênis. E odiava aquelas ruas de pedra. Porque não eram ruas planas? Queria o meu Adidas jogado no armário, esquecido... E tão confortável. Os melhores momentos tornaram-se aqueles em que eu podia sentar. Não só porque eu parava de sentir as bolhas latejarem em meus pés cansados, mas também porque esse momento, geralmente, coincidia com aqueles em que eu assistia aos debates.
Muito escritor eu não conhecia direito. Alguns, só de ouvir falar. Outros, já teriam me proporcionado bons momentos com suas histórias. Eu sabia que estava aprendendo muito com aquelas pessoas. Escritores consagrados, com histórias distintas de vida. Guilherme Arriaga diria que “sofrer é uma decisão”. E, ao que parece, eu efetivamente decidi levar o All Star.
Mas, algo me fez refletir. Era uma leitura. A peça era “Um beijo no Asfalto”, do grande homenageado da Festa: Nelson Rodrigues. Eu senti que aquelas bolhas, o All Star e as ruas de pedra estavam conspirando contra mim e a favor dele. A leitura não passara despercebida. Tinha incomodado. E era esse o grande objetivo de Nelson com suas peças. Incomodar. Era um pacto entre as pedras irregulares e o anfitrião da Festa. Eles queriam incomodar. E não é que conseguiram?

O Amor Visto e Imaginado Pelo Buraco da Fechadura

Por Simone Silveira

Me encanto com a frase do Nelson Rodrigues dizendo ser ele um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura.

Se o Anjo Pornográfico resolvesse passar uma noite em minha companhia eu abriria uma garrafa da cachaça Santa Isabel trazida esta manhã de Paraty e brindaríamos não às nossas diferenças e sim às nossas semelhanças. Ele esqueceria por algumas horas a sua úlcera latente e tratada a pires de leite. Também lhe estenderia um maço de cigarros: “—tira um, Nelson. Vamos falar de nós dois...”.

Diria a ele que eu também sou uma menina que enxerga o mundo pelo buraco de uma fechadura. Nasci no interior do Espírito Santo e fui levada ao Rio de Janeiro aos nove anos de idade no meio da madrugada. Era abril. Meu pai havia batido na minha mãe. Aquela teria sido a última agressão em um casamento de vinte anos. Entramos no apartamento minúsculo – eu e minhas irmãs – minha mãe disse às três filhas: “— a Tijuca é bairro família.”. Finalmente perguntaria ao Nelson: “—Quando o senhor vê o mundo por um buraco, uma fresta, o senhor se sente um estrangeiro, a clara e não a gema, um sujeito que vive no meio-fio, na borda, no limite, como eu me sinto?”.

Uma e trinta da madrugada e ambos com insônia, acenderíamos mais um cigarro continuando o papo. “—Também enxergo o óbvio”. As pessoas, as coisas, os lugares, tudo à minha volta é um retrato, fotografado pelas minhas pestanas e retinas a todo instante. Eu me tatuo destas imagens.

No meio da conversa lhe diria que fui à Paraty na semana passada e que na entrada da cidade tive que desviar o carro de um cachorro vira-lata atropelado. Tinha as tripas esparramadas pelo chão e o pêlo pardo molhado e tingido de sangue. Fechei a ventilação do carro, o cheiro de carne apodrecida foi insuportável como também a visão de um assaltante morto por um cidadão comum enraivecido dentro do ônibus 173. A cena se passou em frente ao hospital psiquiátrico Pinel há uns doze anos atrás. Eu ia da Gávea à Praia Vermelha, onde cursava teatro na faculdade Uni-Rio. Desci do ônibus, quase tropeçando no corpo caído, engoli a violência com revolta e fui estudar Molière (pausa para mais uma tragada no cigarro). No caso do cachorro, faltou-me a compaixão de outrora ou a do protagonista do filme Mexicano “Amores Perros”. Segui viagem.

Paraty estava em festa. Festa para intelectuais e simpatizantes. Mas nos becos mal iluminados e esquecidos da cidade, o povo ia vivendo o dia como se fosse qualquer outro. Eu lhe contaria estórias do lugar como a dos cinco meninos batendo pelada num terreno baldio. Por um descuido tático, a bola veio em minha direção. Para o delírio da molecada, peguei-a com o pé e a mandei de volta para a roda. “—Aêêê, tia...”. Me perdi por becos e ruas sem saída, e no muro li “Ordem e Progresso”. A palavra progresso escrita só com um “s”. Por mim passou uma mocinha, cabelo bem preto, longo e enrolado. Não dei mais que quinze. Ela andava e rebolava os quadris com a sua calça jeans bem apertadinha. Em cada mão, arrastava uma criança. Seriam as três, irmãs? Mais de perto, a barriga enorme se revelou. Sete meses de gravidez, chutei novamente. A vida como ela é— Paraty, Rio de Janeiro, tanto faz.

Eu também poderia olhar por outras fechaduras. Veria casais batendo boca por causa de um ciúme qualquer, velhos cantando brotinhos de sorrisos brancos como o sorriso escancarado de Aline Yasmim. Por uma porta entreaberta, espiaria um quarto de janelas azuis, uma mesa amarelada pelo sol. Em cima dela, laranjas secando e uma vela solitária (afinal, a cidade ficou às escuras). Veria uma mulher feliz nos braços do seu amante. Nunca é tarde para se redescobrir o amor e o sexo. Fecharia a porta e iria ver os barcos passarem. Do outro lado da margem, descobriria um sujeito enrolado em véu branco boiando nas águas do rio que desemboca na baía. "—Conheço o sujeito, não é ele o Bruno Vaks? Já queria ser famoso e agora conseguiu a façanha."

Se hoje, o Nelson resolvesse ter uma prosa comigo, eu lhe confessaria ter ontem ao entrar no avião para regressar à casa, lágrimas minando dos meus olhos (quem me dera aquilo fosse só um fenômeno físico). Passei pela primeira classe, os ricos e opulentos lançavam olhares curiosos por cima dos saltos. Sentei-me no meu assento, na janela. Cobri o rosto com as minhas mãos tremendo, e soltei um choro forte. O senhor ao meu lado cochichou: “—A gente pensa ter duas pátrias, mas no fundo, não tem nenhuma.”. “—É...”, respondi. Sou mesmo uma estrangeira neste mundo óbvio e ululante, uma menina a olhar o amor pelo buraco da fechadura, pensei.

E o avião decolou.

O SEXO DOS AUTORES

Se Nelson Rodrigues estivesse morto, não poderia ter escolhido o seu melhor terno, a sua melhor gravata, o seu melhor sapato e chegar, a nado, meia hora antes da abertura da V Festa Literária Internacional de Paraty. Não o teria encontrado vagando – com um ar indubitável de prêmio Nobel – pelas irregulares vielas de pedra.
Tentei interpelá-lo, mas torci meu tornozelo – que exigia mais zelo do que torno – em mais um vão. E, em vão, levantei a cabeça. Era tarde demais. Desaparecera na multidão de pseudo-coxos. Então resolvi me preocupar com a vergonha enrustida da queda. Endireita o corpo, finge que o tropicão foi planejado, algo pra apanhar, sei lá, seu Pantera no porão autografado antes que toque o chão. Uma técnica nova. Aumenta a velocidade. Algo oriental. Marcial. Sempre há quem acredite. Espero. E mira o horizonte até dobrar a esquina.
Se eu tivesse conseguido uma palavrinha com o Nelson (só muita proximidade ou a maior das distâncias geram tal intimidade), não perguntaria o que está achando da FLIP este ano, nem se estava – era nítido – prosa com a homenagem, ou onde fica a Rua da Matriz. Eu desabafaria: - Tenho uma crônica pra entregar na quarta e ainda não sei o assunto. (Lógico, não antes de pedir um autógrafo n’A cabra. A vadia. O livro.)
E Marcelino Freire, caramigo, me sugeriu: - “Sexo! Escreva sobre sexo!”. Se ele acha que me ajudou, está muito do enganado. Fez é me atrapalhar. Uma das minhas idéias latentes – daquelas que ainda não estão maduras o suficiente para se dizer que já se tem um assunto – era a esse respeito. Eis o que eu queria dizer. Muito se ouve sobre o sexo dos anjos, mas pouco se fala sobre o sexo dos autores. Dirá alguém que anjo, garçom e autor não tem sexo. Como autor não tem sexo? Como? E como! Como! E se como logo existo. E na tenda dos autores, só não arma a barraca quem é ruim da cabeça ou doente do pé. E entenda pé como quiser. Quase-rima não à toa. É só pra levar na boa. É só para amenizar. Autor não tem sapinho! Autor não tem lepra! Autor também trepa! Tem autor que ama autor, tem o que ama leitor. O que come, o que quer dar. O que prefere variar. O que quer dor; outros, sem dor. Autor também é ser humano. Mês passado – ou será antes? –, num uísque com Raimundo, o Carrero – eu pedi chope –, Marcelino revelou-me: - “Tem muito escritor que reclama. Mas reclama de pau duro!”. Eu discordei e completei: - “Então é de saco vazio!”. Os dois logo concordaram. O Freire e o Carrero, hoje homem sério, apaixonado e tudo, mas que já teve seus tempos. De fama, ou de cama, ou de saco, vazio, sei lá. Autor também é ser humano.
Mas eu estava dizendo: - Não há coisa pior para um escritor do que alguém lhe sugerir uma idéia que ele já teve. Os brios do bom escritor são dilacerados com a suspeita do plágio. Deixa-se de escrever um bom texto por orgulho. Ora, o regozijo do bom escritor é ser original. E quando a idéia é de fato sua, a agonia é tanto maior. Muitos já quiseram me dar opinião. E eu pedi que se calassem. Lá lá lá lá lá, não tô ouvindo nada! Depois que eu escrever, você me conta. Coisa e tal.
No entanto, o Sexo! do Marcelino fora fulminante. (Uau! Isso pode pegar mal. Ou bem. Não sei.) Não era uma pergunta. Era um desabafo. Mal deu tempo de desembainhar meu dedo. O assunto estava sugerido. A agonia autoral iniciada. E o prazo – sempre o prazo – terminando – sempre terminando. O que alivia, e muito, a nossa consciência. E passamos a acreditar que a idéia foi nossa mesmo e o resto é balela.
Se Nelson Rodrigues estivesse morto, não o teria visto no outro lado da ponte, resignado com a fanta uva zero da grã-fina. Talvez encontre o chica-bon. Ainda vende. Eu acho. E imagino que o assunto desta crônica o agrade. Uma dama do fretado aqui, um vestido de autora ali, uma best-sellerzinha, mas ordinária, acolá. Sei lá. Se Nelson Rodrigues estivesse morto, não estaria aqui, nessa crônica. Não estaria na FLIP deste ano. Se Nelson Rodrigues estivesse morto, não estaria tão vivo.

Início


Este blog tem o intuito de divulgar produções dos alunos da Oficina de Crônicas da FLIP que aconteceu entre os dias 5 e 7 de julho. A oficina foi ministrada pelos jornalistas e cronistas Joaquim Ferreira dos Santos e Arthur Dapieve.