De Simone Silveira
Estava distraída quando tropeçou pela primeira e única vez. Inocência havia passado toda a manhã em uma repartição pública para renovar o documento de identificação pessoal.
Chegou às oito horas em ponto quando o funcionário abriu as portas e redirecionou os cidadãos para o guinche de atendimento ao público. A fila andava vagarosamente. A espera era interminável. Uns deixaram de trazer um documento importante, outros esqueceram de pagar a taxa bancária indicada no formulário de renovação. Finalmente era a vez de Inocência. Depois da entrega da papelada, sujou os dedos de tinta e lá deixou sua impressão digital. Foi direcionada à frente da câmera para que a foto lhe fosse tirada. Sorriu. Rabiscou o seu nome à direita do “x” no rodapé do documento e partiu.
No elevador pressionou o abdômen com as duas mãos cerradas. O estômago doía. Comprou jabuticabas de um ambulante nordestino. Encheu a boca delas enquanto corria para atravessar a extensa avenida Rio Branco. Na euforia, suas pernas se embolaram e Inocência tropeçou. No asfalto da avenida Rio Branco as frutas rolavam. O sinal abriu. Inocência tentava se firmar sobre os pés, já nem pensava nas jabuticabas muito menos na dor do estômago. A dor agora era no pé direito. Aguda. As buzinas dirigidas à ela por motoristas impacientes não facilitava a difícil tarefa de se completar a travessia.
Inocência sentiu-se tonta. A respiração se tornou ofegante, apressada. As mãos pingavam suor, um filete dele lhe descia `as costas. Um imenso desejo de não mover-se instalou-se. Os automóveis se aproximavam, passavam por ela. Inocência lá, à deriva, pensamento petrificado. O sinal fechava. O sinal abria. Inocência foi aos poucos perdendo o medo. Primeiramente, o medo da forma automobilística em avanço, depois o medo do som de pneus derrapando, depois dos gritos—Louca! Saí daí, maluca! Quer morrer?
Ela morria. Eles não sabiam. Fio de sangue fazia o seu caminho até o corte, pele rompida pelo osso exposto. O líquido escorria e se misturava com a poeira do asfalto. Ela morria. As jabuticabas não existiam mais. A pele enrugava, a boca rachava, nem os olhos ela abria. Ela morria. Inocência tentara cruzar a grande avenida Rio Branco, verdade maior. Ela havia feito a decisão. Teve a coragem dos loucos, dos santos, dos desvalidos. Os passantes entretanto se acostumaram com a presença em decadência de Inocência — plantada no meio do asfalto, ferida e secando, dia após dia.
Ela poderia ter feito o enorme esforço de atravessar a avenida, agora longa, interminável, apoiando todo o peso de seu corpo sobre o pé saudável. Ela poderia ter gritado alto por uma mão caridosa. Porém houvera o desejo brotando-lhe no peito tão inesperadamente como a fruta que rolara pelo asfalto quente. Ela queria abraçar a própria inércia afim de por à prova a inércia alheia. O outro, de pé no meio-fio, dentro do carro, no alto dos prédios, debruçado na janela, permanecera insensível à sua dor. Ela só precisava de provas. Agora, já as tinha.
Estava distraída quando tropeçou pela primeira e única vez. Inocência havia passado toda a manhã em uma repartição pública para renovar o documento de identificação pessoal.
Chegou às oito horas em ponto quando o funcionário abriu as portas e redirecionou os cidadãos para o guinche de atendimento ao público. A fila andava vagarosamente. A espera era interminável. Uns deixaram de trazer um documento importante, outros esqueceram de pagar a taxa bancária indicada no formulário de renovação. Finalmente era a vez de Inocência. Depois da entrega da papelada, sujou os dedos de tinta e lá deixou sua impressão digital. Foi direcionada à frente da câmera para que a foto lhe fosse tirada. Sorriu. Rabiscou o seu nome à direita do “x” no rodapé do documento e partiu.
No elevador pressionou o abdômen com as duas mãos cerradas. O estômago doía. Comprou jabuticabas de um ambulante nordestino. Encheu a boca delas enquanto corria para atravessar a extensa avenida Rio Branco. Na euforia, suas pernas se embolaram e Inocência tropeçou. No asfalto da avenida Rio Branco as frutas rolavam. O sinal abriu. Inocência tentava se firmar sobre os pés, já nem pensava nas jabuticabas muito menos na dor do estômago. A dor agora era no pé direito. Aguda. As buzinas dirigidas à ela por motoristas impacientes não facilitava a difícil tarefa de se completar a travessia.
Inocência sentiu-se tonta. A respiração se tornou ofegante, apressada. As mãos pingavam suor, um filete dele lhe descia `as costas. Um imenso desejo de não mover-se instalou-se. Os automóveis se aproximavam, passavam por ela. Inocência lá, à deriva, pensamento petrificado. O sinal fechava. O sinal abria. Inocência foi aos poucos perdendo o medo. Primeiramente, o medo da forma automobilística em avanço, depois o medo do som de pneus derrapando, depois dos gritos—Louca! Saí daí, maluca! Quer morrer?
Ela morria. Eles não sabiam. Fio de sangue fazia o seu caminho até o corte, pele rompida pelo osso exposto. O líquido escorria e se misturava com a poeira do asfalto. Ela morria. As jabuticabas não existiam mais. A pele enrugava, a boca rachava, nem os olhos ela abria. Ela morria. Inocência tentara cruzar a grande avenida Rio Branco, verdade maior. Ela havia feito a decisão. Teve a coragem dos loucos, dos santos, dos desvalidos. Os passantes entretanto se acostumaram com a presença em decadência de Inocência — plantada no meio do asfalto, ferida e secando, dia após dia.
Ela poderia ter feito o enorme esforço de atravessar a avenida, agora longa, interminável, apoiando todo o peso de seu corpo sobre o pé saudável. Ela poderia ter gritado alto por uma mão caridosa. Porém houvera o desejo brotando-lhe no peito tão inesperadamente como a fruta que rolara pelo asfalto quente. Ela queria abraçar a própria inércia afim de por à prova a inércia alheia. O outro, de pé no meio-fio, dentro do carro, no alto dos prédios, debruçado na janela, permanecera insensível à sua dor. Ela só precisava de provas. Agora, já as tinha.
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