quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Pratique o eu


oolhos-de-pinter, d'àpres Steven Forrest/ The New York Times


"Não sou nada. /Nunca serei nada. /Não posso querer ser nada. /À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.", diz Fernando Pessoa, quero dizer, Álvaro de Campos, em seu poema "Tabacaria", linkado por Carla Rodrigues em seu blog. Fernando Pessoa é pessoísta à beça. Enquanto escreve seus poemas magistrais, descreve a si mesmo como o mais vil dos homens, abjeto, um fracasso completo se comparado aos demais, como reforça este outro poema dele — Poema em linha reta — que eu sei quase de cor e no qual me reconheço. Fala sério: é muito pessoismo.
Comparar-se aos outros é mesmo um perigo. É causa ou efeito de depressão, uma doença que piora com a idade, é, gente, a velhice tende mesmo ao pessimismo, não é? Bem. Às vezes não. Como prova o habitualmente irônico Millôr Fernandes, do alto glorioso de seus 84 anos: "O mundo melhorou. Estamos vivendo o melhor momento da humanidade. A higiene é recente. Antigamente, a média de idade era 42 anos, hoje é 80." Tá certo. É bem millôr reconhecer isso. Mas o rótulo de humorista, o jornalista recusa e o entendo muito bem. Se é perigoso ser otimista, fazer humor é mais perigoso ainda.
É o Alan quem me ensina: "o sarcasmo é a forma mais baixa de inteligência." Quanto a mim, não sei porque, desde que casei com ele venho me tornando cada vez mais mordaz, e isso, apesar da vidinha feliz e pacata que nós dois levamos. Por outro lado, foi ele mesmo quem me apresentou ao humor corrosivo de George Carlin, não custa nada sklarecer. Aos meus ouvidos brasileiros soou, a princípio, meio estranho: um tipo de humor que não se aprende na escola, não, gente, de jeito nenhum: nasce com a gente, uma coisa assim, digamos, cárlica. Mas que se agrava com a prática... quanto a isso não resta dúvida, eu que o diga, com as minhas tiradas terrivelmente incorretas, como por exemplo o hábito de publicar certas coisas aqui no blog fazendo associações livres que ninguém mais entende, e até mesmo antecipando um preconceito sutil que ninguém, mas ninguém mesmo, jamais perceberia se eu não o apontasse.
Tomar os outros por si não faz bem nenhum. Pior ainda é seguir o conselho de quem nunca quer o bem alheio, como demonstra no Globo de hoje Babu Santana, prêmio especial do júri no Festival do Rio. O ator nos conta que trabalhava em uma livraria no centro do Rio quando pensou em fazer o teste para o Nós no Morro, e ouviu da dona da loja: "Para que você quer fazer teatro? Você é feio, negro, queixudo. Corta um dobrado para sobreviver, para que tentar o teatro?" A atitude estimulante da moça não é incomum, mas vamos combinar, não foi nada babu da parte dela.
Bom mesmo é praticar o eu. Quanto mais você é você mesmo, mais você mesmo você se torna, se é que vocês me entendem. Foi por isso que não entendi nada ao ler o título do artigo no Globo sobre Harold Pinter, reproduzido do New York Times, de onde vem também a foto aí de cima: "Aos 77, ainda pinteriano." Uai, gente. E quando você envelhece, deixa de ser você mesmo? Do que não gostei nem um pouco foi da tradução do adjetivo que é tema do texto, no inglês original "pinteresque". Pinteresco, esclarece a autora, significa "cheio de dicas obscuras e sugestões, que deixa a audiência na incerteza até a conclusão", uma descrição exata da "singular e inclassificável" obra de Pinter, hum, me identifiquei com essa. "Nunca consegui escrever uma peça feliz, mas consigo aproveitar uma vida feliz" me salva Pinter, mais uma vez.
E por favor: não me acusem de elitista por linkar o New York Times, gente, não é nada disso. Só fiz isso porque o Globo não o permite, numa política bem assim, hum, deixa pra lá. Por falar nisso, o Alan reclamou à beça do meu projeto para os MEMO's que vai, segundo ele, na contramão das tendências, querendo cobrar pra ser lido (ou visitado), coisa de que a mídia online, em todo mundo, vem abrindo mão. Mas não, faço questão de esclarecer: a idéia do mecenatomoderno não tem nada a ver com cobranças mas sim, como o próprio nome diz, com mecenato. Em outras palavras: o milenar patrocínio de artistas por quem pode, e escolhe apoiá-los.
Ah, sim, vocês perceberam. Parece que eu, finalmente, mudei de obsessão, e já não falo tanto no meu Hierosgamos, o fracassado romance que ninguém quer ler, mas agora vem cá: tá certo que a autora dele não é nada popular — é mau-humorada e de muito poucos amigos —, o que não altera em nada a qualidade literária do texto, não é mesmo? Pouquíssima gente o leu, e quem já o fez, adorou. Insistir nisso agora até parece renancismo, mas no fundo no fundo, é noguice pura. E estamos conversados.

2 comentários:

Simone Couto disse...

só me falta 40 páginas até o final, termino o livro hoje. Gostei muito da caixa de pandora. Vc devia estar completamente, doidamente apaixonada, mesmo. Ô mulher de coragem. Não pude deixar de rir com a idéia dela sendo aberta pelos nossos amiguinhos americanos na alfândega.

Cidadão Cão disse...

Quem é a Ana Vassalo?