sexta-feira, 19 de outubro de 2007

As pré-balzaquianas

- Amiga, estou em crise. Já vou chegar aos trinta. Isso significa que nunca mais vou ser gatinha.

Foi o que uma pessoa querida me confessou entre um e outro copo de café gelado. Quando respondi que a tal crise pré-balzaquiana não me afeta, pelo menos por enquanto, ela me olhou com certo espanto, que logo foi substituído por um quê de admiração. "Me diz como você faz", ela me pediu. Esta crônica então é para atender a este pedido e tentar, quem sabe, remediar a ansiedade que muitas garotas sofrem ao chegarem perto dos trinta e entenderem que não podem adiar mais suas vidas como mulheres feitas.

Algumas sofrem da "síndrome" de um jeito esparramado, querendo assumir de vez a nova condição, sem sucesso. Outras a enfrentam de um jeito discreto, como se não estivesse acontecendo. Existem ainda aquelas que experimentam seus efeitos retardados, alguns anos depois de chegarem na terceira década, mas, independente de seus sintomas, talvez nenhuma de nós esteja imune. A crise dos trinta parece ser um desses joanetes filosóficos que machucam nossos pés de vez em quando. Talvez a crise seja o calcanhar de Aquiles das mulheres. Eu não sei bem, ainda não fui acometida pelos sinais. Até o presente momento, o retorno de Saturno tem se mostrado muito generoso comigo. Ah, não sabe o que é o retorno de Saturno? Bom, toda mulherzinha deveria saber. Se você não sabe, das duas uma: ou é homem ou não é mulherzinha, então, certamente, esta crônica não é para você, que não está passando por uma crise e não está nem um pouco preocupado(a) com o que possa advir disso. Então pare de ler por aqui.

As pré-balzaquianas não precisam da sua compaixão. De uma certa forma, não precisam da compaixão de ninguém. Dispensamos pena. Entretando, contudo, porém, queremos ser compreendidas. Ouvidas, pelo menos. E ficam certos questionamentos: será que algum dia nós superamos esta suposta crise ou o que acontece é que encontramos ferramentas cada vez mais sofisticadas para escondê-la? Será que disfarçamos as preocupações, tentando apagá-las com os tratamentos estéticos de ponta? O que fazer para não nos pegarmos dizendo aquela frase da música, "ah, se eu soubesse o que eu sei"?

Bom, vamos por partes. Vamos voltar ao início. Nós nunca mais seremos gatinhas. Isso lá é verdade. "Eu posso ser uma mulher bonita, mas nunca mais vou ser gatinha", minha amiga argumentou já no segundo copo (será que pré-balzaquianas deveriam tomar tanta cafeína?).Tudo bem, quem precisa ser gatinha? Desde quando ser "inha" virou sinônimo de beleza? Será que damos tanto valor à juventude que, quando ela começa a parecer distante, não nos sobra mais nada para oferecer? E quem disse que ser jovem é o mesmo que ser bonita? Acreditar nisso significa que precisamos perpetuar uma indústria antinatural que corre contra o tempo, que nos aprisiona num padrão e nos obriga a sermos novas, praticamente saídas da puberdade, com pele lisa, sem celulite ou estrias, corpo sarado, proporções perfeitas, seios turbinados, sorriso imaculadamente branco e enfileirado, ou seja, você tem que corresponder a uma imagem que mulher alguma reflete no espelho de casa.

A mensagem é clara: minha filha, você não pode ser o que é. Se vire. Você já era. Você é last season, é vintage, é retrô, existe um exército de pós-pubescentes muito mais bonitas que você, muito mais frescas, muito mais gostosas. Se vire. Volte no tempo. Estique a cara. Previna as rugas. Depile tudo. Tudo mesmo, viu? Para ficar peladinha feito uma menina... O recado que nos passam é vil e impuro e desleal. Vivemos numa sociedade esquizofrênica que diz que deu liberdade e autonomia às mulheres, mas que desconsidera seus corpos, sua real sexualidade, seus desejos, seus valores, suas necessidades. Somos tratadas como eternas meninas num mundo que praticamente nos impede de sair da Terra da Nunca. Não somos levadas a sério, nossos pensamentos são menores, nossas vontades são menores (e nossa renda idem), nossos corpos têm que cumprir a árdua tarefa de regredir no tempo. Não tenho mais vergonha do ridículo, então vou dizer: para mim isso é pedofilia institucionalizada. É patrulha. É prisão. Nós só achamos que estamos livres, mas fazemos de tudo para cumprir padrões que não escolhemos. Queremos tanto nos encaixar, encontrar nosso lugar num mundo excessivamente masculinizado, que somos capazes de qualquer sacrifício, somos capazes de abdicar de nossos prazeres para chegarmos um pouco mais perto de uma quimera. O que é melhor? Ser infeliz e perseguir um ideal impossível ou optar por uma vida plena, livre da vergonha de ser quem é?

Está bem, talvez eu esteja exagerando ou sendo muito radical. Normal para mim, embora meu bom senso (ou intuição?) já tenha me salvado de poucas e boas. Vou dizer para vocês por que a crise pré-balzaquiana é desnecessária. Para isso, ilustro com minha própria experiência. Me deixem regredir dez anos... Quando eu tinha dezoito, pesava de cinco a dez quilos a menos do que hoje e me achava gorda. Não tinha vivido um grande amor. Não ganhava meu dinheiro. Não fazia idéia do que queria ser quando crescesse. Era preconceituosa. Tinha medo de viver e de me entregar. Não tinha experimentado boa parte das aventuras que a vida oferece. Ou boa parte das desventuras. Era de poucos amigos. Escondia meus quereres. Acordava já achando que o mundo estava de mal comigo, que eu era uma coitadinha. Me digam como é possível ter saudade disso? Hein? Talvez seja por todos esses fatores que eu tenha me reconstruído. E que não exista motivo algum para querer disfarçar qualquer sinal da passagem do tempo. Para que ter vergonha da idade se é ela quem nos oferece tantos presentes? É viável caminhar neste mundo sem perder a essência rebelde da adolescência, mas abraçando os ganhos e a positividade do tempo. Ele nada nos toma. Apenas ensina e modifica. Hoje, dez anos depois, aprendi a dançar, amar, perder e ganhar, aceitar elogios, acordar com um sorriso no rosto, ter esperança, ver poesia num homem dormindo na minha cama, escrever, dizer o que quero com responsabilidade, me expressar, pensar sem ter dor de cabeça, não pensar em nada e viver o aqui e o agora, usar franjinha, ter estilo, economizar, gastar dinheiro, trabalhar, fazer e acontecer, dar asas à minha porção hedonista, positivista, socialista, capitalista, epicurista ou qualquer outro "ismo" que esteja na moda (sem esquecer de quem sou e o que estou fazendo aqui), ter senso de propósito, fazer as sombrancelhas, devorar o mundo com gula e agradecer cada oportunidade recebida. Agora me digam por que eu sentiria falta do passado? Por que seria quem sou hoje sem carregar no corpo as marcas da minha vida? Por que teria que abdicar da minha flexibilidade para viver uma ilusão?

Vou confessar: não vejo a hora de aparecerem as primeiras ruguinhas, de ver o corpo modificado pela chegada dos filhos e pentear as mechas brancas nos cabelos. Louca? O dia em que eu não puder mais ser "louca"... Mas preciso dizer que acho que loucas podem ficar todas as mulheres que se rendem a esta prisão das idéias, a estes desprazeres. Loucas são todas as que acordam e não conseguem ver a vida num raio de sol, todas as que não aceitam o convite dos mistérios para dançar. E, se o que vejo hoje foi trazido pelo tempo, significa que, com os anos, passarei a enxergar e conhecer mais e mais. Agora me digam por que eu haveria de querer ser o que eu não sou? E, se a revolução de Saturno tem sido tão proveitosa, que venham as próximas, que eu seja sacudida pelos ventos, pelos furacões da alma, que eu não tenha vergonha das minhas futuras pregas nas mãos, que eu continue vívida por dentro, viva por fora, radiante, com a beleza das pessoas felizes, não a beleza falsa e adúltera dos que vivem perseguindo os estereótipos. Minha franqueza pode assustar alguns. Existem inclusive os que fogem da verdade para conservar as aparências de louça. Minha crônica é em homenagem a você, minha amiga. Que a crise pré-balzaquiana vá embora tão logo você assopre as velinhas, porque o tempo sim é irreversível, a nossa evolução, não. Balzaquianas, é? Que cheguem os próximos dez, vinte, trinta anos. Serão recebidos de braços abertos e com muita festa, como se recebe a todos os bons amigos.

2 comentários:

Noga Sklar disse...

Bia querida, vini vidi vinci. É isso aí. E se servir de consolo, do auto dos meus quase-56 (é auto mesmo, do aurélio: "1.Ato público; solenidade.
2.Registro escrito e autenticado de qualquer ato.
3.Teatr. Composição dramática originária da Idade Média, com personagens geralmente alegóricas, como os pecados, as virtudes, etc., e entidades como santos, demônios, etc., e que se caracteriza pela simplicidade da construção, ingenuidade da linguagem, caracterizações exacerbadas e intenção moralizante, podendo, contudo, comportar também elementos cômicos e jocosos"): não é que a coisa melhore com o tempo, mas depois de uma certa idade a gente acaba se esquecendo um pouco destes questionamentos.

Giovana disse...

Tive meu filho aos 29 e comemorei meus 30 com esse presentão da vida.
Estou quase a chegar aos 40 (falta um ano)e muito feliz. Como você, não sinto saudade dos meus 18. Eu era magra, sem barriga, sem rugas. Porém, muito chata; muito chata mesmo.