segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

(des)Encanto

É bastante triste o conto de ano novo publicado pela Bia. Eu entendo. A única resposta possível de uma mente que pensa e cria — nesta época do ano em que as impositivas regras emocionais vêm de enxurrada, pra te empurrar pro ruído geral estabelecido — é o desconforto. Desencanto. Desilusão. Mas meu vazio neste trinta e um eu confesso a vocês: é de outra natureza.
Meu vazio é o de quem acredita já ter feito o seu melhor. Queria ter um amor? Já tem um. Queria um orgasmo incrível a dois? Já teve mais de um. Queria escrever um bom livro? Já escreveu um. Não vislumbro de jeito nenhum a chance de encontrar um amor mais forte, mais ousado, mais apaixonado. Meu salto quântico tão ansiado? Já dei. Um livro mais bem escrito, sinceramente, é até possível. Mas provável, não é. Depois daquele tema intensamente vivido, vívido e colorido, qualquer perspectiva soa meio sem graça, lista de palavras ordenadas com gosto gasto de rotina. Já não espero mais. Já não espero nada mais.
Tudo o que eu queria agora era poder relaxar no bojo nem sempre suave deste encontro sagrado. Eu desejava ser capaz de amar. E fui. Sou. Por outro lado fui forçada a aceitar que aquela intensidade toda dá lugar a um fogo morno, do tipo que aquece mas sem chamuscar: um prato no ponto. No ponto e na mesa do almoço, nunca na ceia louca do imprevisto, varando alcoólica a madrugada e resultando sempre em dolorosa ressaca.
O sono é tranqüilo e já sem grandes sobressaltos, e isso é tudo de bom. Seria. Não fosse o vício eterno da intensidade, o gelo do improvável percorrendo a espinha num breve arrepio. O melhor de um amor talvez seja ansiar por ele, pela roleta russa que, claro, acaba no tiro fatal. Bum. Derrubada pelo grande amor.
Por outro lado às vezes eu penso que se de todos os outros lados eu estivesse bem, sem a dor da mãe doente e com a matéria assegurada, o teto garantido, não sei, gente. Eu estaria muito bem. Não ia querer mais nada e iria com gosto pro mato criar galinha, capinar erva-daninha. E já nem lembraria do desconforto, do desencanto, da desilusão. E nem de desejos de ano novo.
O que me mata não é falta de encanto; é falta de dinheiro mesmo, ou melhor, da segurança vitalícia de um bom dinheiro, coisa que francamente, até tem preço, mas valor que é bom não tem nenhum. Valor mesmo tem o amor, e o orgulho que a gente sente de um trabalho bem-feito. O resto é a ilusão social em que estamos todos mergulhados e que só dá um refresco na procura de um amor, quem sabe de um trabalho bem-feito. E de uma casa maior, de um computador melhor, de um celular mais moderno, de um carro novo, de uma viagem por ano, um vestido novo , um sapato novo, um filme inédito na tevê, uma audiência cada vez maior, um prêmio literário, um filho bem-casado e arranjado na vida, saúde, boa-forma, eterna juventude, uau. Paz no mundo. Segurança na rua. No Rio.
Não admira o nosso eterno descontentamento.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Acabou o Natal e o que você fez?

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Noite de 25 de dezembro. Ou melhor, primeiros minutos do dia 26.

Acabou o Natal, o grande encontro na noite do dia 24, muita gente, falação, cantorias, comilança desenfreada, fofocas em família, noite de sono que começa às 6h da manhã e um dia inteiro de ressaca, não de efeito de bebida alóólica, mas de dias de expectativa infundada para uma noite e um dia que, a meu ver, não deveria ter metade dessa agitação.

Passamos mais de um mês eperando por uma festa que não é festa. Vivemos dias de loucura nas ruas, trânsito estúpido, lojas entupidas, congestionamento nos terminais de cartão de crédito, supermercados lotados. Compras, compras, compras e a espera pela grande noite. Como uma noiva às vésperas do casamento, um músico que prepara sua estréia num novo e grandiso show, como uma criança que aguarda ansiosamente por sua festa de aniversário.

Isso, para a maioria das pessoas é Natal. Para mim, é uma distorção de valores. Eu pergunto: quem é que lembrou do aniversariante do dia? Quem parou para um minuto de meditação? Qual foi o ser que interrompeu seus festejos por instantes e reviu sua vida em família e entre amigos para repensar sua própria vida em meio a seus semelhantes? Quem se propôs uma mínima renovação interior?

"Então é Natal, e que você fez?" A cantora é brega, mas o verso é ótimo para o momento. O que você fez? O que eu fiz? Ou deixei de fazer? Me encontrei com a família, participei daquela ceia exagerada, bebi, presenteei e fui presenteada. Voltei para casa e dormi. Passei o dia cansada e aqui estou, pronta para dormir de novo e continuar tocando a vida.

Acabou o Natal e aí?

Guardei os presentes, as roupas novas do meu filho, fiz almoço (ou quase isso), me despedi do namorado no portão, como em qualquer dia do ano. Até aproveitei o sol, que andou sumido por uns dias, para lavar roupa. Sentei diante do computador para pagar uma conta, ver emails, coisa e tal. Um dia comum. Afinal, acabou o Natal, portanto é vida que segue.

E segue mesmo, igualzinha a todos os dias do ano. Acho que por isso dá essa sensação de vazio depois. Fica tudo meio triste, embaçado, como numa quarta-feira de cinzas. O corpo está cansado, as emoções bagunçadas e a alma pedindo uma pausa. Agora sim, que passou a refrega, aproveito a solidão para pensar, recolocar minhas idéias, rever minha vida e minhas relações. Sou humana como todo mundo e no meio de tanta tensão que envolve o Natal (não deveria ser assim, né?) é impossível ser a única a atrapalhar a festa e pedir uma paradinha pra pensar.

Faço isso agora, escrevendo. É minha forma de expressão. Aqui deixo tudo o que sei, que sinto, penso, prevejo.

Acabou o Natal. E agora?
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sábado, 22 de dezembro de 2007

Distantes II

Minha vizinha deu à luz esses dias. Como previ, fiquei sabendo por acaso, ao escutar o choro do bebê de madrugada. Para quem não se lembra ou não faz a mínima idéia do que estou falando, escrevi há pouco tempo sobre a distância que tomamos de pessoas próximas, nesses tempos de corre-corre atrás do cumprimento de inúmeros compromissos. E um dos exemplos foi a gravidez da minha vizinha, com quem divido parede, que descobri quando ela já estava aos seis meses de gestação.

Pois então, aconteceu. Numa madrugada dessa semana, após fechar a casa e deitar para tentar dormir, escutei, bem baixinho do outro lado da parede, aquele choro frágil de bebê recém-nascido. Sentei na cama e fiquei extasiada com a notícia. “Que lindo, ela ganhou neném!” A sensação foi a mesma de estar sendo comunicada por alguém. Me afundei novamente nos travesseiros e peguei no sono feliz pela mais nova mamãe das minhas relações.

E que relação estranha. Não só com a minha vizinha, mas com muitas outras pessoas com quem até tenho amizades duradouras, mas com pouquíssimo contato. E por isso estou novamente a falar sobre comportamentos esquisitos os quais acabamos por considerá-los corriqueiros. Afinal, quem está livre desse tipo de ‘convivência’ atualmente? Eu e minha vizinha entramos e saímos de casa e praticamente não nos vemos. Em nove meses de gravidez eu a encontrei duas vezes! E acho tão normal essa relação que fico feliz, mesmo sendo noticiada do nascimento do bebê às duas da manhã pela parede do meu quarto e quase comemoro.

Às vésperas do Natal recebo um email de uma amiga que não vejo há muito tempo. Quando nos falamos é pela internet, mas mesmo por esse meio já não nos encontramos faz meses. Em menos de dez linhas ela contou tanta novidade que fiquei até sem fôlego diante da tela do computador e uma das notícias me reportou ao caso da minha vizinha e seu bebê. A filha da minha amiga está grávida.

Caramba! Esta foi a primeira palavra da minha resposta. A notícia misturou saudade, com uma ponta de tristeza pela nossa distância, as memórias de tempos que atuamos juntas em trabalho assistencial comunitário e, principalmente, a lembrança da filha ainda criança, me chamando de tia. Agora, mulher, espera um filho e provavelmente não verei esta gravidez. Com certeza vou curti-la de longe, recebendo informações sobre a gestação por email. Mesmo assim é ainda melhor que a minha relação com minha vizinha de parede.

Em época de Natal ficam muito mais gritantes essas distâncias. Será que alguém ainda presta a atenção nisso? Houve tempos em que no início de dezembro as caixas de correio já ficavam abarrotadas de cartões de felicitações natalinas. Hoje em dia, alguns poucos chegam por email e normalmente são spams de empresas que apenas cumprem sua programação de marketing.

Voltando ao bebê da minha vizinha, espero o dia em que nos encontraremos por acaso, chegando ou saindo de casa. Assim poderei conhecer a criança e até confirmar se o bebê é realmente uma menina, como ouvi numa manhã dessas para, quem sabe, providenciar um presente. Difícil saber quando vamos nos esbarrar.
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sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Tudo azul no ano que vem

foto original publicada no NY Times em 20 dez

"Talvez você nem saiba", afirma o NY Times. "Mas a cor do ano foi o vermelho pimenta ardido." Faz sentido. Afinal de contas, neste nosso ano sem graça de 2007 não faltou sabor, nem fogo, nem lágrimas, mas, ops, melhor entrar logo num acordo: foi mesmo um ano sem graça, ou um ano pra lá de agitado, ardido como pimenta? Sim. Deixemos assim. Porque aquele outro trocadilho que nos vem à mente, mais condizente com alguns dos fatos... vocês sabem, não convém a gente repetir: dizem por aí que atrai.
Foi um ano ruim para as artes. Ou pelo menos, é o que diz o jornal, promovendo o encontro final da arte com a violência. Pra alguma coisa valeu: só assim a cultura, enfim, ganha uma primeira página.
Desconfio que este roubo foi um golpe publicitário. É, gente. Levaram a tela azul de Picasso porque, francamente, não estava combinando nem um pouco com o tom oficial do ano; ou então pra chamar a atenção, sei lá, para a falta que a arte nos faz. Vocês não acham que o olhar de esguelha, o lábio num muxoxo, transmite, assim, um certo nojo? Um convite ao despertar para o que realmente interessa? Pra nos tirar do vazio? Da mesmice? Da desesperança? E o Lavrador de Portinari? Será um protesto definitivo contra a transposição do São Francisco? Um derradeiro grito contra a exploração do trabalhador? Pensando bem, a arte não se conforma com este papel insignificante a que vem sendo relegada, fala sério. Seu destino é ser atuante, eficaz, um antídoto contra o blablablá generalizado. Seu talento é provocar o debate, a consciência. Mesmo que não entenda nada de política. Nem de economia. Triste é precisar de um ladrão, ou de um tiro, pra nos mostrar isso.
Mas peraí: resta sim, alguma luz. E ela nos chega, pasmem, pelas mãos do mesmo mercado que costuma tirá-la de nós, sei lá, só pra incentivar o consumo: o azul foi declarado a cor do ano de 2008. "A escolha do azul", diz a responsável pela novidade, "responde a várias necessidades, desejos, esperanças, este tipo de coisa." Oba. "Emocionalmente é calmante, meditativa, com um toque de magia", disse ela, deixando de fora o Partido Democrata. O perigo é que o azul, vocês sabem: em inglês significa triste, deprimido, desanimado, o oposto exato da energia explosiva de um vermelho. Ainda bem que em português não tem nada disso, melhor deixar isso de lado, optar pelo lado bom. Ou a gente ainda acaba roxo. Sufocando de tanta raiva.
Que a doçura relaxante do blues — meio triste, tá certo, mas bem mais gostoso que barulho de tiroteio — embale o seu ano novo. Tudo azul. Certo. Recado entendido. Agora vem cá: dá pra entrar num acordo e devolver nossa arte roubada?

domingo, 16 de dezembro de 2007

E viva a Bahia!

Ando meio desaparecida do Crônicos. Resolvi voltar com essa crônica que, certa vez, escrevi, mas para poucos mostrei. Acho que é a proximidade das férias e da saudosa Bahia...

Me vê 3 desse aí

Salvador, Bahia. Terra de sol, praia, água de coco e do povo manso. Do pelourinho, do farol, das baianas e seus acarajés quentes. Aliás, quente não é só a comida ou a temperatura indicativa de que estamos mais próximos ao equador. Quentes são as baianas e seu gingado. Felizes e com um papo que une esperteza, o manso e o gingado, os baianos também tentam ganhar a vida. Não rebolam ou usam longas saias brancas. Mas protagonizam momentos inesquecíveis, engraçados e, diríamos, de uma sinceridade singular. Para o feijão de cada dia, o jeito mesmo é rodar a baiana.
O dia era comum, as pessoas eram as mesmas, o momento era férias. Dar um jeitinho na cor branco-cândida da pele paulista. Era Salvador a salvadora. E eu só conseguia pensar que o mês era agosto e meus amigos estavam passando frio na cidade de concreto. A São Paulo. Sem entender ao certo o porquê das pessoas fazerem a migração do mar azul e límpido, que eu observava naquele momento, para o agradável odor do famoso rio Tietê. Eis que me surge um soteropolitano que preferira o mar. Ganhava a vida na praia. Em seus braços, fortes e bronzeados, uma infinidade de colares, pulseiras e brincos.
“Boa tarde, ‘dotô’. Vai um colarzinho para a namorada?”
Não, eu não queria. Também não namorava. E talvez o fato de ele me lembrar disso me chateasse um pouco.
“Não”
Ele iria embora, assim como todo e qualquer vendedor ambulante que encontro nas praias do Guarujá. A clientela era vasta e ele não perderia tempo demais, ali, comigo. Ledo engano. O baiano não é o paulista. Ou o baiano-paulista. O baiano tem no seu sangue a tal da ginga que eu comentei. E era com essa ginga que ele queria me conquistar. Eu não era só mais um. Para ele cada um é um e todos formam o seu ganha-pão. Ele estava disposto. Bem disposto.
“Calma senhor! Eu não quero vender nada não! Só quero conversar. Por que o que adianta eu vender isso aqui se amanhã eu vou morrer?”
Ai meu Deus. Lembrou-me da falta de namorada e ainda diz que eu posso morrer amanhã. Não.. Eu não quero morrer amanhã! Ainda sou novo. Quero ter filhos. Preciso conhecer a França.
“O senhor está de férias, eu estou de férias. É férias da vida, meu filho! Tá vendo esse pessoal todo aqui? Tá todo mundo de férias!”
Sim, férias. E depois de um ano de correria, trabalho árduo eu tinha as minhas férias. Agora, esse cara poderia sair um pouco da frente do sol. Me deixa quieto com as minhas férias!
“Olha moço, não vou querer o colar hoje não. Fica para a próxima.”
Ele sentou ao meu lado. Acho que não deu muito ouvidos para o que eu falei.
“Eu mesmo posso daqui a pouco ‘PÁ!’ morrer, tirar as minhas férias eternas. Daí, eu não vou levar nada comigo. Nada disso tudo aqui tem valor”.
E não é que o homem tinha razão? Mas eu não poderia dar o braço a torcer. Não teria ninguém para dar o colar, de qualquer forma. E, na verdade, não tinha muito dinheiro na hora. Só saíra com o dinheiro da cervejinha gelada. Pensei em levar o cara para uma empresa publicitária. Esse aí, certamente, ganharia muito dinheiro no ramo. Ou talvez abrir uma igreja. Seria um bom bispo. Arrecadaríamos mais dinheiro do que aquele bispo famoso que saiu no jornal.
“Então, o problema é que agora você me pegou um pouco desprevenido...”
Não concluí.
“Nada disso! Nem que o senhor me ofereça 30 reais por esse colar, eu não quero! Nem adianta tentar insistir. Eu quero só 10 reais. Não vou ter lucro nenhum, é só para pagar o preço da energia positiva!”
Aí. Energia positiva era algo do qual eu estava precisando. Muito mais do que um colar. E com essa frase, se o tal baiano de boa lábia fosse uma bela baiana de curvas bem torneadas, já tinha me conquistado ali. Na hora.
Resolvi levar o colar. O moço saiu com seu gingado pronto para conquistar mais uma alma. E talvez o colar não me trouxesse nada de mais. Mas aquela conversa me marcou. Talvez eu a leve por muito mais tempo do que o colar, que eu já nem sei onde deixei. Era o calor baiano. Voltei para São Paulo de férias ainda. Afinal, se não vivemos, deveríamos todos viver de férias. Sempre. Antes daquelas eternas, viver. Porque eu posso, ‘pá!’, morrer agora.
Aqueles 10 reais não pagaram nem a menor parcela da energia positiva que eu levei. E oportunidades de bons negócios assim, só aparecem uma vez na vida. Melhor não desperdiçar.

sábado, 15 de dezembro de 2007

Centenário

Esta crônica, publicada originalmente em 15 de janeiro de 2007 no Noga Bloga, foi responsável por minha seleção para a Oficina de Crônicas da Flip, e é com ela que homenageio, hoje, o centenário ilustre do dia. Obrigada por sua inspiração, Mestre Oscar. Nisso e em tudo o mais.

Hey, Óscar

Em minhas mais íntimas fantasias, me sinto igualzinha a qualquer celebridade (celebridade verdadeira, digo, como Picasso, Fellini, Caetano. Pina Bausch e outros do nível, nada de Ilha de Caras, por favor, que dessas não chego nem perto. Haha. Vocês notaram. Deixei o Philip Roth de fora, porque aí já seria pretensão demais). Não vejo diferença nenhuma entre o talento deles e o meu, mas como personalidade, é óbvio que o buraco é mais embaixo. Não sei o que me falta, gente: talvez um pouco mais de loucura, de ousadia, de um não-ligar-pro-que- alguém-pensa-de-mim. Ainda não cheguei lá mas vou me arrastando, penosamente, nessa direção.
Já meu marido Alan — ex-ator de improvisação, ex-mímico, ex-poeta trovador, ex-terapeuta e ex-milionário americano — é diferente. Deve ser por causa da idade, ou da arrogante (por natureza) nacionalidade, mas ele não só pensa que é igual às celebridades, como age como se celebridade fosse. Constrangedor.
Foi por isso que hesitei no outro dia, ao ver passar por nossa mesa de pizzaria, no Shopping Leblon, o grande Mestre Oscar.
— Olha lá, Alan. Tá vendo ali aquele senhor idoso, de bermuda e boné? Pois é o maior arquiteto do Brasil, e um dos melhores do mundo.
— É mesmo? E ele fez o quê?
— Brasília... Sambódromo... e mais não sei quantas sedes de partidos comunistas no mundo todo... (sendo gringo, o Alan não conhece outras maravilhas, como a Igrejinha da Pampulha, por exemplo, em Beagá)
— Como é o nome dele? - Engulo a língua. Hum. Já sei que vai dar problema:
— Oscar. Oscar Niemeyer. Este ano vai fazer 100 anos e acabou de se casar, olha como é bonita a esposa dele. Ele a chama de "filha". Todo mundo diz que foi por causa do dinheiro, mas eu não concordo. Em primeiro lugar, o Oscar é comunista convicto e trabalha até hoje, vai todo dia ao escritório; e, que eu saiba, fez muito projeto de graça, trabalhou principalmente pra governos. Quem é que ousaria pensar no Mestre Oscar pro projeto do prédio, da casa de praia? Em segundo, e nem por isso menos: já pensou que emoção, ser casada com o grande Oscar Niemeyer? Um gênio, e ainda por cima, um adorador confesso de mulher?
— Hum. Óscar, he? Óscar! Hey, Óscar!
Nossa. Não deu outra. Quase me enfio de timidez debaixo da mesa, mas Mestre Oscar já vem vindo em nossa direção, respondendo ao chamado. Confere o Alan - procurando se lembrar de onde o conhece - e já vai estendendo, simpático, a mão direita com um anel enorme no mindinho, a esquerda com uma aliança grossa. Disfarço mal o meu constrangimento:
— Pois é, Oscar. Meu marido é americano, e eu disse pra ele que você é o maior artista do Brasil.
— Exagero... Bem. Obrigado.
E lá se foi o Oscar, com um sorriso, em direção à mesa dele. Que homem. Qual será a receita de longevidade dele, hein? Hein? Seja qual for, funciona: o homem está aí, lúcido, ativo, nem bengala ele usa. Deve ser a arte, o talento, a mente inquieta, só pode. Não tem receita melhor de vida longa do que esta: trabalho, e criativo. Ah, sim. Muito amor também.
— See? No problem. É assim que você deve agir, se quiser ser um dia reconhecida - demonstra didático o Alan, meu mestre zen cuja orientação cotidiana não sigo nem um pouco: santo de casa, etc, etc. Mas ele está certo, é isso mesmo. Somos todos iguais perante a humanidade, e artista então... Se for de coração, é tudo irmão. Mesmo que só uns poucos tenham aquele quê a mais, além de uma obra surpreendente e única, que faz deles verdadeiras celebridades.

Ops. Posfácio rápido. Descobri mais tarde que o tal de “Oscar” não era “o” Oscar, que na época convalescia em casa de uma fratura. Não passava de um velhinho bem-humorado, que resolveu tirar o dia pra me fazer de boba. Ganhou, ganhou.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Um louco entre nós

Existe uma crença generalizada — apesar de improvável, e nunca até hoje confirmada — no poder do pensamento positivo, um escudo mágico que nos garante saúde, segurança e tranqüilidade. No pólo oposto do raciocínio não-lógico nos assombra o mito medieval de um encontro marcado com a morte: do seu dia, por mais que se faça, ninguém escapa. Entre estes dois extremos na escala do absurdo oscila o impulso da vida, nossa tendência nata para a sobrevivência, intocada pelo mistério da existência. Mas de vez em quando o equilíbrio se rompe, desfazendo a ilusão precária de uma ordem natural das coisas. Provoca o desastre. Desespero. Desesperança.
Quando penso no menino baleado — e desde sábado, baleado e morto — não sinto vontade de escrever. Sinto vontade de vomitar. E não há como apelar para o habitual culpado: é voz corrente aqui no bairro que o tiro partiu de nós. De mim. De você. Da porta ao lado.
Doze anos, gente. Doze anos. Uma mente virgem e um futuro moldável pela frente. Ouviu, cara? Você mesmo, você aí que não se sabe louco mas cede assim mesmo à tentação do impossível, você aí, que alimentado de violência do café à janta se olha no espelho e se julga herói, justiceiro, dono do mundo, com a bola toda. Dono da bala, você aí mesmo. Não se sente culpado? Oculto pelo anoitecer no anonimato da janela aberta, e ainda assim, culpado?
Não há desculpa pra nós: você, eu, o vizinho do lado. Doze anos e essa ração diária de insegurança, lida, ouvida, vivida e vista sem calcular o dano. Você aí.
O pior de tudo é que periga no escuro, com o dedo no gatilho daquela bala amarga, quem sabe: um outro menino inconsciente de apenas doze anos. Que embora continue vivo, já se sabe morto por dentro.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

quantas vezes você foi feliz sem quebrar o brinquedo

queimei o fofão na fogueira de são joão pra poder retirar a espada do cão. e a xuxa, enforquei que nem o judas, aquele canalha. os trilhos que faltaram na construção do ferrorama do meu irmão, fui eu quem escondi e nunca mais achei. eu furei o pogobol. eu soltei os periquitos australianos da gaiola. eu arranquei as cabeças da moranguinho e da uvinha e tirei uma das patas do meu querido pônei. cortei os cabelos da barbie da minha prima, e os próprios cabelos dela alegando ser o grito da última moda, coitada. no ursinho carinhoso, cor-de-rosa, fiz bigodes e tapa-olho de pirata, mamãe brigou comigo. o helicóptero elétrico do mackgueiver, dele, fiz um vôo rasante na bacia d’água e quebrou a parte eletrônica. o cartucho do vídeo game cce do almir filho, eu desconfigurei. o carrinho de rolimã, dado pelo meu pai a ele (e só a ele), eu afrouxei os rolamentos, e ainda assim ele não caiu na ladeira (gracias!) quantas vezes você foi feliz sem quebrar o brinquedo?!..
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eu fiquei pensando nesse texto (que ainda não está finalizado) só para começar uma conversa sobre experimentações. eu me permiti ousar as coisas. e isso tem conseqüências outras, boas ou ruins.e não pensem que esse texto me coloca na filinha das garotas más que não ganharão presente de natal, não. experimente você também quebrar seus brinquedos e afetos. e passe bem.

da ingenuidade pretendida

E sou do tempo que uma pessoa boa me fazia ser boa com ela, na lei da troca mais primitiva que regia aquele mundo que não pensava em marca nem em ser único pensava em manter aquela roda de afetos trocados pro dia fluir passar suave e no final dos mês as contas pagas ninguém com muito mais nem muito menos cada um com um pouco de mãe e pai e com muito de si o suficiente pra manter aquela roda de sobrevivência desconfiando um pouco que seja afinal era minas gerais e todo mundo era mais ou menos pobre em sendo pobre não gozava de muito tempo e com pouco tempo aceito não pensava que tinha uma vida inteira pra gozar contemplar
e se vestir ou se movimentar não se aprendia na revista mas tinha muita TV desde cedo. E tinha sonhos imensos gordos do lado de lá da imensidão que agora vejo tão pequena sem historia e de uma tristeza tão grande eu fiquei menina assim são joão assim quando menos pensava veio tudo e um amigo falou: - não entendo nada do que você fala ana, seu discurso é muito barroco! – E, eu, meu Deus, que agora entendo isso, barroco e tudo com casca filetinho rococó e tudo mais – você esperava o que André? Eu, entre igreja e cemitério, entre missa e pé de laranjeira, fio. Mas eu vi que a tristeza não estava lá.

domingo, 2 de dezembro de 2007

Feel-good pie

um filme doce e crocanteSabe aquele tipo de filme que conforta e alimenta como o colinho da mãe? Se fosse um gesto, "Garçonete" seria um abraço carinhoso, daqueles que te aquecem e não exigem nada em troca. Se fosse um prato, seria a típica comidinha caseira, receita gostosa pra ir levando a vida na boa, deixando de lado os problemas cotidianos. E não causa espanto nenhum que a personagem principal, com toda a tristeza que a cerca, viva sorrindo e seja uma exímia fazedora de tortas, cada uma com nome e receita mais originais que a outra. Bem. Pelo menos uma infância feliz e doce ela teve, o que já garante uma certa dose de alegria.
Embora nada no filme seja tão, isto é, o vilão da história não é tão ruim nem a heroína é tão boa assim — afinal de contas, rejeita o filho que cresce em seu ventre e embarca numa aventura extra-conjugal com barrigão e tudo, o que não pega nada bem num filme tão bem-intencionado —, uma tensão permanente o atravessa e deixa a gente o tempo todo tentando adivinhar que horrível drama está por vir.
Não sei, gente. Deve ser aquela habilidade que o ser humano tem de organizar os fatos em perfeita sincronia e ordem, porque no filme, tudo se resolve a contento. A gente vai dando um suspiro de alívio e derramando aquelas lágrimas discretas e inevitáveis em casos como este, quando percebe alguma coisa esquisita nos créditos: o filme é dedicado à memória de Adrienne Shelly, diretora e atriz do próprio que a gente fica sabendo logo, deixou órfã a filha de dois anos, garota fofinha que aparece nas cenas finais. Uau. Perplexa. A sensação de incômodo continua nos extras do dvd, onde as imagens e entrevistas mostram Shelly com uma inexplicada textura de fantasma.
Pelo Google a gente descobre que Adrienne foi brutalmente assassinada em seu escritório de Greenwich Village em novembro de 2006, antes mesmo de "Garçonete" ser lançado. Aos quarenta anos, não viveu para vê-lo brilhar no Festival de Sundance de 2007, onde foi comprado pela Fox para obter uma bilheteria de 18 milhões de dólares. Seu assassinato inspirou o episódio "Melting Pot" da 17ª temporada de Law & Order, onde Shelly já havia atuado. Um choque.

dos esportes

Faixas fedidas enroladas na mão e pode ser que a luta comece uma hora ou outra. Um menino de 20 anos é só docilidade enquanto mostra e vai torcendo o pano passando entre o anular, indicador, dedão,mindinho, punho, os olhos de Tiago fixam cada aluno, ele não quer brigar, quer seduzir cada um para a brincadeira. São poucos mas logo todos se sentem acolhidos porque Tiago é rei, rei com mãos machucadas, alguns roxos no rosto, nas articulações dos dedos. Tiago gosta de hip hop, não gosta de puxar ferro. Tiago finge cara feia é meigo e seu respeito capta a dificuldade do outro. Como o boxe. Você se defende e ataca porque vê o outro. A luva de boxe fica próxima ao rosto, o que expõe e esconde o que de cada um. Você só pode atacar quando está confiante de que suas pernas estão seguras, seu rosto protegido, seu corpo coerente. O ataque é rápido e preciso, dois socos, um de cada mão e você volta pro seu porto seguro (pro mesmo lugar?). Você só vai em frente se cuidar da retaguarda. O ataque é uma língua de iguana, um estímulo pra que o outro se perceba. E segue o jogo.