quinta-feira, 8 de novembro de 2007

salve polônio!

Diante de tudo o que se vê e da rapidez e degradação
de tudo, Cabo Polônio é
um lugar perdido. Quem perde o quê fica para o tal
livre arbítrio. São cerca
de 80 casas pequeninas, a maioria branca, salpicadas
sobre areia e grama e
cercadas quase totalmente pelo mar. Por um tris " um
caminho estreito e
sinuoso por onde se entra e sai de caminhão " não
estamos numa ilha.

E pra quem ouviu descrições de deserto, de dia faz
um calor do cão e à
noite, mesmo quando não chove, chegam ventos
poderosos que, parecem, vão
tirar os telhados daquelas casinhas todas.

De maneira geral, são brancas, o que dá uma sensação
de ilha grega para
muita gente.

Em Cabo Polônio " a 400 km de Montevidéo em ônibus
com ar-condicionado e
mais uma travessia de caminhão aberto sobre dunas "
as casas são distantes
umas das outras o suficiente para a felicidade.

Atílio é um artista plástico uruguaio, exilado por
vontade própria em
Polônio, convivendo com flores e suas obras. Sua
casa é cercada de plantas
compridas brancas.

Dentro dela, Atílio me mostrou uma caixa com tampo
de vidro onde guarda suas
interpretações de lobos e leões-marinhos em massa e
pedra. Outro trabalho
que chama a atenção é a série de bicicletas,
variações em desenho dos dois
aros fundamentais.

Para ele, a humanidade anda precisando de
bicicletas. Beatriz tem um rancho
próprio em Polônio onde, com o filho Guilherme,
trata de escrever o roteiro
para começar rodar, em dois meses, um filme.

O tema é a escravidão sexual, mulheres uruguaias
exportadas para esse fim.
Inconformada com a falta de apoio do governo
uruguaio à cultura, ela toma
horas de sol antes de escrever em alguma das praias
extensas e vazias. "É a
minha terapia."

Corre a boca pequena que o Uruguai é o país mais
lento do mundo.
No restaurante da Nancy, ela divide o fogão com um
filho bebê na cintura e
uma olhada nos biscoitos que vão virar alfajores,
feitos em fogão a lenha.
Para comer no restaurante de Nancy é preciso
esperar, de frente ao mar.

Elisa foi ativista do partido comunista durante as
ditaduras uruguaias, ela
se aquietou depois de um exílio no Chile e ao
perceber que as esquerdas
frustraram.

Então montou seu "El Molino" , cuja energia vem do
vento mesmo, abastecendo
as poucas e aconchegantes luzes à noite, geladeira e
aparelhos elétricos.
Casou-se com Patrick, um francês que flagrei fazendo
parafusos de alfavaca
com garfo depois de tomar um banho de mar.

Cansado em definitivo da urbe, o mineiro Henrique
Falcão montou sua loja de
roupas no alto de uma pedra, ao lado do farol.
"Célula Tronco" é um projeto
de desenho, arte e preservação da vida.

"Eu fazia uma série de roupas, sem parar, saía
vendendo como louco. Agora
são peças únicas. A venda é consequência. Eu não
posso agradar todo mundo".

Falcão quer criar uma fundação para preservação dos
lobos-marinhos, que
fazem um descanso nas praias de Polônio antes de
partirem para a reprodução
em mares mais frios.

A experiência em Cabo Polônio pode se radicalizar se
o visitante ficar em
casa de amigos ou num rancho alugado, vivendo à luz
de velas e usando a água
com moderação. Passei 12 dias assim, observando as
regras estabelecidas na
casa, pregadas numa geladeira movida a gás.

Acionava a bomba que leva a água da chuva para o
alto da casa e a distribui
para as torneiras do banheiro e da pia da cozinha.
São 50 movimentos diários
de musculação.

Em vez de usar a descarga do banheiro, buscava água
em dois baldes do lado
de fora da casa, acompanhada de Cazuza, Firulais e
Lineu, respectivamente,
os dois cachorros e o gato, ilustres habitantes da
casa dos espelhos, meu
abrigo nessa experiência "polonhense".

Ouvia dos moradores que rapidamente eu ficaria
"polonhense". Não entendi
muito bem o que, ao final do percurso, e só de volta
à vida urbana, pude
perceber.

Ficar "polonhense", para mim, foi entrar numa
sensação de humanidade e uma
vagareza saudável, por "supuesto". Para o banho,
esquentava a água e
despejava naquele balde-gambiarra que vira um
chuveiro. Fiquei com saudade
da ducha de hotel cinco estrelas.

Mas da janela do banheiro eu podia ver o mar e o
farol de Polônio, um dos
muitos cheio de histórias daquele país. Com um farol
daquele tamanho,
Polônio é conhecido por naufrágios históricos e
encalhe de navios. Um desses
casos envolve o Dom Guillermo, um navio que "atuou"
na Segunda Guerra
Mundial.

O que restou da embarcação é visto numa das praias
de Polônio, uma porção de
ferragens retorcidas fincadas na areia e nada mais.
Leo, o dono da casa, me
doutrinou sobre a água.

Disse que um banho como aquele equivale a um minuto
do nosso chuveiro na
cidade. Lembrei que meu banho é longo quando estou
bem triste ou bem alegre.
Naquele "transe" da quase-ilha eu não tinha nenhum
sentimento radical.

Leo foi o primeiro e único prefeito de Polônio.
Despachava na casa dos
espelhos, promovendo jantares à noite entre os
moradores, antigos
pescadores, turistas que decidiram se radicar,
hippies em trânsito e uma
sorte de gente com variados interesses, mas como a
mesma paixão pelo lugar.

Há uma pendenga sobre as propriedades em Polônio. O
Estado é o dono, teria
emprestado para os moradores e, agora, quer cobrar
uma taxa mensal pelo uso
das areias e grama.

Tudo é bem recente, mas o consenso é que o turismo
deverá ser controlado
porque não há estrutura para acolher muita gente; e
os lobos-marinhos e todo
aquele cenário vivo podem se estressar.

É certo que racionar água e luz quando se está
cercado de beleza e calma não
dói tanto. Mas, afinal, do que mesmo a gente
precisa?

Um comentário:

Noga Sklar disse...

acho que a gente se acostumou a precisar de um pouco mais que isso. mas que é uma tentação danada arrumar um jeito de ficar só nisso, é.