domingo, 16 de setembro de 2007

Pacto com o diabo, isto é, com o dinheiro

— Vou vender meu carro.
— Não faça isso, minha senhora, não fique a pé.
— Doutor, eu posso pegar táxi, mas minha cara não dá jeito.

(Diálogo relatado em entrevista pelo cirurgião plástico Paulo Müller)

Sou mesmo uma mentirosa. Gosto de contar que vendi meu carro, há mais de dez anos, numa decisão madura e ecologicamente correta. E que nunca senti falta, agora só ando a pé, etc. etc. Mentira pura. Vendi meu carro há mais de dez anos porque ele foi batido durante a noite, estacionado na rua. E usei o dinheiro para fins exclusivamente estéticos: implantei dois dentes que me faltavam por falha genética. Disso, apesar da dor e do incômodo na época — e do preço da cirurgia: um carro batido! — nunca me arrependi mesmo. Quem suporta pela vida inteira a amolação de usar na boca duas pontes móveis, uma de cada lado, entende do que estou falando. Nunca mais comprei outro carro, bem, hum. Não tenho dinheiro pra isso. Depois de optar pela literatura, então... nem se fala mais nisso. Quem vive de escrever, todo mundo sabe, é uma criatura superior: não liga pra miudezas, consumo, vaidades. Mas ultimamente, não sei não. Perdeu todo o élan, a poesia, o charme de uma vida desregrada, pra não dizer desesperada: não bebe; tem conta em banco; faz supermercado como todo mundo, uma vidinha irritantemente normal. Como afirma Martha Medeiros, em sua crônica de hoje, escritor virou funcionário: bate ponto, declara imposto e obedece a prazos. É, gente. Já me acusaram disso antes, isto é: de ser normal. Quando eu era xamã, tinha este amigo que sempre me gozava, fazia pouco das minhas fantásticas habilidades porque eu, apesar das magias todas, pegava ônibus e ia ao supermercado. Ele esperava, com certeza, que eu levitasse, me teletransportasse, e materializasse com um gesto de mão um farto banquete à mesa, como naquele conto de fadas que todo mundo já conhece. Ou simplesmente, nem precisasse comer.
Pois é, Martha. Pra falar a verdade, sempre te invejei: uma felizarda que ganha pra escrever, sem essa de blog, bem, sempre não. Só depois que resolvi escrever. Já até me dispus a pagar qualquer preço... pra trocar de lugar contigo ou conseguir, pelo menos, uma linhazinha na sua coluna, hum, já vi este enredo antes. (Parece o filminho que eu vi ontem, "O julgamento do diabo", onde um escritor pobre e frustrado troca a alma imortal por fama e fortuna pra depois concluir, coitado, sem grande criatividade: eu era feliz e não sabia, blablablá.) E agora entendo — pelo que li hoje — que na verdade mesmo, você é que daria tudo pra trocar de lugar comigo. Tá tudo certo. Podemos combinar.
Não faço mais dieta. Não vou mais à academia. Não pinto cabelo, nem corto. Não tenho plano de saúde, e não faço check-ups nem plásticas — embora na minha idade, segundo o Paulo Müller, já devesse estar na segunda. Bebo quando escrevo, me desatino, me entrego, me desespero... e bem, me suicidar não me suicidei. Ainda. Mas não vou negar que penso nisso de vez em quando, pensa bem, não seria bonito? Viver intensamente, amar, se entregar, se desesperar, botar tudo em livro e logo depois de publicar... se matar? É, Martha. Penso nisso com freqüência, e se você pensa que estou mentindo, basta ler meu post de ontem, anterior à sua crônica.
Bem. Hum. Mentira pura. Não me mato por ser covarde. E por não ter desistido, no fundo no fundo, de ser descoberta um dia: virar best-seller da noite pro dia, largar a bebida e finalmente, ganhar algum dinheiro. Comprar um carro, dar um jeito na cara enrugada, encher o guarda-roupa, ficar mais simpática e, acima de tudo, parar de incomodar com a minha eterna carência, meu puxa-saquismo... e principalmente, com os textos agressivos deste maldito blog.

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