domingo, 23 de setembro de 2007

Por um Fio de Memória

De Simone Silveira
(dedicado à Jeanette Munõz Schrag, filha de Consuelo Perez)

Era o aniversário dela, senhora Connie, 86 anos, residente há dois, na casa de repouso Centro para Idosos Pilar.

—Olá, Connie, como está? Feliz cumpliãnos, eu lhe desejei em sua língua materna. Ela riu e me perguntou se iria visitá-la na manhã seguinte. Eu lhe disse viver a cinco mil quilômetros dela. Teria que planejar uma viagem para vê-la brevemente. —Você vem me visitar amanhã?, repetiu ela, como se a pergunta fosse tão fresca como seus anos adolescentes, naquelas tardes que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Connie foi mulher à frente do seu tempo. Enquanto as meninas bordavam, ela passava as tardes num aviãozinho bimotor sobrevoando o vilarejo na companhia de Armand, cadete da aeronáutica.

Ele era lindo, sempre diz Connie, com lágrimas quase secas minando dos olhos e revirando as poucas memórias que ainda carrega. Casaram-se e tiveram uma filha. Ele foi servir ao país na guerra. Ao término desta, veio o alívio, que durou uma fração de tempo de uma vida feliz. A menina tinha três anos de idade quando receberam o telegrama informando à família que o avião pilotado por Armand trazendo prisioneiros de guerra tinha sido abatido pelos alemães durante a decolagem. Em solo francês jaz o corpo do marido.

Connie, viúva aos 24 anos, ainda casou-se mais quatro vezes. Separou-se de todos eles, sob a alegação de que os ex-maridos, sem exceção lhe cortavam as asas. Se tornou psicóloga. Comprou carros conversíveis velozes. Virou pintora de paisagens bucólicas—as planícies amareladas pelo sol insistente do Novo México e a cidade de San Francisco sob a neblina farta. Não bastando os pincéis, voltou-se à arte primitiva de fazer vasos de cerâmica. Na roda, ela girava e moldava suas peças, todas disformes, livres da exatidão, da linearidade da forma que jamais vivenciou.

Connie, agora, lembra-se de muito pouco, nem chora quando fala de Armand. Ainda não esqueceu que é mãe de uma filha. Sua memória é um fio frágil e delicado, como os fios de ouro utilizados em bordados de capas reais na Idade Média. Eu faço o erro grave de perguntar-lhe se gostaria de rever seus bisnetos. Ela se assusta. —Bisnetos, tenho eu bisnetos?, responde ela com palavras trêmulas seguidas de uma gargalhada potente, confusa, louca. Silêncio. Ela me pergunta se irei visitá-la no dia seguinte. Desligo, ciente de que eu também, já caí em esquecimento.

2 comentários:

anadangelo disse...

que linda história, faz a história dela faz!

beijo

Simone Couto disse...

fiz!