sábado, 29 de setembro de 2007

Haiku no prato



Ontem mesmo, sentada à mesa de um almoço tardio que avançou invasivo pelo jantar a dentro, emiti o parecer arriscado: "não tenho saco pra ler poesia". Escrever sim, já vou logo explicando. De vez em quando acho bom resumir — num golpe único e certeiro de palavras — um pensamento cru, mas já com gosto e textura de iguaria. Depois disso fico uns dois ou três dias observando a cria, a concisão emocional daquilo, repetindo de cor enquanto caminho, cozinho, admiro: revisando, remontando até deixar passar. Mas de ler geralmente não gosto, sei lá, preconceito, ou porque o que encontro costuma ser prolixo, descentrado, desconectado de quem a cria. No Prosa de hoje o Castello explica: "a poesia é, freqüentemente, gerida por bandos estéticos", o oposto exato do silêncio inspirado, da quietude interna, do espaço reservado oferecido à reflexão.
Digo arriscado porque se vê poeta a interlocutora à minha frente, que chamei de irmã mas que agora percebo, faria mais sentido ser filha, enquanto a conversa engole nossa fome voraz de vida. Viu? Parece prosa, mas no fundo no fundo, a gente vê que é poesia o tesão que nos leva por ritmo e rima, com ênfase aguda no desejo avulso, por razões de estilo muitas vezes repetido. São tardes de chocolate, madrugadas de vinho e noites de salmão pra celebrar um encontro que, se confrontado, se veria deliciado com a franca sensação de destino. Mas destino? sabemos que não há.
Nunca tive problemas pra reconhecer milagres. A coisa vem de mansinho, o pão cresce, o tempero certo aparece, e você inova: justo naquele dia resolve uma erva a mais, uma manteiga mole, uma acidez demais, levemente sugerida na consistência conhecida da musse: e se não der ponto? Mas se há milagre — ou talvez: fluência — a ousadia dá certo, e você respira: entende a pausa ativa naquele silêncio breve.
Por mais que se diga, se confira, a conexão exata vem por baixo de tudo, como uma mistura inusitada de ervas. Tudo que se quer é que ela continue ali, numa alquimia não planejada, pouco mais que soprada e que a quietude interna te permitiu ouvir. É por isso que amar, cozinhar, e escrever com algum lirismo pertencem a uma mesma categoria de coisas, e é o que Castello nomeia em seu artigo: a coragem solitária de correr riscos. Coragem ainda maior é a de revelar tão facilmente a intimidade, numa conversa aberta que, sem isso, seria perda de tempo entre comadres: uma zoeira gratuita que não pratico.
Pois foi-se a tarde. Foi-se o encontro mas deixou sua marca: um milagre se é bom não se prende ao tempo, não se resume ao momento nem padece de cronologia; escapa ao julgamento crítico e fala direto ao sentido, sem o crivo cortante da razão. É o mesmo que espero da poesia.

Um comentário:

anadangelo disse...

eita que deu inveja desse encontro

amar, cozinhar, escrever.... muito bom

os melhores votos de suerte no lançamento noga!