quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Primavera no apê

jardim de apartamento no Alto Leblon Foto: Noga Lubicz Sklar

"Só loucos como eu ainda lêem romances", afirma a contista Lúcia Bettencourt. Foi apenas aos 53, em 2005, que Lúcia publicou seu primeiro conto; e é com contos que tem colhido, nos últimos dois anos, alguns bons prêmios literários, entre eles — com o livro "A Secretária de Borges" — o SESC de literatura. Concordando que essa mania de ler romance é mesmo loucura dela, o jovem e bem-sucedido escritor Marcelino Freire, com seu talento nato pra agenda social, entende tudo muito bem: "Desisti do romance mesmo sem escrever nenhum. É tanta coisa pra fazer: tevê a cabo, dvd, sites pornográficos".
E pra cultivar violetas no apartamento, será que alguém ainda tem tempo? Mamãe tinha. A mãe de Simone K., segundo ela mesma conta, também. Já vovó não; cultivava rosas, que como todo mundo sabe, levam muito mais tempo pra cultivar. Tempo a vovó tinha de sobra. Tinha também intimidade com a terra. Tinha espaço. Tinha jardim.
Agora eu. Embora uma nova na Cobal só custe dois real, é doce este prazer herdado de ver florescer, na mureta baixa da área de serviço, a mesmíssima velha violeta, em seu vasinho barato de plástico preto. De sol mesmo, coitada, só tem dois meses de verão por ano, e um dia quase secou. A flor murchou, morreu, capitulou. Mas eu não: insisti. Decidi apostar na sobrevivência dela, no sonho, no fruto maduro, e reguei na medida: nem demais, nem de menos. Dei a ela o tempo justo da primavera, o longo tempo de escrever um romance, taí: como a Lúcia, sou mesmo antiga. Ou quem sabe louca.
Educada à base de Tolstói, a mãe de Amós Oz costumava inebriar-se, no jardim de sua infância na Rússia, com o perfume intenso de uma florzinha roxa, até sentir-se leve, flutuando. Mas em seu berço de imigrante pobre foi com o cheiro inebriante da cola, em seu primeiro sapato de couro, que o menino Amós se deliciou. A mãe de Oz se matou; o menino cresceu, se libertou: virou romancista. Conto ou romance, se for por prazer de ler — ou de escrever —, criam seu próprio tempo. É a escolha de cada um que importa, e não a circunstância em volta.
Vovó nunca leu nenhum romance. Nem conto. Nem mesmo jornal. Imigrante também, nunca aprendeu a ler. Mas num tempo em que ninguém mais tem tempo a neta dela escreveu um romance, apostando a vida em sonhos que muitos outros, em seu lugar, já julgariam perdidos. Em vez de comprar flor, prefere cultivá-las num canto apertado do apartamento, fazer o quê: tem gosto pra tudo, e sim, muita coisa pra fazer. Mas conto ou romance, quando um livro é realmente bom, encontro sempre o tempo de lê-lo: nem demais, nem de menos.
No final das contas, não é o tempo disponível que interessa, claro. Nem o tamanho do texto, mas o assunto, o envolvimento. É pensando nisso que custo um pouco a entender porque tanta gente hoje em dia, com tanto assunto pra escolher, decide escrever sobre o que escreviam, ou pensavam, ou sonhavam, os autores de antigamente: reconhecidos, porém já mortos. Será medo? Medo de ousar? Medo de escolher? Ou medo de incomodar? Ainda mais se levarmos em conta que o clássico moderno sobre o tema já foi escrito em 2002, e é tão bom, mas tão bom, que dificilmente será superado: é o "Mal de Montano", de Enrique Vila-Matas. Medo de assunto não está com nada, mas que existe, existe. Até mesmo José Castello, meu favorito entre os críticos literários, anda pensando em optar pelos mortos. Mas no caso dele, a coisa até se justifica: com o parecer honesto e original que lindamente praticou, nas suas "Cartas de um aprendiz", incomodou tanto aspirante a gênio que simplesmente... desistiu. Largou de mão. Mesmo sendo crítico, o cara é ótimo: não quer magoar ninguém, e nós, escritores, é que perdemos com isso. Enquanto há tempo, confere lá. E vê se aprende alguma coisa.

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