sábado, 29 de setembro de 2007

Haiku no prato



Ontem mesmo, sentada à mesa de um almoço tardio que avançou invasivo pelo jantar a dentro, emiti o parecer arriscado: "não tenho saco pra ler poesia". Escrever sim, já vou logo explicando. De vez em quando acho bom resumir — num golpe único e certeiro de palavras — um pensamento cru, mas já com gosto e textura de iguaria. Depois disso fico uns dois ou três dias observando a cria, a concisão emocional daquilo, repetindo de cor enquanto caminho, cozinho, admiro: revisando, remontando até deixar passar. Mas de ler geralmente não gosto, sei lá, preconceito, ou porque o que encontro costuma ser prolixo, descentrado, desconectado de quem a cria. No Prosa de hoje o Castello explica: "a poesia é, freqüentemente, gerida por bandos estéticos", o oposto exato do silêncio inspirado, da quietude interna, do espaço reservado oferecido à reflexão.
Digo arriscado porque se vê poeta a interlocutora à minha frente, que chamei de irmã mas que agora percebo, faria mais sentido ser filha, enquanto a conversa engole nossa fome voraz de vida. Viu? Parece prosa, mas no fundo no fundo, a gente vê que é poesia o tesão que nos leva por ritmo e rima, com ênfase aguda no desejo avulso, por razões de estilo muitas vezes repetido. São tardes de chocolate, madrugadas de vinho e noites de salmão pra celebrar um encontro que, se confrontado, se veria deliciado com a franca sensação de destino. Mas destino? sabemos que não há.
Nunca tive problemas pra reconhecer milagres. A coisa vem de mansinho, o pão cresce, o tempero certo aparece, e você inova: justo naquele dia resolve uma erva a mais, uma manteiga mole, uma acidez demais, levemente sugerida na consistência conhecida da musse: e se não der ponto? Mas se há milagre — ou talvez: fluência — a ousadia dá certo, e você respira: entende a pausa ativa naquele silêncio breve.
Por mais que se diga, se confira, a conexão exata vem por baixo de tudo, como uma mistura inusitada de ervas. Tudo que se quer é que ela continue ali, numa alquimia não planejada, pouco mais que soprada e que a quietude interna te permitiu ouvir. É por isso que amar, cozinhar, e escrever com algum lirismo pertencem a uma mesma categoria de coisas, e é o que Castello nomeia em seu artigo: a coragem solitária de correr riscos. Coragem ainda maior é a de revelar tão facilmente a intimidade, numa conversa aberta que, sem isso, seria perda de tempo entre comadres: uma zoeira gratuita que não pratico.
Pois foi-se a tarde. Foi-se o encontro mas deixou sua marca: um milagre se é bom não se prende ao tempo, não se resume ao momento nem padece de cronologia; escapa ao julgamento crítico e fala direto ao sentido, sem o crivo cortante da razão. É o mesmo que espero da poesia.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

o pra sempre, sempre acaba meu amigo

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meu amigo, eu te falo é do amor. não desses jurados nas noites de sexta-feira, sob o arco e o álcool da lapa, não. eu te falo do amor da segunda-feira, ainda nas proximidades do antigo aqueduto, entre coca colas e descobertas. eu te confesso meus medos da inexistência do caos. é o caos em nós, latente. dói, amigo, dói, mas passa. isso é o mais costumeiro dos clássicos que a gente ouve, mas é verdade absoluta destilada e engarrafada pra ser consumida aos poucos, homeopaticamente. não é o fim, juro. é o que chamo de dobrar a esquina. o que acontece é que não queríamos. e de repente somos obrigados a sair do canto, levantar as pernas e caminhar por uma calçada que não sabemos onde vai dar. mas do que isso, a crueldade das coisas, somos obrigados a percorrer essa estrada sozinhos, sem ele, sem ela. a gente fica de repente cercado pelo umbigo. restamos nós, os nós. e a gente se dá conta que não sabe nada acerca do mundo, e tanto que a gente estudou! nietzsche, platão, buda, heidegger, lispector, saramago, freud. ninguém nos livra, nenhum deles desce do altar e nos convida pro bom vinho barato nos bares da vida contornados pelo arco. talvez a culpa seja do bonde, das escadarias coloridas, da vastidão de gemidos ecoados pelos becos sujos, da fumaça de maconha que deixa difuso o ar. os culpados somos todos nós, que engolimos direitinho a conversa boba de que eu sei que vou te amar por toda minha vida eu sei que vou te amar. sempre insistindo nas eternidades. tsc tsc tsc. vinte e quatro horas de cada vez e tudo ao mesmo tempo agora. o mundo é grande demais e gente não dá conta mesmo. talvez a solução seja aceitar, fingir que é melhor assim, fazer o jogo do contente, do feliz, do otimista. eu não sei a solução, nem sei se sobrevivi, se saí ilesa dos idos sete anos e meio, eu não sei. mas se conselho fosse bom, se servisse, se adiantasse, se fosse exemplo, eu te diria:
…………………….olha, chora toda a tua dor. chora mesmo, em prantos, no colo da mãe, do pai, dos amigos, dos irmãos, dela mesma. chora no espelho, no trem, nas ruas cheias de sol, atravessando passarelas, zona norte, zona oeste. chora o tempo necessário que não deve ultrapassar tua existência. é o luto. aceita essa dança nova. aceita que alguém sacou que pode viver sem ti, e aí um dia tu descobre que, apesar de menos colorido, tu pode viver sem ela. há coisas que não podemos modificar, tu sabe. e, embora eu odeie ser contrariada, aprendi isso e fico muito agradecida por tudo. nada é definitivo, graças à deus.
viva teus dias, depois da chuva imensa, como se nessa nova rua, as flores te saudassem.. e saúdam! o fato é que nunca tu havia prestado atenção nisso antes. depois que parar de chover, abre as janelas e portas. pode ser aos poucos, pode ser com fúria. abre os braços, os espaços todos. deixa o novo, a nova, te apossar inteiro. uma dica importante: isso aí doendo, isso que tu chama amor, não passa, o poeta estava certo. só que é preciso saber que o amor liberta. e é por isso.

tu me sabes:
é amor.
..........
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segunda-feira, 24 de setembro de 2007

aniversario

Com a calma, vejo a mão da minha mãe na minha. Minha timidez facial - que um namoradinho batizou com propriedade - tem um quê da boca da minha avó. Que era idêntica a mim quando era bem jovem. O que eu quero dizer é que só agora eu vejo, em mim, minha família. O franzido de boca da dona Lourdes está aqui, quando dá preguiça da conversa. As unhas da dona Cecília são mais cuidadas e sempre vermelhas mas eu vejo sua mão na minha mão. Minha boca anda mais fina. Meu pescoço continua longo - o que um namoradinho bonzinho chamou de moça de Modigliani. A voz eu reconheço quando converso com quem amo. Senão, tem um timbre de desespero. Os quadris, eu já tinha visto, ganharam um plus que eu reconheço nas amigas de faculdade. Teve um ombro que deu problema na volta da Bahia. O acupunturista diagnostica responsabilidade - para mais ou menos - e desejos inconfessáveis. Morro de rir. Quem não te conhece que te compre. Tudo faz um sentido inexplicável. É onde é bonito. Mesmo que seja a calma.

domingo, 23 de setembro de 2007

Por um Fio de Memória

De Simone Silveira
(dedicado à Jeanette Munõz Schrag, filha de Consuelo Perez)

Era o aniversário dela, senhora Connie, 86 anos, residente há dois, na casa de repouso Centro para Idosos Pilar.

—Olá, Connie, como está? Feliz cumpliãnos, eu lhe desejei em sua língua materna. Ela riu e me perguntou se iria visitá-la na manhã seguinte. Eu lhe disse viver a cinco mil quilômetros dela. Teria que planejar uma viagem para vê-la brevemente. —Você vem me visitar amanhã?, repetiu ela, como se a pergunta fosse tão fresca como seus anos adolescentes, naquelas tardes que antecederam a Segunda Guerra Mundial.

Connie foi mulher à frente do seu tempo. Enquanto as meninas bordavam, ela passava as tardes num aviãozinho bimotor sobrevoando o vilarejo na companhia de Armand, cadete da aeronáutica.

Ele era lindo, sempre diz Connie, com lágrimas quase secas minando dos olhos e revirando as poucas memórias que ainda carrega. Casaram-se e tiveram uma filha. Ele foi servir ao país na guerra. Ao término desta, veio o alívio, que durou uma fração de tempo de uma vida feliz. A menina tinha três anos de idade quando receberam o telegrama informando à família que o avião pilotado por Armand trazendo prisioneiros de guerra tinha sido abatido pelos alemães durante a decolagem. Em solo francês jaz o corpo do marido.

Connie, viúva aos 24 anos, ainda casou-se mais quatro vezes. Separou-se de todos eles, sob a alegação de que os ex-maridos, sem exceção lhe cortavam as asas. Se tornou psicóloga. Comprou carros conversíveis velozes. Virou pintora de paisagens bucólicas—as planícies amareladas pelo sol insistente do Novo México e a cidade de San Francisco sob a neblina farta. Não bastando os pincéis, voltou-se à arte primitiva de fazer vasos de cerâmica. Na roda, ela girava e moldava suas peças, todas disformes, livres da exatidão, da linearidade da forma que jamais vivenciou.

Connie, agora, lembra-se de muito pouco, nem chora quando fala de Armand. Ainda não esqueceu que é mãe de uma filha. Sua memória é um fio frágil e delicado, como os fios de ouro utilizados em bordados de capas reais na Idade Média. Eu faço o erro grave de perguntar-lhe se gostaria de rever seus bisnetos. Ela se assusta. —Bisnetos, tenho eu bisnetos?, responde ela com palavras trêmulas seguidas de uma gargalhada potente, confusa, louca. Silêncio. Ela me pergunta se irei visitá-la no dia seguinte. Desligo, ciente de que eu também, já caí em esquecimento.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Confessionario

Sua obsessão é igual sua diversão?

Você preserva o ócio ou foge dele?

Você tem medo da solidão ou da loucura?

Da exposição ou da obscuridade?

Da contaminação consigo ou com o outro?

Da apatia ou da depressão?

Da comparação ou da incompetência?

Do monstro ou da repetição?

Do desejo ou de não desejar?

Do silêncio ou do ruído?

Quem te irrita parece contigo?

Tudo o que você vê te preenche ou te esvazia?

É impossível ser feliz sozinho?

Medo de ficar só ou de não ficar?

De romper ou de continuar?

De atrasar ou de chegar em ponto? De passar do ponto?

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Entre o Concreto e o Campo

De Simone Silveira Kaplan

Hanna considera-se uma andarilha. Mesmo assim não foi fácil dizer adeus àquela Ilha—o casarão, o jardim, suas plantas, mais de duzentas fincadas no solo nos últimos dez anos. Para trás ela deixava a esperança de que as alfazemas sobreviveriam sem o seu cuidado. Duas maçãs tímidas ainda amadureciam no pé. A horta e o coração de Hanna minguavam aos poucos.

Hanna é orgânica. Suas mãos haviam cavado buracos admiráveis, misturado à areia seca e amarelada, um bom monte de esterco feito de algas marinhas. Lá estão elas, já se enraizando em terra boa, as árvores de folhas picotadas avermelhadas. Lindas. Elas crescem robustas apesar de tanto vento e sal nos galhos e tronco.

Durante a viagem os olhos de Hanna só viam a mata. O outono chegando, as folhas secando e amarelando. Da janela do carro, ela descrevia as flores e arbustos, a geografia, a relação destes objetos entre si e o espaço. Os seus olhos não registravam a arquitetura tradicional entre uma cidadezinha ou outra no meio do caminho. Ela lamentava, bem dentro de si, por conseguir levantar a cabeça, e enxergar algo diferente, como lhe dizia o marido.

A chegada de Hanna foi um desalento. Era um chegar definitivo, sem voltas. Como se habituaria? Ela colocou as malas no chão do corredor da nova residência e desabou de cansaço. Pela noite, deitada, sentiu o cheiro do travesseiro, experimentou a sensação familiar do peso do cobertor sobre o corpo. Pousou a Ilíada na cabeceira. Lembrou-se de Priam, rei de Tróia, suplicando o corpo do filho morto, Hector, a Aquilles.

No dia seguinte, Hanna pegou o metrô lotado. O centro da cidade—gente, carrinho, barulhos, lixo, sufocou-a. Era impossível andar por aquelas ruas estreitas e confusas. Porém caminhou, infinitamente. Seus pés calejavam. No campo, eles jamais reclamaram.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

adeusbia

Ademar já tinha pensado nas múltiplas possibilidades para o fim, mas num certo dia — depois do culto de todos os domingos, diante da sopa de sempre à noite - resolveu. ¶
Aquela menina já estava passando dos limites. Não que não fosse bonita. Era. Não que não gostasse dela. Gostava. Aprendera a gostar de sua falta de modos, sua boca constantemente vermelha, seu risinho cínico depois das frases mentirosas, sua tatuagem verde de rifle no cofrinho, sua mania de esvoaçar qualquer seriedade. ¶
Um tiro no peito foi uma idéia que apareceu no princípio, mas logo abandonada porque sua mãe, Inês, já beirava os 78, e não merecia tanta desconsideração. Ademais, não lhe agradava ser alvo de comentários maldosos na Igreja Multitransnacional de Todos os Dias, como um fracassado do auto-flagelo de amor. Nada a ver com culpa ou medo de ir parar no limbo. Era vergonha mesmo.¶
Fez as contas e sabia que o pé de meia poderia lhe servir por alguns meses. Afinal tinha valido a pena sacrificar partidas de sinuca das terças-feiras, um conhaquinho que usou comprar até os 28 anos na mercearia do Seu Juca e as duas últimas férias embolsadas da firma. A intenção primeira era passá-las em Passo Vazio, uma cidadezinha charmosa do norte do Estado, em que havia uma pescaria tradicional no mês de julho. Os peixes quase vinham comer na mão. Mas custava caro, mais a vara nova, mais a passagem, mais o tropeirão no final do dia, mais umas e outras com os colegas. Agora sabia, obrigado senhor, eu consegui sublimar as duas últimas férias. ¶
Catou as duas malas velhas no armário, calçou uma bota velha amiga, amaciada aos calos de Ademar. Fez a barba, botou um cinto novo, presente de dona Inês no último Natal, até um gelzinho ele arriscou naquela data. Saiu assobiando como malandro, arrastando o pé, tentando elegância no último movimento. Zé Ramalho no toco, tomou o trago derradeiro. ¶
No outro dia, pela manhã, quem pegou o ônibus na avenida Lopes Silva, na região de Ribeiro Pro Mar, pôde acompanhar centenas de cartazes pretos com letras brancas, pregados nos pontos da linha 4201: AdeusBia. Estou indo embora.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Alternativa ao Faustão

Por Giovana Damaceno

Domingo, quase cinco da tarde. Volto de um almoço na cidade vizinha. Acabo de comer uma feijoada e saio devagar, curtindo a tarde de sol e vento fresco. Passo em frente a um motel de periferia e vejo um casal debruçado na janela, totalmente aberta. Ele, sem camisa: ela, de sutiã. Comentei na hora o que vi, ainda em tempo de observar melhor a cena, já que estávamos sem pressa. Ele, moreno; ela bem clara; ambos bonitos, magros, sorridentes. Da janela do motel vê-se o pôr-do-sol em toda a sua beleza e o casal lá, silencioso, apenas observando.

Quem costuma se deliciar com as nuances do dia, como eu, é capaz de entender. Uma tarde fina, de luz mansa de inverno, uma brisa que parece triste. O pôr-do-sol é laranja, já baixo, o céu é límpido. E o dia vai morrendo assim.

Fiquei pensando naqueles dois, numa tarde de domingo, após uma hora de sexo (mais? ou menos?), curtindo o inverno morno pela janela do motel. Não conheço alguém que faça isso. “No mínimo é uma alternativa ao Faustão”, disse meu namorado, “nós fomos comer uma feijoada e eles estão ali, românticos, descansando à janela depois de uma tarde de sexo selvagem”. Quem sabe?

Tive um amigo que detestava domingos. Saía nas noites de sexta e sábado, encontrava gente, bebia todas. Mas, no domingo, mal acordava e já encarava uma sessão de filme atrás da outra, para não ver o dia passar. Janelas e cortinas fechadas, sanduíche, água, café. Chegava a noite, via o Fantástico e cama. Foi assim durante quase toda a juventude até que conheceu uma garota. Que adorava domingos. As tardes de domingo. E ela o ajudou a descobrir algo de útil para fazer nesses momentos. Sexo.

Foram tardes e tardes dominicais, cada uma delas numa suíte de motel diferente. Ele, aprendendo a gostar de domingo; ela juntando algo que gostava com algo de que gostava ainda mais. Porém, em nenhum desses dias memoráveis a janela foi aberta, entravam debaixo de sol e saíam já noite.

Lembro dos relatos dele sobre essas horas. A tara pela garota, as conversas, a cerveja, o café depois do sono. E imagino em que pensava o casal na janela, onde morariam, e o que fariam da vida. Seriam namorados? Ou amantes? Estariam felizes? Ou se conheceram no almoço? Na noite anterior, talvez, e estavam ali encerrando o fim de semana.

Depois de tanta divagação vejo que já estou à porta de casa. Quase 5h30. E lembro do que meu namorado disse. “Uma alternativa ao Faustão”. Realmente nada melhor para um domingo que uma tarde de sexo, com direito a pôr-do-sol a dois. Sem TV.

domingo, 16 de setembro de 2007

Pacto com o diabo, isto é, com o dinheiro

— Vou vender meu carro.
— Não faça isso, minha senhora, não fique a pé.
— Doutor, eu posso pegar táxi, mas minha cara não dá jeito.

(Diálogo relatado em entrevista pelo cirurgião plástico Paulo Müller)

Sou mesmo uma mentirosa. Gosto de contar que vendi meu carro, há mais de dez anos, numa decisão madura e ecologicamente correta. E que nunca senti falta, agora só ando a pé, etc. etc. Mentira pura. Vendi meu carro há mais de dez anos porque ele foi batido durante a noite, estacionado na rua. E usei o dinheiro para fins exclusivamente estéticos: implantei dois dentes que me faltavam por falha genética. Disso, apesar da dor e do incômodo na época — e do preço da cirurgia: um carro batido! — nunca me arrependi mesmo. Quem suporta pela vida inteira a amolação de usar na boca duas pontes móveis, uma de cada lado, entende do que estou falando. Nunca mais comprei outro carro, bem, hum. Não tenho dinheiro pra isso. Depois de optar pela literatura, então... nem se fala mais nisso. Quem vive de escrever, todo mundo sabe, é uma criatura superior: não liga pra miudezas, consumo, vaidades. Mas ultimamente, não sei não. Perdeu todo o élan, a poesia, o charme de uma vida desregrada, pra não dizer desesperada: não bebe; tem conta em banco; faz supermercado como todo mundo, uma vidinha irritantemente normal. Como afirma Martha Medeiros, em sua crônica de hoje, escritor virou funcionário: bate ponto, declara imposto e obedece a prazos. É, gente. Já me acusaram disso antes, isto é: de ser normal. Quando eu era xamã, tinha este amigo que sempre me gozava, fazia pouco das minhas fantásticas habilidades porque eu, apesar das magias todas, pegava ônibus e ia ao supermercado. Ele esperava, com certeza, que eu levitasse, me teletransportasse, e materializasse com um gesto de mão um farto banquete à mesa, como naquele conto de fadas que todo mundo já conhece. Ou simplesmente, nem precisasse comer.
Pois é, Martha. Pra falar a verdade, sempre te invejei: uma felizarda que ganha pra escrever, sem essa de blog, bem, sempre não. Só depois que resolvi escrever. Já até me dispus a pagar qualquer preço... pra trocar de lugar contigo ou conseguir, pelo menos, uma linhazinha na sua coluna, hum, já vi este enredo antes. (Parece o filminho que eu vi ontem, "O julgamento do diabo", onde um escritor pobre e frustrado troca a alma imortal por fama e fortuna pra depois concluir, coitado, sem grande criatividade: eu era feliz e não sabia, blablablá.) E agora entendo — pelo que li hoje — que na verdade mesmo, você é que daria tudo pra trocar de lugar comigo. Tá tudo certo. Podemos combinar.
Não faço mais dieta. Não vou mais à academia. Não pinto cabelo, nem corto. Não tenho plano de saúde, e não faço check-ups nem plásticas — embora na minha idade, segundo o Paulo Müller, já devesse estar na segunda. Bebo quando escrevo, me desatino, me entrego, me desespero... e bem, me suicidar não me suicidei. Ainda. Mas não vou negar que penso nisso de vez em quando, pensa bem, não seria bonito? Viver intensamente, amar, se entregar, se desesperar, botar tudo em livro e logo depois de publicar... se matar? É, Martha. Penso nisso com freqüência, e se você pensa que estou mentindo, basta ler meu post de ontem, anterior à sua crônica.
Bem. Hum. Mentira pura. Não me mato por ser covarde. E por não ter desistido, no fundo no fundo, de ser descoberta um dia: virar best-seller da noite pro dia, largar a bebida e finalmente, ganhar algum dinheiro. Comprar um carro, dar um jeito na cara enrugada, encher o guarda-roupa, ficar mais simpática e, acima de tudo, parar de incomodar com a minha eterna carência, meu puxa-saquismo... e principalmente, com os textos agressivos deste maldito blog.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Primavera no apê

jardim de apartamento no Alto Leblon Foto: Noga Lubicz Sklar

"Só loucos como eu ainda lêem romances", afirma a contista Lúcia Bettencourt. Foi apenas aos 53, em 2005, que Lúcia publicou seu primeiro conto; e é com contos que tem colhido, nos últimos dois anos, alguns bons prêmios literários, entre eles — com o livro "A Secretária de Borges" — o SESC de literatura. Concordando que essa mania de ler romance é mesmo loucura dela, o jovem e bem-sucedido escritor Marcelino Freire, com seu talento nato pra agenda social, entende tudo muito bem: "Desisti do romance mesmo sem escrever nenhum. É tanta coisa pra fazer: tevê a cabo, dvd, sites pornográficos".
E pra cultivar violetas no apartamento, será que alguém ainda tem tempo? Mamãe tinha. A mãe de Simone K., segundo ela mesma conta, também. Já vovó não; cultivava rosas, que como todo mundo sabe, levam muito mais tempo pra cultivar. Tempo a vovó tinha de sobra. Tinha também intimidade com a terra. Tinha espaço. Tinha jardim.
Agora eu. Embora uma nova na Cobal só custe dois real, é doce este prazer herdado de ver florescer, na mureta baixa da área de serviço, a mesmíssima velha violeta, em seu vasinho barato de plástico preto. De sol mesmo, coitada, só tem dois meses de verão por ano, e um dia quase secou. A flor murchou, morreu, capitulou. Mas eu não: insisti. Decidi apostar na sobrevivência dela, no sonho, no fruto maduro, e reguei na medida: nem demais, nem de menos. Dei a ela o tempo justo da primavera, o longo tempo de escrever um romance, taí: como a Lúcia, sou mesmo antiga. Ou quem sabe louca.
Educada à base de Tolstói, a mãe de Amós Oz costumava inebriar-se, no jardim de sua infância na Rússia, com o perfume intenso de uma florzinha roxa, até sentir-se leve, flutuando. Mas em seu berço de imigrante pobre foi com o cheiro inebriante da cola, em seu primeiro sapato de couro, que o menino Amós se deliciou. A mãe de Oz se matou; o menino cresceu, se libertou: virou romancista. Conto ou romance, se for por prazer de ler — ou de escrever —, criam seu próprio tempo. É a escolha de cada um que importa, e não a circunstância em volta.
Vovó nunca leu nenhum romance. Nem conto. Nem mesmo jornal. Imigrante também, nunca aprendeu a ler. Mas num tempo em que ninguém mais tem tempo a neta dela escreveu um romance, apostando a vida em sonhos que muitos outros, em seu lugar, já julgariam perdidos. Em vez de comprar flor, prefere cultivá-las num canto apertado do apartamento, fazer o quê: tem gosto pra tudo, e sim, muita coisa pra fazer. Mas conto ou romance, quando um livro é realmente bom, encontro sempre o tempo de lê-lo: nem demais, nem de menos.
No final das contas, não é o tempo disponível que interessa, claro. Nem o tamanho do texto, mas o assunto, o envolvimento. É pensando nisso que custo um pouco a entender porque tanta gente hoje em dia, com tanto assunto pra escolher, decide escrever sobre o que escreviam, ou pensavam, ou sonhavam, os autores de antigamente: reconhecidos, porém já mortos. Será medo? Medo de ousar? Medo de escolher? Ou medo de incomodar? Ainda mais se levarmos em conta que o clássico moderno sobre o tema já foi escrito em 2002, e é tão bom, mas tão bom, que dificilmente será superado: é o "Mal de Montano", de Enrique Vila-Matas. Medo de assunto não está com nada, mas que existe, existe. Até mesmo José Castello, meu favorito entre os críticos literários, anda pensando em optar pelos mortos. Mas no caso dele, a coisa até se justifica: com o parecer honesto e original que lindamente praticou, nas suas "Cartas de um aprendiz", incomodou tanto aspirante a gênio que simplesmente... desistiu. Largou de mão. Mesmo sendo crítico, o cara é ótimo: não quer magoar ninguém, e nós, escritores, é que perdemos com isso. Enquanto há tempo, confere lá. E vê se aprende alguma coisa.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Segunda vida

por Ana Beatriz Guerra

Então minha curiosidade me levou até o Second Life...

Engana-se quem pensa que o tal jogo vai ser tão "hype" aqui no Brasil quanto o Orkut foi há algum tempo atrás. O Second Life não vai virarconversa de bar, apesar de algumas multinacionais e empresas de comunicação tupiniquins já investirem seus logotipos no mundinho virtual.

Até alguns meses, só quem tinha um certo trânsito em línguas estrangeiras, especialmente inglês, poderia fazer uso do programa. Mas agora já existe o Second Life em português e, em questão de poucos meses ausente do jogo, pude constatar diferenças gritantes.

A Copacabana de lá é povoada por uns seres tão estranhos quanto a de verdade. A Copa de lá tem bares que soltam bolhas de sabão pelas paredes. No Copacabana Palace de lá não existe foyer, é tudo branco, com espaços ainda a preencher, pontos a ligar.

Os papos em português são totalmente vazios. Não se fala português, na verdade. Fala-se internetês o tempo inteiro. E, em poucos minutos, pelo nível de complexidade das conversas, dá para perceber o abismo educacional dos brasileiros médios em relação aos estrangeiros médios que usam o programa. O Brasil de lá não é hype, só acha que é.

O impulso básico mesmo para começar a brincadeira é a curiosidade. Como deve ser um mundo, como dizem os desenvolvedores, "imaginado e criado por seus habitantes"?

Virtualmente falando, pode-se fazer qualquer coisa dentro do Second Life. Desde que você entenda algo de design. A plataforma é pesada e requer máquinas com processamento mais rápido e bastante memória. Enquanto se roda o programa, é bom não abrir janelas de outros aplicativos. Aliás, você nem vai querer isso. Porque a segunda vida pode ser bastante sedutora e envolvente.

Você começa criando um login e senha na web para depois fazer o download (gratuito) do programa. Não é preciso pagar para usar o Second Life, mas os usuários premium têm direito a 300 Linden Dollars (a moeda "local") por mês para gastar como for, seja comprando terrenos ou uma xícara de expresso. Só me digam depois por que cargas d'água ter um terreno que não existe ou tomar um expresso sem poder sentir o sabor.

O login é o nome do seu "avatar", a personagem que você vai assumir lá dentro.Prefiro dizer "boneco" ou "boneca", porque, montando o meu avatar, me senti menina de novo, recortando bonecas e roupinhas de papel. A idéia é a mesma, só que muito mais sofisticada e muito menos imaginativa.

Depois que você cria o seu boneco e "nasce" para a sua "segunda vida",vai parar num território neutro onde existem avatares que vão responder a todas as suas perguntas de novato. E é aí que começam os seus problemas. É aí que termina o seu livre arbítrio. Porque você descobre que existem códigos de conduta. Porque você descobre que, para fazer qualquer coisa, essa coisa precisa ser pré-definida pelo programa. É aí que todo sonho socialista termina.

Todos ganham uma aparência padrão, de acordo com o sexo escolhido. É aí que todo sonho de igualdade termina. Sua aparência pode ser configurada de acordo com o seu gosto. Gastei horas, ou melhor, dias só adaptando a aparência da minha boneca. Tentei fazê-la parecida comigo - em vão -, porque, na minha cabeça, não teria nada a esconder, não gostaria de ser, numa segunda vida, nada diferente do que sou na primeira. É uma descoberta e tanto você saber que tem confiança o suficiente para não querer ser mais ninguém. Tudo bem, mas o quanto eu não perderia se não fosse alguém diferente? Que tal uma personalidade diametralmente diferente da minha?

Foi aí que resolvi que minha boneca seria dançarina num clube de strip-tease. Talvez eu tenha sido influenciada por uma francesa cuja boneca tinha a mesma profissão."Você vai precisar de um avatar mais bonito", a garota me disse. E eu até entendi.

Todo mundo no Second Life, tirando os novatos, tem aquele jeito de personagem de mangá: olhos grandes, cabelos ultracoloridos, roupas bem ajustadas, corpo torneado. A obssessão pela beleza é nítida. São poucos os que escolhem aparências diferentes, como de bicho, monstro ou robô, mas, ainda assim, bichos, monstros e robôs de vídeogames e desenhos animados. Fui percebendo que eu não teria muita mobilidade se continuasse "feia".

Para ter um corpo mais bonito, eu precisaria de dinheiro. Porque no Second Life tudo é opcional: cabelo, pele, roupas e até os órgãos sexuais. Minha boneca até bem pouco tempo não tinha nem mamilos nem vulva. Rodei todo o mundo atrás de uma pele "bonita" (entenda-se próxima do real) e gratuita.

É incrível como nos poucos meses que passei sem jogar tudo foi mudando. Há especulação imobiliária no mundo virtual. Lugares que existiam num determinado ponto não existem mais. As mudanças são tão rápidas quanto os pensamentos. E, com um pouco de lábia, consegue-se tudo, todas as dicas para uma melhor circulação nesse universo estranho.

Descobri, por exemplo, que se ganha dinheiro virtual ficando alguns minutos sentado numa cadeira, esfregando o "chão" ou panfletando notinhas de eventos. Os poucos Linden Dollars acumulados nessas atividades rendem pequenos prazeres como sapatos novos.

Se você quiser radicalizar, pode passar 300 minutos sentada para ter o corpo igual ao da Tyra Banks. E com igual quero dizer idêntico mesmo, existem lojas onde você pode comprar um dublê de corpo, desde o da Avril Lavigne até o da Sophia Loren. Nova, é bom frisar. Porque não existe gente velha no Second Life, andei observando. Ou doentes. Uma boneca mais rechonchuda teve dificuldade em encontrar um par para dançar dia desses, numa ilha perdida do "Japão".



Será que então este é o espaço para exercitar os maiores sonhos impossíveis da humanidade, como ter um corpo perfeito, não envelhecer e não morrer? Talvez, se você achar que um monte de pixels é a perfeição...

Será então que este é o espaço para exercitar todos os seus medos e preconceitos antes de ser banido?

O que atrai e repudia e amedronta no Second Life é a bizarra semelhança com a realidade. Quantas vezes já não me vi em minhas atividades diárias achando que estava mesmo numa simulação de computador... Quanto tempo as pessoas não passam sem ser elas mesmas?

E eu sigo percorrendo aquelas ruas falsas em terceira dimensão.

Minha boneca já teve muitos pretendentes, ficou presa numa gaiola, flutuou numa cadeira inflável, voou, teletransportou-se, comprou vestidos vintage com um clique no botão direito, fantasiou-se de Mulher Maravilha, fez e aconteceu. E, do outro lado da tela, estava eu, minha primeira vida suspensa.

O que chama a atenção é que, mesmo num espaço que convida à brincadeira, as pessoas, ou melhor, os avatares se levam muito a sério. Transporta-se para o mundo virtual os mesmos pré-conceitos, falhas e inseguranças do planeta presente, como se nem por trinta minutos se pudesse escolher ser outra pessoa só por diversão. Como se tudo tivesse que ser um grande compromisso. Como se não existissem válvulas de escape. Para alguns avatares, certamente não. Para a minha boneca, bom, ela vai continuar por lá enquanto tiver graça.

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Feira

Por Simone Silveira

Feira é sempre maravilhosa, seja lá onde for, do Brasil à Turquia não há muita diferença não. São todas caóticas, são todas criativas, são todas convidativas e a gente se perde, em meio de tralhas, comida, flores, temperos, gente, bicho. Feira de São Cristovão é forró. Mercado de Istambul é cheiro de chá de maçã seca e tapetes luxuosos. Feira de Martha's Vineyard é feira florida. Feira africana na Ilha de Maurício é labirinto de saris indianos. Feira da Praça da Gávea é pra comprar peixes pro seu gato. Feira do Campo do São Bento em Niterói é pra se perder em meio de bibelôs e artesanato. Feira do Embarcadeiro em San Francisco tem gosto de mel e tortilhas mexicanas. Mercado das Pulgas em Paris é pra achar cacaréus e quinquilharias preciosas. É na feira que eu conheço o país, a cidade, o povoado. Feira é de gente e para gente—gente pobre, gente rica, gente preta, gente branca, gente velha, sarada, todo tipo de gente. Porque eu gosto de ser gente, onde vou, onde passo, meus olhos se abrem. Em qual esquina, em qual rua, haverá uma feira?

Feira na Ilha de Martha's Vineyard, Ma, USA.


quarta-feira, 5 de setembro de 2007

artefato que enfeitava a saia verde dela

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paetê miçanga lantejoula. não sei o nome exato do apetrecho que dá nome à coisa. nem ao que senti: uma espécie de dejavú, retorno ao tempo, lembrança fora de hora, saudade do raio que o parta. o fato é que exatos cinco meses depois que aquela arremedo de mulher me deixou, entro no quarto e dou de cara com o objeto reluzente no chão. tal artefato enfeitava a saia verde dela. a saia comprada no comércio popular carioca, no saara. fico paralisada com a avalanche de sensações que de repente cercam minha cabeça, tudo assim, em nove segundos e meio. foi necessário apenas esse tempo fictício para que tudo voltasse à tona: os beijos, as juras, as entregas, o calor, a sede, o quarto sempre trancado, o gelo, a pasta dental de morango, a calcanhotto no repeat, a quentura de janeiro, os dias que não sabíamos onde iniciavam e se estes terminavam, enfim. ela voltou aqui. eu, que acredito que as pessoas vêm me visitar em espíritos e vontades, sei que ela passeou por aqui e me senti invadida. que sacana! aproveitou de minha ausência e veio bisbilhotar minhas coisas! observei outro tanto de tempo antes que apanhasse o acessório que enfeitava a tal saia. lógico que, pervertida que sou, me lembrei que tal objeto deveria ter sido retirado com nossas fúrias voluptuosas e senti saudade. do sexo, dos medos, das descobertas, do cabelo azul, das risadas, das mãos dela, e das historinhas pra dormir. segurei delicadamente o treco como daquela primeira vez que encostei os meus lábios nos dela. foi tão cerimonial que pareceu uma dança. e foi. o enigma é que a música parou de tocar há exatos cinco meses.
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