Logo que chego na rua é delírio. Todos cumprimentam sem formalidades. Tá ficando velho!? E aí cabeça! Quanto tempo! Os pés me levam até a velha casa no centro da rua. Uma calçada, que papai sempre prometeu colocar piso, mas ainda se reveste de cimento. Gasto. Como o portão, enferrujado, que ainda treme pelas batidas da bola do Três dentro três fora.
Tenho a chave, como um porto seguro, para uma saída pela esquerda no caso de aperto. Mas não é só chegar abrindo, tem as duas voltinhas especiais na fechadura. Que só quem é de casa conhece.
O quintal de piso. Muito longe daqueles quintais com jardins e plantas. Aqui, no máximo, a presença de uma Samambaia no canto, isolada, seca, há muito morta. Entro, desviando do cocô da terceira geração da Preta, Bumer. Que insatisfeito por eu não ter pisado em alguma mina, pula nos meus braços, me lambe, com seu carinho sujo.
Deixo o canino para traz. Pelo amor de Deus não me deixa esse infeliz entrar. Sala. O coração do lar. Que até bate mais rápido pela minha chegada. Na Tv passam novelas reprisadas, no rádio músicas já dançadas. Nada de piano! Nem caberia. Contudo, um pandeiro e um violão no canto, ao lado da estante, relembra as noites de folia.
O cheiro do café me chama lá da cozinha, junto com aquela voz de mãe. Entra logo, mas com cuidado, acabei de passar cera. Cera vermelha. Há muito comprada no carro de produtos de limpeza, que passa religiosamente toda semana. Sabão de coco! Cera liquida! Pasta para dar brilho em alumínio!...
Sigo pelo corredor, velhos quadros. Cópias de grandes mestres da pintura, mostram que na simplicidade lá de casa, existe um certo eruditismo, frescura. Junto aos mestres: fotos. Almas congeladas, algumas há muito elevadas aos céus das lembranças, outras, há muito não se conversam. Falta de tempo. Desavenças. Nem quero saber.
Nossa Senhora Aparecida de sentinela evita a briga até entre os quadros.
Passo pelo banheiro. Entro. Cheiro de lavanda. Levanto a tampa. Tiro água do joelho. De porta aberta. Como é bom estar em casa. Abaixo a tampa. Não dou descarga. Lavo a mão, abro a porta espelhada do armário. Velhas escovas riem pra mim, e a minha própria, deixa escorrer lágrimas de saudade.
Corredor. Passo ao lado da escada que sobe para o andar do descanso. Como que detectando: Se for subir tira o sapato, limpei o carpete. Desisto. Mas me basta fechar os olhos para ver a velha mobília, a cama talvez com a colcha que ganhou no casamento.
Cozinha. Lá está Ela. Tão linda. Com um lenço cobrindo os fios brancos da experiência. Avental protegendo a roupa dos respingos de café. Café que está no coador, acompanhando o leite que, já, já, ferverá no fogão, mas não vai transbordar, com ela, isso nunca acontece. Cheiro de fubá no forno.
Recebo um abraço. Um selinho de amor. Segura-me e olha nos meus olhos. Tá magro, anda comendo direito? Tô com pressa. Só passei pra ver como estão as coisas. Palavras, frases feitas na rotina de anos, ditas, outras não, mas entendidas mesmo assim. O amor não precisa de muitas formalidades, e até falar é formal para os que amam.
Tá tudo bem. Como Deus manda. Sento na cadeira que fica na cabeceira da mesa redonda. Todos aqui são iguais, mesa quadrada é muito hierárquica, aqui se preserva a cumplicidade da redonda. Minha caneca logo se enche de café com leite. Dois pedaços de bolo. Cremoso. Quando toca em meus lábios, faz-me ouvir os sorrisos de outras épocas, a gente brincando de pega. Não é pra correr dentro de casa! Aí meu Deus! Gargalhadas. Ainda mato um!
Devaneios. Por um segundo vejo a mesa cheia. Mãozinhas que esperam o pão com Manteiga, pra molhar na xícara de café e leite, num ritual saboroso. Acho, que até Preta, mais esperta que Bumer, vem subir na minha perna, pedindo um afago e um pedaço do pão, mesmo seco, não tem problema não!
Tudo passa assim, junto com o sabor do fubá com raspinha de limão. Entra dentro de mim. Olho nos olhos dela que sorri em cumplicidade.
Sinto então, no meu ombro esquerdo, lado do amor, uma mão com calos de uma vida de luta, que me aperta num afago paternal. Cheiro de loção pós-barba. Respiração forte. Vem comer conosco! Ele não pode, tem que regar a samambaia.
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